Aos dez dias do novo ano de 2025, no estado mais rico da federação, milicianos a serviço do capital destrutivo, que fomenta o ódio e a necropolítica da ultra direita brasileira, invadiram um assentamento rural do Movimento Sem Terra (MST), regularizado pelo Incra há vinte anos no município de Tremembé (SP). A horda de extermínio assassinou três assentados — Valdir do Nascimento, Gleison Barbosa de Carvalho e Denis Carvalho — e feriu mais cinco, buscando intimidar as famílias que vivem nessa gleba de terra que produz alimento saudável e vida minimamente digna para seus ocupantes.
Aos sete dias do novo ano de 2025, no país (ainda) mais rico do mundo, Mark Zuckerberg, dono do Instagram, do Facebook, do WhatsApp e do Threads, anunciou: “É hora de voltar às nossas raízes em torno da liberdade de expressão”. Nos atuais labirintos da significação, “liberdade de expressão” tornou-se um código da ultra direita para perpetuar o uso indiscriminado da violência, da supremacia branca e masculina, do engano da meritocracia e da tentativa de conquistar não apenas os corpos dos trabalhadores e trabalhadoras que tornam possível a acumulação de capital, mas seus corações e mentes. As barbáries já visíveis em seu anúncio das mudanças nas políticas de coibição de fake news e difamação de pessoas e movimentos nas suas plataformas, tudo em nome de um fim das “censuras”, foi anunciado por ele próprio quando afirmou que iria, por exemplo, “remover restrições sobre tópicos como migração e gênero”. O alinhamento com a bestialidade do novo presidente norte-americano de ultra direita não seria mais explícito.
Aos cinco dias do novo ano de 2025, Fernanda Torres fez história no Globo de Ouro. A intérprete de Eunice Paiva, símbolo de resistência civil à sanha golpista militar de 1964, viúva do preso político deputado Rubens Paiva, em Ainda estou aqui, tornou-se a primeira brasileira a vencer o prêmio de Melhor Atriz em Filme de Drama no restrito círculo de premiação do cinema mundial. Os dias posteriores à premiação inflamaram o país e todos e todas que mantinham um “grito parado no ar” contra as investidas fascistas e de retrocesso civilizatório que a ultra direita brasileira, de maneira sistemática e persistente, tenta impor ao país. Num Brasil que tem dificuldade em prover e elogiar a memória política e histórica das lutas pela democratização e que ainda não puniu os assassinos que assaltaram o Estado brasileiro em 64, as manifestações de exaltação à cultura que resgata a memória de lutas pela democracia e pela dignidade humana foram muito expressivas e alentadoras. Demonstraram que é possível resistir às barbáries cotidianas e às arquiteturas da necropolítica que alguns insistem em tornar triunfante.
Esses três fatos marcantes no recém-iniciado 2025 nos fornecem uma amostra esclarecedora dos complexos cenários que enfrentaremos nos próximos meses enquanto cidadãos e cidadãs que exercemos a empatia, a militância pela equidade social e econômica, a defesa dos direitos humanos e da democracia.
Leio tudo isso com tristeza angustiante, mas também buscando entender questões que considero fundamentais para seguir em frente, porque “A única luta que se perde é aquela que se abandona”, como escreveu Carlos Marighella, ex-deputado, militante da luta armada contra a ditadura e assassinado em emboscada pela repressão de 64. Um dos muitos homens e mulheres que não se omitiram perante a barbárie, independentemente de utilizarem métodos e estratégias diferenciadas de luta.
Com o assassinato brutal de Valdir, Gleison e Denis vivenciamos, mais uma vez, a evidência de que a violência do capital destrutivo não é retórica e não está nos salões e nos debates acadêmicos. A violência que mata e destrói vidas, famílias e comunidades está no cotidiano e nos territórios onde vivem as classes mais oprimidas e pobres de nosso país, de maioria negra, de mulheres arrimo de famílias, de juventudes sem perspectivas de futuro, de corpos largados à própria sorte e ainda carentes de políticas públicas que criem condições de mínima equidade. A crônica interrupção e retrocesso de políticas públicas emancipadoras, quando ciclos governamentais progressistas são interrompidos por governos regressivos, bloqueiam os ainda muito tímidos programas de emancipação como a reforma agrária, a inclusão educacional e cultural, a melhoria do emprego, da saúde, da habitação, do transporte, além da prioridade da extinção da fome. E ainda pior, mesmo em governos que olham para essas políticas, a ultra direita não renuncia à violência assassina e muitas vezes age por intermédio de agentes públicos armados, como os assassinatos de civis inocentes por policiais militares, orientados por governantes estaduais e municipais que exercem seus mandatos a serviço das camadas mais privilegiadas da população de seu território.
O anúncio funesto de Zuckerberg nos relembra que estamos na era das Big Techs e dos bilionários que as detêm e as manipulam ao bel-prazer (e interesses, claro). É uma triste realidade, principalmente para quem acreditou polianamente, desde o início da internet, que realmente este seria um “território livre”, portanto, de domínio público, de interesse público etc. Mais uma vez, quase como um mantra diário, precisamos nos recordar da irreconciliável separação entre os interesses de mercado e os interesses públicos. Não é sem razão, a não ser para acumular poder para gerar mais lucros, que um dos objetivos da guerra cultural hoje é convencer a todos que o Estado é igual a corrupção e que gestor “não político”, com métodos de empresas privadas, é a solução para administrar a coisa pública. Para quem ainda não captou esse momento da história e suas consequências nefastas, sugiro ler e ouvir Marilena Chauí, entre outros pensadores referenciais. Mas o importante a se extrair do anúncio do magnata virtual é que o fortalecimento das estratégias da ultra direita mundial — fake news, difamação com uso de IA e edições distorcidas do real etc. — está em franca ascensão e contará com as forças do presidente da nação (ainda) mais poderosa do planeta. É importante atentar que o esclarecimento da população e a interlocução massiva sobre as conquistas democráticas e de direitos não são mais um “problema de comunicação”, resolvível com troca de gestores, mas são algo muito mais complexo que exige ações inteligentes e multidimensionais.
Finalmente, o brilho nos olhos indicando que podemos resistir e avançar, proporcionados pela linda repercussão da vitória no Globo de Ouro de Fernanda Torres e do filme baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, nos indica, mais uma vez, o quanto estratégicas são as políticas públicas dirigidas à cultura e à educação. Em meio a tantas dificuldades enfrentadas pelo governo de reconstrução do terceiro mandato de Lula, é preciso ir além dos gestos simbólicos; é preciso investir com prioridade na cultura e na educação, principalmente na promoção da leitura como é entendida conceitualmente na lei da PNLE e no texto do primeiro PNLL — como instrumento necessário e transversal para todas as atividades humanas, artísticas, produtivas e cidadãs em que a “leitura do mundo precede a leitura das palavras”. Tanto o combate e o repúdio popular à violência que assassina, quanto a possibilidade da maioria da população não aceitar fake news de maneira duradoura e sustentável dependerão dos avanços que obtivermos na formação de leitores e leitoras que consigam ler o mundo. “Quem lê, pensa. E quem pensa, não se cala”, escreveu Eliana Yunes em síntese esclarecedora. Somente uma política pública dará escala a essa necessidade estratégica e democrática.
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Com este texto, chego a 50 artigos no Rascunho, iniciados em novembro de 2020. Agradeço ao editor Rogério Pereira a oportunidade de escrever nesse imprescindível jornal de literatura sobre as vicissitudes das políticas públicas e da democracia no nosso difícil país. Agradeço também os eventuais leitores e leitoras que tenho a pretensão de ter cultivado.