É comum em rodas de conversas envolvendo profissionais do livro, da mediação da leitura e das bibliotecas, certo desconhecimento e algum desdém para os marcos legais que regulamentam e impõem valores e normas para a produção, a circulação, a distribuição e a formação de leitores no Brasil.
Este fenômeno só é rompido quando se identifica um ponto nevrálgico, geralmente ligado a uma ameaça aos rendimentos imediatos ou às corporações. Nesses momentos reativam-se os artigos e parágrafos da incompleta legislação existente para defender a parte atingida das ameaças latentes, seguida de um arrefecimento esperado após vencida a batalha.
O pouco zelo pelo patrimônio legal, que foi conquistado em fases diversas da história do livro e da leitura no Brasil, também se manifesta na verdadeira enxurrada de projetos de lei (PL) que em todas as legislaturas se somam à casa das centenas no Congresso Nacional. A falta de um posicionamento permanente, publicamente visível e com adesão da maioria da cadeia do LLLB (livro, leitura, literatura e bibliotecas) ao tema legislativo, facilita a profusão e a dispersão de projetos de lei que, na sua maioria, estão distantes dos interesses públicos, se atendo a defender questiúnculas ou censurar a livre manifestação da escrita.
Conforme o especialista no acompanhamento do tema no Congresso Nacional, o bibliotecário Cristian Brayner, tramitam 29 projetos de lei para o livro e as bibliotecas no Senado e mais 115 na Câmara dos Deputados em 2023. Em entrevista ao CRB8 em 2020, Brayner calculou que cerca de 500 projetos deste teor já foram arquivados nas últimas legislaturas. Convivem nesses PL questões importantes socialmente, como o uso da leitura como remissão de penas para os encarcerados, até questiúnculas ideológicas nocivas ao interesse público de uma nação multicultural e multirreligiosa, como a proibição do uso da palavra “bíblia” em outros contextos que não forem vinculados ao “livro sagrado”. A defesa do livro nem sempre está investida de propósitos republicanos.
É evidente que a ausência do prestígio do Estado brasileiro ao tema, traduzida na igual ausência de políticas permanentes para o setor, é um fator crucial para o tratamento subalterno que o país dá aos marcos legais que deveriam orientar profundamente os rumos da produção editorial, da democratização do acesso à essa produção e a preservação do direito à leitura para todos e todas. Os raros períodos históricos em que governos se preocuparam efetivamente com o tema, inclusive fomentando o estabelecimento de legislação promotora, mostra a omissão histórica do Estado brasileiro.
A verdade, em que pese o pragmatismo que os advogados e alguns dirigentes das entidades do setor possam contrapor aos meus argumentos, é que a legislação brasileira sobre o livro, a leitura e as bibliotecas caminham em um frondoso labirinto onde as saídas se confundem, se sobrepõem e criam uma desejável não solução que contribui cada dia mais para a frase do mestre Darcy Ribeiro: “A crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto!”.
Para solucionar este labirinto legislativo e direcioná-lo ao interesse público, entendo que há parâmetros básicos a serem observados. É importante estabelecer, como interesse público, o beneficiário final de todas essas legislações setoriais que se reivindicam ininterruptamente e em todos os matizes ideológicos.
Todos os movimentos deveriam apontar para o que é mais importante, mais necessário, mais adequado ao beneficiário final das políticas e legislações: o leitor e a leitora em toda a sua diversidade, característica essencial de nosso país. A partir da conquista cidadã expressa no direito à leitura e à escrita, pode-se alinhar uma política pública coerente e pró democrática, inclusiva e adequada à realidade do país, expressa em leis e seus derivados de aplicação consequentes, os decretos e portarias que as regulamentam.
Sugiro que as lideranças políticas e os/as profissionais do setor tenham uma visão estratégica do que já conquistamos em marcos legais para o LLLB e realizem um apanhado racional do que existe e suas eventuais inconsistências. Vejo como o pior dos mundos os projetos que criam leis para questões menores ou irrelevantes para a formação de novos leitores e leitoras, o único problema realmente estrategicamente importante e vital para o Brasil.
Ouso sugerir que, em primeiro lugar, e como aprendi duramente no caminho de construção coletiva do texto da lei 13.696/2018, que é preciso ter clareza total quanto o que é matéria a ser incluída em lei e o que deve ser objeto de outras normativas legais. Por uma razão objetiva: leis são políticas de Estado e seus objetos deveriam ser permanentes. Portanto, tudo que é datado ou que atinge substratos de um objetivo próprio à permanência do Estado e fruto da vontade popular majoritária deveria ser regulado por normas legais com status inferior às leis. Esta é, por exemplo, a diferença entre a lei da Política Nacional de Leitura e Escrita/PNLE e o futuro Plano Nacional do Livro e Leitura/PNLL decenal, estabelecido por aquela lei e que terá vigência num período determinado. A PNLE é permanente, é política de Estado. O PNLL é efêmero, datado para dez anos, deverá ter validade por intermédio de um decreto que será revogado, e substituído por outro novo PNLL, pelo presidente de turno quando terminar o decênio do Plano. Assim se garante perenidade e não obsolescência de programas, ações e projetos de formação de leitores e leitoras no período histórico da aplicação da PNLE.
Entendo que a racionalidade política e republicana que já está na lei da PNLE deveria se aplicar na revisão de toda a legislação existente, criando parâmetros para a balbúrdia de projetos de interesses menores que não atendem as necessidades de formação de leitores e de incentivo à economia do livro.
Para que isso ocorra é necessário estabelecer amplo debate para a revisão dentro de grandes blocos que representam os principais pontos de legislação do setor. São eles: 1) Formação de leitores e leitoras; 2) Economia do livro (processo que abarca autor, editor, distribuidor, livreiro); 3) Democratização do acesso (centrada nas bibliotecas de acesso público — públicas, escolares, comunitárias — e na mediação).
No item 1, leis voltadas para a formação de leitores, existe a Lei 13.696/2018, da PNLE, apelidada “Lei Castilho”. Entendo, pelos motivos expostos acima e em exaustivos artigos no Rascunho e em outros veículos, que o formato lei-decreto-planos e programas está adequado neste caso. O que se faz necessário é aplicar imediatamente este marco legal.
O item 2, voltado para a economia do livro, tem na Lei 10.753/2003, da Política Nacional do Livro, apelidada “Lei do Livro”, a sua base legal mais utilizada. Já sofreu emendas, como a atualização do conceito de livro, por exemplo. No entanto, o tema da economia do livro exige constante revisão e entendo que, passados 20 anos da sua promulgação, seria importante uma democrática e rigorosa análise revendo todos os elos desta economia com o objetivo de regulamentar mais efetivamente o desordenado mercado editorial e livreiro. Questões específicas, como o vital PL da “Lei Cortez”/lei do preço fixo, voltada à bibliodiversidade e ao combate às desigualdades de competição e guerra de preços, preservando o livre comércio, também se insere neste item fundamental.
No item 3, voltado às bibliotecas de acesso público, existe legislação importante e atuante, a última se refere à universalização das bibliotecas escolares, a Lei 12.244. Bibliotecas são essenciais para a democratização do acesso e um profundo debate com as entidades representativas dos profissionais e do Estado brasileiro deveria nortear uma revisão geral considerando o que há de melhor internacionalmente em pesquisas e entidades referenciais.
Todos os três itens são absolutamente interligados, interdependentes e precisam um olhar integrador visando a cidadania, objeto maior das leis. Tornar isso possível é trabalho da boa política, aquela que serve à causa pública.