4. O SACO
A grande novidade no cenário da década de 1970 foi a ocorrência de núcleos literários importantes fora do eixo econômico-cultural Rio-São Paulo. Para além da Escrita, baseada em São Paulo, e da Ficção e José, no Rio de Janeiro, já discutidas aqui neste espaço, surgiram outras revistas de repercussão nacional, como O SACO[1], publicada em Fortaleza, que teve sete números editados entre abril de 1976 e fevereiro de 1977, por um grupo liderado por Manoel Raposo (1933)[2], Jackson Sampaio (1941)[3], Nilto Maciel (1945)[4] e Carlos Emílio Correia Lima (1956)[5].
É interessante registrar que O Saco, em alguma medida, se insere na forte tradição cultural do Ceará. Ainda no século 19, surge o Clube Literário, que publicou, entre 1887 e 1888, uma revista, A quinzena, ancorada na escola romântica. Alguns escritores ligados a este grupo, notadamente Antônio Sales (1868-1940), romancista de Aves de arribação (1914), e Rodolfo Teófilo (1853-1932), autor de A fome (1890), Os brilhantes (1895) e Paroara (1899), participam da fundação, em 1892, da Padaria Espiritual, que, por meio de seu órgão de divulgação, O Pão, editado até 1896[6], ecoou no meio jornalístico e literário da Corte[7]. Após, temos a implantação do modernismo no estado, nos fins da década de 1920, e o aparecimento, em 1943, do Grupo Clã, que deu alguns dos mais importantes nomes da moderna literatura cearense, como Fran Martins (1913-1996)[8], Eduardo Campos (1923)[9], Braga Montenegro (1907-1979)[10] e Moreira Campos (1914-1994)[11].
Assim, tributária dessa tradição, nasce a revista O Saco em 1976, embora as discussões que redundaram em sua criação tenham começado dois anos antes, segundo depoimento de Nilto Maciel[12]. “Um grupo de escritores (…) trocava idéias sobre como resolver o problema da falta de espaço na imprensa para a publicação de poemas e contos dos jovens. Decidiu-se organizar e publicar uma coletânea de contos dos novos escritores cearenses. Seis meses se passaram e a idéia não se concretizava”. Então, continua ele, Carlos Emílio publicou um artigo no jornal Gazeta de Notícias, de 6 de julho de 1975, convocando um encontro para tentar organizar um movimento literário[13]. “À primeira reunião compareceram cerca de 70 pessoas. A maioria desejava a realização de um show no Teatro José de Alencar. Espécie de feira de arte, com música, teatro, exposição de artesanato, cordel, fotografia, desenho, livros. Sucederam-se outras reuniões, e sempre a mesma torre de babel. A revista não vingou nem o show se realizou.”
Quatro cadernos
Apesar dessa série de fracassos, Carlos Emílio não desistiu da idéia. Junto com Nilto Maciel, convidaram o livreiro Manoel Coelho Raposo[14] e o psiquiatra Jackson Sampaio para participar da fundação de uma editora, a Opção Promoções e Publicidade, responsável pela publicação da revista[15]. “Inicialmente, a capa seria um saco plástico ou de papel e dentro dele viriam textos impressos em folhas, folhetos de cordel, fotografias, o diabo-a-quatro, tudo solto. Achei a coisa horrível. Finalmente chegamos a um consenso: em vez de um saco, um envelope de papel amarelo, como capa; em vez de tudo solto, quatro cadernos (poemas, contos, artigos e desenhos) impressos, embora não colados, costurados ou grampeados”, conta Maciel.
Assim, no dia 2 de abril de 1976, chega às bancas o primeiro número de O Saco, sete mil exemplares impressos em off set e circulação nacional[16], com o subtítulo de “revista mensal de cultura”, que, a partir do nº 5, de novembro de 1976, passa a se denominar “uma revista nordestina de cultura”. “Falou-se em sucesso. Inúmeros jornais de todo o Brasil e até do exterior noticiaram o aparecimento da revista”, lembra Maciel. O lançamento “tinha mais de quinhentas pessoas em torno da livraria (…) a maioria composta de jovens”, anotou entusiasmado o editorial do segundo número[17], que, aliás, curiosamente, saiu, com atraso, apenas em junho.
Este primeiro número, de 32 páginas, já estabelece o padrão estético que seria perseguido nas outras seis edições: “Nossa recusa ao extremismo poderá ser definida como recusa em ultrapassar os limites inferior e superior da faixa de prudência pois abaixo está a covardia e acima o suicídio”[18]. Até o número final, a revista estruturou-se em quatro cadernos, divididos em Prosa (dedicado ao conto), Verso (dedicado à poesia), Imagem (o mais fraco deles, destinava-se ao desenho, embora no corpo da publicação houvesse espaço para ilustrações e charges) e Anexo (que incluía o editorial, entrevistas, ensaios, cartas e crítica de livros), que têm ampliado ou diminuído o número de páginas de acordo com as necessidades editoriais.
Por uma série de motivos, expostos no editorial do nº 4[19], a revista não teve uma periodicidade regular. Os dois primeiros números (publicados em abril e junho de 1976, respectivamente) contam ainda apenas com a produção de contistas, poetas, ensaístas e artistas plásticos locais. O terceiro número, de julho, incorpora contistas e poetas baianos. Somente a partir do número 4, de setembro de 1976, O Saco abre-se não só para contribuições de autores de outros estados, como também de outros países, sem, no entanto, abrir mão da ênfase nos artistas cearenses[20]. O nº 5 é distribuído em novembro, o nº 6 em dezembro, e o nº 7, o último, em fevereiro de 1977[21].
Os editores de O Saco tiveram, desde o primeiro momento, uma noção muito clara de onde pretendiam chegar. No editorial do nº 1, escrito, segundo Alexandre Barbalho[22], por Jackson Sampaio, há uma análise bastante lúcida da situação da imprensa alternativa da época e um aceno a uma solução: “o arranjo arte e comércio — o hibridismo mais possível aqui e agora”. O gargalo, antecipavam, estava em equalizar a realização de um periódico de qualidade, que registrasse “o dia-a-dia da resistência cultural” naquele canto do Brasil, com o reconhecimento além das fronteiras do estado. Nesse sentido, a revista buscou conquistar leitores em todo o território nacional. A primeira empresa contratada foi a Distribuidora Cultural de Publicações, de Fortaleza, que fazia a distribuição nas bancas. A partir do segundo número, a responsabilidade passou para a Distribuidora Edésio, também de Fortaleza. Do nº 3 em diante, foi contratada a empresa carioca Superbancas, e só então a revista passou a ser encontrada em bancas de todas as grandes cidades do Brasil. Segundo Barbalho, “antes do contrato [com a Superbancas], 45% das revistas colocadas na bancas foram vendidas, alcançando São Luís, Natal e Salvador. (…) após o contrato, a saída foi de 78% e atingiu Fortaleza, Recife, Salvador, Niterói, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, São Paulo, Porto Alegre, entre outras cidades. A distribuição direta passou de 418 a 720 endereços, possibilitando, no número seguinte, um aumento de tiragem”[23].
Notas
[1] O nome deve-se ao fato de que a revista era dividida em quatro seções, Prosa, Verso, Imagem e Anexo, encadernadas separadamente e ensacadas num único volume.
[2] Personalidade histórica da esquerda cearense, Manoel Coelho Raposo, além de livreiro e editor, publicou poemas (Cantos para alguém dizer, Cantos de rebeldia, amor e nostalgia e Poemas para uma alma de outono) e livros de propaganda do socialismo.
[3] José Jackson Coelho Sampaio, psiquiatra, atualmente professor universitário, não chegou a reunir em livros os poemas e contos aparecidos na revista.
[4] Depois de viver em Brasília entre 1977 e 2002, voltou a morar em Fortaleza. Desde 1974 vem desenvolvendo uma sólida carreira de contista e romancista, com 17 títulos publicados, entre eles A guerra da donzela, Vasto abismo, A última noite de Helena, Os luzeiros do mundo e A leste da morte. Edita a revista Literatura, fundada em 1991.
[5] Estreou em 1979 com o romance A Cachoeira das eras, seguido por Além, Jericoacoara, Pedaços da história mais longe e os livros de contos Ofos e O romance que explodiu.
[6] “O Pão” tirou seis números em 1892, vinte e quatro em 1895 e seis em 1896.
[7] Também ligado à Padaria Espiritual devemos lembrar Adolfo Caminha (1867-1897), um dos mais importantes nomes do chamado Naturalismo brasileiro, autor dos romances A normalista e Bom Crioulo, entre outros.
[8] Autor de contos (Manipueira, Noite feliz e Mar oceano) e romances (Ponta de rua, Poço de paus, Mundo perdido, Estrela do pastor, O cruzeiro tem cinco estrelas, A rua e o mundo e Dois de ouros).
[9] Contista, romancista, dramaturgo e ensaísta tem mais de vinte livros publicados em todos esses gêneros.
[10] Mais conhecido como critico literário, publicou apenas três livros de contos: Uma chama ao vento, As viagens e outras ficções e Contos derradeiros.
[11] Considerado um dos maiores contistas brasileiros, publicou oito coletâneas: Vidas marginais, Portas fechadas, As vozes do morto, O puxador de terço, Momentos, Os 12 parafusos, A grande mosca no copo de leite e Dizem que os cães vêem coisas.
[12] “A Revista O Saco e o Grupo Siriará”. In: Feira do Sebo. Fortaleza, fevereiro de 2008, s/pag.
[13] O artigo, reproduzido quase na íntegra, pode ser lido in: BARBALHO, Alexandre. Cultura e imprensa alternativa: a revista de cultura O Saco. Fortaleza: Editora UECE, 2000 pag. 38-39.
[14] “Raposo foi o verdadeiro financiador do projeto”. Nilto Maciel em depoimento ao autor.
[15] No expediente da revista aparece como “redator-chefe” José Edmundo de Castro, na verdade o jornalista responsável diante da Censura Federal. Manoel Raposo gerencia o departamento comercial. Jackson Sampaio, Carlos Emílio e Nilto Maciel são denominados “assistentes”. Maciel lembra: “A Raposo caberia a administração financeira. Eu e Carlos Emílio nos encarregaríamos da correspondência com escritores e da coleta de colaborações. Carlos Emílio e Jackson cuidariam da seleção final, entrevistas, viagens para contatos, etc” (op. cit).
[16] “Seis mil exemplares para venda nas bancas e mil comprados pela Secretaria de Cultura e Promoção Social”. Editorial. O Saco, nº 2 – junho – 1976 – 4º caderno.
[17] Op. cit.
[18] Editorial. O Saco, nº 1 – abril – 1976 – 4º caderno.
[19] Voltaremos ao assunto mais à frente.
[20] “Em uma contabilidade dos sete números d’O Saco constata-se que dos noventa autores veiculados, sessenta e nove eram nordestinos. E desses, cinquenta e quatro cearenses”. In: BARBALHO, Alexandre. Op.cit., p. 53.
[21] Segundo Maciel, em depoimento ao autor, ainda houve um oitavo número, “uma tentativa de retomar o projeto nos anos 80” (BARBALHO, p. 63), uma iniciativa de Manoel Coelho Raposo, “sem a participação dos outros fundadores da revista”.
[22] Op. cit., p. 42.
[23] Op. cit. p. 44-45.