🔓 A leitura na casa do avô

As lembranças do avô lendo jornais nos anos 1950 e um texto célebre de Paulo Freire desencadeiam no autor reflexões sobre as novas gerações de leitores
Ilustração: Vitor Pascale
01/11/2021

O ato da leitura dos jornais diários pelo meu avô paterno começava com um exercício de arquitetada montagem geométrica. Todos os dias, invariavelmente. Na varanda de sua casa podíamos vê-lo receber o jornal no portão, subir as escadas da pequena varanda, abrir totalmente os cadernos do periódico e remontá-lo em seguida, dobrando verticalmente cada página em duas ou três grandes colunas conforme o caderno de assuntos e sua diagramação gráfica. O resultado era quase um origami de grandes ângulos retos que compunham uma nova peça impressa que, como uma espécie de acordeom, se desdobrava harmoniosamente.

O avô alisava aquela dobradura com a firmeza de suas mãos fortes de homem do campo, mas com inusitado carinho, como se celebrasse por ganhar todos os dias aquele presente de palavras, que traziam à pequena cidade de 15 mil habitantes do interior de São Paulo nos anos 1950/1960, sua comunicação e identidade com o restante do mundo.

Eram tempos outros, pré-história recentíssima da rapidez imediatista da TV, da internet, do celular, dos smartphones, das redes sociais. O jornal diário trazia a notícia mais recente, e embora competindo com o rádio na comunicação das novidades, acrescentava densos comentários analíticos e autorais. E havia os cadernos variados, principalmente o cultural, onde nos informávamos e líamos críticas do que se passava no seletíssimo e exclusivo mundo das artes e da cultura no país e no mundo. O diário de certa forma inseria uma pequena faixa da população brasileira daquela época no mundo que realmente decidia e vivia a vida da República, centrada na elite econômica e intelectual nos grandes e poderosos centros metropolitanos do país.

Ler e ter acesso à informação era também uma atividade para poucos, voltada apenas para aqueles que podiam comprar o jornal diário e que também fossem alfabetizados, em uma população, à época, com 50% de analfabetos. Também era um hábito restrito aos que conseguiram construir um interesse pessoal ou familiar em ler a “palavramundo”.

O destino me proporcionou essa excepcionalidade no país da desigualdade: a de ter uma família leitora. E esse grande detalhe fez toda a diferença. Tive mãe leitora de literatura e de história e geografia, professora que era dessas ciências, e tive pai que, como o seu progenitor, lia jornais diariamente e cometia algumas vezes suas incursões por histórias épicas da pequena biblioteca de minha mãe.

Assim cresci meus primeiros anos a observar e a absorver esse gosto pela palavra escrita, tendo-a e descobrindo-a no cotidiano de uma vida marcada pela rotina morosa da vida de uma pequena cidade interiorana nos anos 1950 e 1960 do século 20. Sem saber, minha família foi mediadora de leitura e me formou como leitor.

Mas nada me fascinava mais que meu avô e sua engenhosa arquitetura para ler com prazer a palavra. Talvez dele tenha sido a fagulha que me fez compreender, muito mais tarde, que ler é um ato de vida, de construção dos sentidos, de dar significado às coisas, a nós mesmos e às relações humanas. Uma arquitetura. E tudo isso, para mim, começou na casa do avô, onde a leitura era um ato diário de construção.

Vez ou outra essas lembranças me assaltam quando leio artigos ou livros alertando de diversas formas aos governos e às sociedades civis a necessidade de se formar leitores e, ainda, de que essa formação aconteça desde os primeiros meses de vida intrauterina. Alguns textos são bússolas permanentes quando reflito sobre essa evidência, hoje tão negada e vilipendiada pelas autoridades responsáveis pela educação no Brasil no desgoverno inominável que vivemos.

No vasto campo das pessoas que se engajam na formação de leitores, como profissionais ou voluntários, sempre soa forte o célebre e referencial texto de Paulo Freire, A importância do ato de ler (São Paulo: Editora Cortez, 2011). Nesse texto que beira a poesia, mas que é prenhe de uma aguda análise e observação da constituição do “ato de ler”, o mestre “re-vive”, “re-cria”, sua própria trajetória desde o “momento em que ainda não lia a palavra”. E, ao revisitar-se na sua mais tenra infância, nos dá o traçado de como a “leitura do mundo precede a leitura da palavra”, porque ao se referir ao seu pequeno mundo, no seu pequeno espaço referencial, ele demonstra como seu olhar e ações descobriam e assimilavam “‘os textos’, as ‘palavras’, as ‘letras’ daquele contexto”. Sua experimentação, ao engatinhar pela casa e entrar em contato com os objetos do seu mundo, experiência de toda criança, aumentava sua capacidade de perceber e o seu percebido se materializava em sinais que ele ia aprendendo nas relações com seus pais e parentes. A experiência de compreensão do seu mundo o levou com suavidade à leitura da palavra: “A decifração da palavra fluía naturalmente da ‘leitura’ do mundo particular”. Já nos primeiros argumentos de seu texto, Freire demonstra a absoluta relevância da experimentação, do contato íntimo com o contexto enquanto pura materialidade tangível da criança e como esse conjunto vital se elevará no contato com a leitura da palavra. E, ainda mais, como essa leitura adquirida, construída, a da palavra, precisa seguir se relacionando com a contínua leitura do mundo, numa retroalimentação ao infinito.

Ao me lembrar das leituras na casa do avô e reler Paulo Freire reviver-se no seu texto, reflito com temor e certa angústia o terrível alerta dos pesquisadores da neurociência que nos demonstram, com judiciosos raciocínios e experimentos científicos, o quanto as novas gerações estão sendo prejudicadas pelo intenso bombardeamento de novas tecnologias que estão sendo guiadas, não por suas inúmeras virtudes, mas por suas igualmente inúmeras possibilidades de fomentar a circulação comercial de bens e serviços e a manutenção de cérebros frouxos, subservientes, incapazes do pensamento crítico, apenas consumidores de um mundo uberizado.

É aterradora a leitura de textos e livros, como o de Maryanne Wolf, O cérebro no mundo digital: Os desafios da leitura na nossa era (São Paulo: Editora Contexto, 2019). Em texto contundente, ela demonstra como os efeitos graves do mundo digital sem controle — e o acúmulo de informações que bombardeia a todos, inclusive a infância — tornam impossível o que chama de “leitura profunda”, principal responsável pelo surgimento de cidadãos capazes de exercer sua capacidade crítica. A profusão de inúmeras telas sobrepostas e incessantes determina a forma como lemos e dificulta a cognição processada pelo cérebro, impedindo a leitura aprofundada, reflexiva, formadora de um pensamento autônomo.

A questão é ainda mais grave quando entendemos o alerta da autora de que não devemos oferecer “nenhuma tela” nos primeiros anos de vida, e apenas a partir dos 4 anos é que se pode começar a adquirir algumas competências digitais. A interação com a linguagem acontece na primeira infância com a linguagem dos livros impressos ao escutarem a fala, os fonemas, os sons das línguas paternas. A leitura para os bebês, e não as telas frenéticas de aplicativos, é que pode fornecer a eles as condições de virem a serem leitores profundos, no futuro, das palavras em suporte impresso ou digital. Ao nosso redor dificilmente deixaremos de ver inúmeras crianças na primeira infância grudados às telas de pais não leitores. E isso é desesperador para o futuro, conforme nos alerta Wolf.

Em um país em que a política pública de educação retrocede a ponto de a literatura voltar a ser apenas um suporte à alfabetização, como se denota pelo agora PNLD-Literário, que substituiu o bem-sucedido PNBE, tocar nesse assunto soa como disparate de quem pensa que conhecimento é algo imprescindível para o desenvolvimento sustentável.

É preciso agir para que as políticas públicas possam reverter, em escala, o presente que está desconstruindo o futuro. Novas tecnologias devem sempre ser saudadas entusiasticamente, mas o seu uso, como todo instrumento, precisa ser adequado e subordinado ao desenvolvimento humano em todas as suas dimensões.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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