Como escrever nessa semana sem o pensamento voltado para a morte de Zé Celso Martinez Corrêa que na sua desnudez desnudou o Brasil em reflexões imortais? “Fogo no teatro… morreu devorado pelo fogo”, como o seu amigo de toda a vida, o querido Ignácio de Loyola Brandão, escreveu em lindo artigo sobre ele.
Na verdade, Loyola, ao falar de Zé Celso, ateia fogo e luz também nas imensas perdas geracionais que tivemos nos anos recentes e que são bastidores referenciais, assim como no teatro, às cenas abertas da vida cotidiana que foi tantas vezes celebrada no icônico palco do Oficina.
Como estamos vivenciando as últimas perdas de lideranças culturais, artísticas, educacionais, jurídicas, políticas, sociológicas, desta geração marcada pela posteridade da Segunda Guerra Mundial e que foram determinantes para a reconstrução de nossos referenciais simbólicos, dos valores humanísticos, do enfrentamento das barbáries e violências autoritárias que abundaram nos últimos cem anos?
Navegando desde o início da nova ordem econômica e política mundial e na sua derrocada ainda em curso; surfando nas tecnologias analógicas dos telefones a manivela para a virtualidade dos smartphones e notebooks; vivenciando e analisando as incontáveis mudanças do mapa político do mundo; rompendo a moral vitoriana heteronormativa e tomando parte da explosão dos milhões de casais LGBTQIA+ e da diversidade do poliamor, a geração que a morte de Zé Celso sintetiza assistiu também, nas últimas duas décadas, a contestação de extrema direita que ameaça com retrocesso todas as conquistas humanísticas que constituíram a vida dos que hoje estão em torno dos setenta aos cem anos e que ainda, genericamente e não sem percalços, regem a vida das sociedades democráticas do Ocidente.
Ressaltou-se, com a morte de Zé Celso, a perda da liderança dionisíaca regida pelos sonhos de um novo mundo que contestava frontalmente a aridez do mundo contemporâneo. Se isso é verdadeiro e importante — servir-se do literário, da poesia, do onírico para refletir, denunciar, contestar —, é preciso lembrar que também estamos abandonando outras formas de pensar e criticar esse mundo pela perda de outras lideranças que atuavam servindo-se de outros meios e linguagens. Teorias sociológicas, econômicas, psicológicas e políticas para entender e trabalhar sobre um mundo cada vez mais carente de razoabilidade, de ética voltada para o bem comum, de relações humanas que aperfeiçoem e não destruam as liberdades democráticas, foram formuladas e aplicadas pelos nossos cientistas sociais, economistas, filósofos, psicólogos e uma gama de estudiosos e lideranças políticas que fizeram parte da geração que agora estamos perdendo aceleradamente.
Soma-se às perdas das lideranças humanísticas, que representavam um determinado tipo de mundo pós-guerra, a nova configuração acelerada que caracteriza a sociedade contemporânea, notadamente a partir do início do século 21. Conceitos seculares da ciência política como Estado, Nação, Território, Governos são camufladamente substituídos, e sem debate, pelas corporações e conglomerados financeiros internacionais, substituindo-se a forma de governar com a política pela ideia de gerenciamento empresarial do país, como já apontado por muitos dos que estão nos deixando. O grande Milton Santos, por exemplo, já nos alertava com o conceito de “meio técnico-científico informacional”, que procura compreender a transformação do espaço natural por meio das novas tecnologias e da pressão política e econômica da internacionalização do capital. Conforme ele afirmou:
Em si mesmo, (o território) não constitui uma categoria de análise ao considerarmos o espaço geográfico. […] Quando quisermos definir qualquer pedaço do território, devemos levar em conta a interdependência e a inseparabilidade entre a materialidade, que inclui a natureza, e o seu uso, que inclui a ação humana, isto é, o trabalho e a política.
O trabalho e a política constituem o nosso ser, e a ilusão de se produzir uma inteligência coletiva em uma internet libertária se esvaneceu com o cada vez maior controle das redes pelo capital. Algo é comum nessa crise civilizatória, a esse final de uma era e início de outra na qual ainda não sabemos como poderá terminar. O que me parece evidente é que o novo domínio dos que detêm o poder necessita de uma sociedade acrítica, não reflexiva, distante da capacidade humana de se expressar racionalmente. Ou seja, de saber ler a si e o mundo.
Me abstenho de citar as últimas pesquisas, do nosso IBGE ao Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), amplamente divulgadas, sobre o grau de capacitação escolar e dos recuos cognitivos das novas gerações, a maior parte delas ainda vítimas da exclusão do direito à educação e à cultura, surrada e eficiente fórmula de preservar o status quo contra a maioria submetida à servidão que hoje nos parece natural no uso frenético dos gadgets virtuais.
Hoje, mais que nos anos em que a alienação pelo trabalho fordista e taylorista foi criticada pelas artes — com destaque para Chaplin, em Tempos modernos, de 1936 —, temos, com a hiperconectividade e os múltiplos recursos da IA, a possibilidade de os poderosos do mundo tornarem realidade sua eterna utopia: que meia dúzia de abastados manipulem uma massa anônima de servidores do capitalismo. Já não se trata apenas das manipulações ideológicas e políticas sintetizadas no glamour do american way of life, criticadas pela geração que está perdendo seus últimos representantes.
O mundo que se nos apresenta hoje — se é falimentar enquanto sistema político-econômico representado pelo aumento de miseráveis e pela ameaça da hecatombe ecológica — tem, nos meios virtuais disponíveis e na concentração desta tecnologia em empresas financeiras interessadas apenas na multiplicação infinita de seus capitais e alheias ao interesse público, as melhores ferramentas para manipular a submissão. Não são as máquinas inovadoras, é a ganância que determina o ritmo do poder!
Alia-se o melhor das tecnologias com o intencional empobrecimento do olhar crítico e interrogante que cada vez mais são alijados da vida em todas as faixas etárias da população. Exemplos cotidianos não nos faltam: dissemina-se em todos os meios e redes sociais a ideia de que treinar (coach) é muito mais necessário que formar, porque a rapidez e o mínimo de esforços para adquirir atitudes e comportamentos para a vida prática do trabalho é propagandeado como um valor muito mais importante do que o longo caminho das leituras e dos debates que nos levam a refletir e concluir por nós mesmos.
A implicação deste direcionamento é fatal para as políticas públicas, com a desvalorização do simbólico, representado pelas artes e as culturas, e dos pensamentos críticos das humanidades nas escolas em todos os níveis. Já pensaram por que há anos utilizamos apenas apostilas com resumos “práticos e objetivos” para alunos e professores no ensino fundamental e médio? Ou que nas universidades a leitura de livros ou de autores é substituída por compilações resumidas da internet? Aos poucos, mas sistematicamente, vamos perdendo terreno em conquistas históricas recentes e anteriores, aqui e no mundo.
Exemplo recente do que podemos retroceder pode ser lido no artigo de Glauco Arbix (https://valor.globo.com/opiniao/coluna/suprema-corte-fecha-os-olhos-ao-racismo.ghtml), no qual comenta a decisão da Suprema Corte dos EUA que considerou inconstitucionais as ações afirmativas (cotas, inclusive) no ensino superior que contenham itens relacionados à raça:
A decisão toca nos fundamentos da atuação das universidades sintonizadas com seu tempo, que preparam os alunos para um mundo em rápida transformação e que, por isso, precisam integrar em seu sistema de ensino e pesquisa as múltiplas faces da experiência humana.
Contra o sequestro de nossa humanidade, políticas públicas de educação e cultura democráticas são tarefas das gerações atuais e nossas únicas possibilidades.