Poderia ser uma cena de um filme, filmada no vagão do metrô lotado por várias etnias, roupagens e idades diferenciadas. Entrei com a ingênua esperança de encontrar um assento disponível e procurei, no alto dos meus muitos anos, os reservados para os mais vulneráveis pela idade, pela debilidade física ou, no caso das mulheres, pela gravidez.
Os quatro lugares estavam ocupados e, como normalmente acontece nesses tempos, apenas um deles por um idoso. Em um dos assentos, ainda vago quando entrei, uma mulher jovem se instalou após atropelar uma criança à entrada. Ao lado do idoso, um casal entre 18 e 20 anos. Nenhum dos três se preocuparam com as pessoas idosas ou a mãe grávida que segurava os outros três filhos, um ainda de colo, equilibrando-se na velocidade do metrô e no entra e sai das pessoas. A mulher jovem parecia exultante em ter conseguido seu lugar e olhava outros horizontes pelo celular, o casal de jovens estava concentrado nos seus jogos de afagos e beijos, sempre olhando de canto de olho aos arredores, ele triunfante e ela com um olhar quase vitoriano.
Em pé eu vislumbrava aquela cena comum, corriqueira, que se passa milhares de vezes ao dia nos metrôs e nos muitos lugares da polis contemporânea, normatizada pela leniência que nos acostumamos a ter no mundo atual em relação à defesa dos nossos direitos. Percebi, de soslaio, que a não observação às regras civilizatórias de ceder um lugar a uma pessoa mais vulnerável, inclusive pela obediência às regras estabelecidas pelo equipamento público, não era um privilégio da sofrida linha abaixo do Equador, onde não existe pecado, como dizia o poeta, mas sobra iniquidade e injustiça. Afinal, eu não estava em São Paulo, Rio, Santiago ou Buenos Aires, mas em Barcelona, na rica e influente Europa, berço da civilização ocidental.
Mais veloz que o metrô barcelonês, minha mente voou para as barbáries que estamos vivenciando nesse mesmo momento em que, naquele vagão, três jovens surrupiavam o direito ao assento de um punhado de seres humanos em condições físicas mais débeis que a deles. A cena, reafirmo, corriqueira, me chamou a atenção como um retrato exemplar das iniquidades e do abandono de valores éticos fundamentais que o mundo vive, uma escrachada recusa do que é justo, do que é o melhor para uma boa convivência entre nós.
Na nossa ocidentalidade, o longínquo Platão ensinava na sua obra magistral A república qual deveria ser o verdadeiro sentido da justiça e como, a partir dela, se poderia constituir uma sociedade melhor tendo como alicerce a formação de um ser humano justo e consciente do valor de sua ética. Hoje temos presenciado cada vez mais o oposto dessa visão idealizada pelo filósofo grego há milhares de anos. A fábula O anel de Giges, utilizada por Platão em sua obra, discorre sobre os poderes da invisibilidade que o portador deste anel teria ao girá-lo. Invisível, o homem pode agir conforme suas decisões, independentemente das regras e pressões da sociedade, dando-lhe a impunidade necessária para agir como queira.
As inúmeras interpretações de A república e do mito grego de O anel de Giges são uma das bases da ética ocidental e da construção da nossa vida política há séculos, baseadas na necessidade de parecer bom e de fazer o bem público acima de suas paixões pessoais. Ao insinuar o que faríamos se pudéssemos contar com o poder da invisibilidade e narrar a degradação e a usurpação que Giges faz com os poderes de seu anel, Platão nos indaga se agimos pelo medo de punições ou por uma condução ética justa.
O que me chama a atenção é que, cenas como aquela do metrô de Barcelona, onde os personagens agiam em total visibilidade e, mesmo assim, afrontavam direitos e o respeito a outros seres humanos em situação de maior fragilidade física, seja algo que esteja igualmente ocorrendo em contextos de maior gravidade no nosso planeta. E as perguntas surgiram!
O assassinato de crianças e da população civil palestina desarmada, provocando um deliberado aniquilamento dessa população, e que acontece há um ano, é algo invisível ou ocorre sob os olhos do mundo inteiro? As invasões a instituições símbolos da democracia — como o Capitólio em janeiro de 2021, nos Estados Unidos, e ao Congresso, ao STF e ao Planalto em janeiro de 2023, no Brasil, incitadas por poderosos da ultra direita antidemocrática — foram às escondidas? Serão invisíveis os ataques sistemáticos, intencionais, frequentes e em larga escala que determinados influencers disparam contra as instituições democráticas, acusando sem provas, espalhando mentiras que enganam milhões de pessoas, como vimos nas recentes eleições municipais, notadamente em São Paulo? Os falsos profetas, pregadores de doutrinas que nada têm de cristãs, defensores do velho slogan fascista e antidemocrático — Deus, Pátria, Família — e que nada têm de deus, de pátria ou de família e funcionam como biombos ilusionistas para atrocidades antihumanidade, pregam ou não à luz do dia, iludindo milhões de homens e mulheres carentes de religiosidade? O crescimento dos movimentos de ultra direita e de políticos e partidos que já deram ao mundo as atrocidades fascistas e nazistas no século 20 em guerras mundiais, florescendo em vários países europeus e nas Américas, inclusive no Brasil, é algo que se faz nos subterrâneos e fora do conhecimento de todos e todas?
Será igualmente invisível a ação premeditada, contínua e demolidora do estado de direito e da consciência cidadã realizada contra a educação da maioria do povo por inúmeros governos que aviltam os salários dos professores e professoras, impõem textos ideologicamente manipulados, censuram milhares de livros e autores segundo suas convicções negacionistas e oferecem um ensino precário, acrítico, sendo mero treinamento para mão de obra desqualificada? Está oculta ou é extremamente visível para quem quer ver que essa crise na formação da consciência crítica das nossas gerações há décadas é um projeto e não uma crise pontual, como já dizia sabiamente Darcy Ribeiro?
São invisíveis a continuidade criminosa do aprofundamento das desigualdades gerada pela concentração de riqueza em uma ínfima quantidade de famílias, enquanto a maioria da população global afunda em miséria e enormes contingentes de seres humanos estão abaixo da linha de pobreza e sequer têm um prato de comida ao dia? São igualmente invisíveis os alertas de intelectuais, pesquisadores e economistas ideologicamente não socialistas, como Thomas Piketty, que propõem a necessidade urgente de uma distribuição da riqueza de forma mais igualitária e o aumento da taxação do capital financeiro que cresce muito além do desenvolvimento econômico, aprofundando as desigualdades?
O quadro de perguntas desesperadoras e nada invisíveis que a humanidade enfrenta hoje é um ponto de inflexão civilizatório que as forças da cidadania includente precisam responder proativamente. Não há mais tempo para leituras polianas do mundo. O desespero, fomentado pela ignorância, de pessoas que não conseguem enxergar um horizonte para suas vidas, é combustível para a violência e para os líderes fascistoides e suas soluções milagrosas para problemas complexos.
À política includente, que se deveria chamar socialista, principalmente no campo da esquerda que busca a equidade, cabe a tarefa de repensar suas práticas, de entender que o debate vai muito além do que está sendo feito hoje no plano macro de governos para o bem-estar econômico. Coragem e clareza para o enfrentamento das necessidades imediatas precisam se somar às propostas para o futuro. É preciso ter respostas factíveis da esquerda para a insegurança que impõe o medo, assim como respostas para a educação e a cultura emancipadoras, sem deixar esses temas em segundo plano. Reagir contra o domínio ideológico que a direita está conseguindo é urgente e a pauta regressiva avançará enquanto essa disputa cultural for relegada à subalternidade. Cada capitulação submissa a ideias negacionistas será pavimento para uma sociedade que não resistirá à sua autodestruição.