Para além de sua importância como órgão de divulgação da novíssima literatura brasileira, a revista Escrita, editada por Wladyr Náder (1938) em São Paulo, entre 1975 e 1988 (39 números, com largas interrupções), publicou uma série de dossiês, que, reveladores para o leitor da época, tornaram-se imprescindíveis para o pesquisador de agora, como documento histórico.
Mais da metade do nº 11, de setembro de 1976, é destinado à discussão da literatura afro-brasileira, antecipando um assunto que só muito recentemente entraria na pauta da sociedade. Carolina Maria de Jesus (1914) comparece com um amargo depoimento (“Só tive desgosto com a literatura”) — ela morreria poucos meses depois, em fevereiro de 1977 — e um conto inédito, O Sócrates africano[1]. Solano Trindade (1908-1974), nome que seria redescoberto e valorizado apenas no começo do século 21, tem resgatados três poemas inéditos. Além de um artigo do escritor afro-americano James Baldwin, O falso humanismo do Ocidente, do dossiê constam ainda a reprodução de partes dos livros Estudos afro-brasileiros, de Roger Bastide (sobre Cruz e Sousa, incluindo três poemas), A pirâmide e o trapézio, de Raymundo Faoro (sobre Machado de Assis), e O negro na ficção brasileira, de Gregory Rabassa (sobre Lima Barreto, seguido de laudos médicos e de uma carta a Monteiro Lobato)[2].
Já o n° 14, de dezembro de 1976, propõe uma interessante reflexão sobre os rumos da literatura portuguesa, sobrevivente do “tacão do fascismo”, a longuíssima e tenebrosa ditadura instituída por Antonio de Oliveira Salazar, que durou de 1932 a 1974[3]. Aproveitando a passagem por São Paulo, para participar da IV Bienal Internacional do Livro, Hamilton Trevisan, Astolfo Araújo, Wladyr Náder e Antonio Hohlfeldt entrevistaram os prosadores José Cardoso Pires, Augusto Abelaira e Fernanda Botelho, o poeta E. M. Melo e Castro e o dramaturgo Bernardo Santareno: uma ótima síntese do impasse em que viviam naquele momento os escritores lusos. O nº 19, de maio de 1977, dá voz aos “marginais”, os poetas da chamada “geração mimeógrafo”. Araújo e Náder entrevistaram Bernardo Vilhena (1949), Xico Chaves (1949), Charles (1949)[4], Chacal (1951)[5], Adauto de Souza Santos (1951) e Pernambuco da Silva (1956), todos, de uma maneira ou outra, ligados ao movimento Nuvem Cigana, que agitou o cenário cultural do Rio de Janeiro na década de 1970. Há, além disso, uma boa mostra da poesia de todos os citados, além de Ronaldo Santos (1949) e Guilherme Mandaro (?-1979). No mesmo número, e com o mesmo espírito, Reinoldo Atem (1951) relata as experiências e conclama os jovens a aderir à Cooperativa dos Escritores, criada, em Curitiba (PR), por ele, Domingos Pellegrini (1949), Hamilton Faria e Raimundo Caruso, como alternativa ao esquema de edição e distribuição das grandes casas publicadoras.
Inquérito literário
O número seguinte, o 20, de junho de 1978, publica o resultado de um inquérito, formulado pelo poeta, crítico e professor universitário Roberto Reis, sobre a situação e perspectivas do ensino da literatura brasileira nos Estados Unidos, com depoimentos dos professores Nancy T. Baden e Ron Harmon (Universidade Estadual da Califórnia, Fullerton), Judith Bissett (Universidade Estadual Arizona, Tempe), Candance Slater (Dartmouth College, Santa Cruz), William M. Davis (Universidade da Florida, Gainesville), Edgar C. Knowlton Jr (Universidade do Havaí, Honolulu), Elizabeth Lowe (Queens College, Nova York) e Alexandrino Severino (Vanderbilt University, Nashville). Finalmente, no penúltimo número dessa primeira fase, o 26, a revista publicou extratos de depoimentos colhidos durante o I Encontro com a Literatura Brasileira[6], idealizado por Edla van Steen (1936) e realizado em São Paulo entre 25 e 30 de setembro de 1978, com a presença de editores, agentes e tradutores estrangeiros e autores, críticos e professores nacionais, organizado pela Câmara Brasileira do Livro e patrocinado pela Secretaria de Estado da Cultura, Ciência e Tecnologia e pela Secretaria Municipal de Cultura.
Já foi anteriormente explicitado, também, o engajamento da revista Escrita na construção de uma idéia de latino-americanidade. Desde o seu primeiro número até o último (lembrando que, entre um e outro, transcorreram 12 anos!), foi mantida a preocupação de oferecer ao leitor brasileiro uma amostra do que melhor se produzia nos países hispanofalantes. O artigo do romancista e crítico piauiense Assis Brasil (1932), publicado logo no nº 1, América Latina: a literatura do exílio, em que defende a inserção da produção brasileira no conjunto da chamada “literatura latino-americana”, estabelece as diretrizes que seriam seguidas à risca pelo editor Wladyr Náder. Assim, ao longo de sua história, foram oferecidos aos leitores contos de autores desconhecidos e que infelizmente se mantiveram inéditos em livro no Brasil (como o salvadorenho Ricardo Jesurum[7], o cubano Edmundo Desnoes[8], o venezuelano Ednodio Quintero, o colombiano Alberto López Torres e o mexicano Edmundo Valadés) e também de autores já editados por aqui, como o uruguaio Eduardo Galeano e o mexicano Juan José Arreola. Além desses, ousadia das ousadias, foram publicados, no original em castelhano, o uruguaio Horácio Quiroga, o argentino Rodolfo Walsh, o peruano Círo Alegría e o venezuelano Arturo Uslar-Pietri.
Poesia e ensaio
Também havia espaço para a poesia do argentino Juan Gelman e para a dos jovens cubanos Bladimir Zamora, Aramis Quintero, Abel G. Diáz, Victor Rodríguez Nuñez. Reina Maria Rodríguez e Alex Fleites; para entrevistas com o peruano Manuel Scorza, o mexicano Edmundo Valadés e o argentino Ernesto Sábato e para as memórias do poeta chileno Pablo Neruda. Foram publicados ainda ensaios dos argentinos Adolfo Bioy Casares, Enrique Medina, Ernesto Sábato, Julio Cortázar e Jorge Luis Borges, as duas últimas em espanhol, e do uruguaio Mario Benedetti, além de artigos de Rykardo Rodriguez Rios sobre os jovens poetas do Peru, de Tono Báez sobre os poetas das “gerações perdidas” da Argentina, de Osvaldo Ventura de La Fuente sobre a literatura chilena antes de depois do golpe militar de 1973 e de Flávio Loureiro Chaves sobre os tiranos latino-americanos.
Finalmente, é importante lembrar o caráter antecipatório da abertura da revista à produção infantil, que nas décadas seguintes iria ocupar um lugar fundamental no mercado editorial e no sistema educacional brasileiro. Pelas páginas da Escrita passaram histórias de Antonieta Dias de Moraes, Lucia Miners, Tadeu Pereira, Maria Lucia Amaral, Janer Cristaldo, Marina Colasanti, Maria Teresa Guimarães Noronha, Vivina de Assis Viana, Martha de Freitas Azevedo Pannunzio, Maria Angélica de Oliveira, ensaios de Nelly Novaes Coelho e Fanny Abramovich e reportagens de Maria Dinorah Luz do Prado e Patrícia Nepomuceno.
Apesar de ter saído de seu empreendimento ainda mais pobre que quando entrou, Wladyr Náder mantém a esperança de um dia reviver a revista Escrita, talvez em outros moldes, adaptada à tecnologia disponível. Formado em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco, por 17 anos foi funcionário do Banco do Brasil, parte deles desenvolvendo paralelamente sua atividade de jornalista no Grupo Folhas (Folha de S. Paulo e Folha da Tarde, onde trabalhou durante 23 anos). Há 20 anos é professor da Faculdade de Jornalismo da PUC de São Paulo. Entre 1968 e 1985 publicou, sempre pela Editora Vertente, as coletâneas de contos Lições de pânico, Espinha dorsal, Cafarnaum e Vamos e venhamos, a novela A última bala do cartucho e os romances Camisa-de-força e Jogo bruto e, pela Editora Tchê, o romance Confissões de um mau entendedor. Tem inédito, para publicação próxima, o romance A vida é sempre assim, às vezes.
Notas
[1] Não me consta que esse texto tenha sido publicado posteriormente em livro.
[2] Nesta carta, Lima Barreto destila seu rancor com relação a João do Rio, chamando-se de “paquiderme” e insinuando que o colega se passa por “homem de letras” apenas para “arranjar propinas com os ministros e presidentes de Estado ou senão para receber sorrisos das moças brancas botafoganas daqui – muitas das quais, como ele, escondem a mãe ou o pai”.
[3] Embora Salazar, nascido em 1889, tenha morrido em 1970, o regime discricionário, criado por ele, permaneceu até a Revolução dos Cravos, ocorrida em 25 de abril de 1974, que instaurou a democracia.
[4] Pseudônimo de Charles Peixoto.
[5] Pseudônimo de Ricardo de Carvalho Duarte.
[6] Os depoimentos publicados foram os de Ferreira Gullar, Ivan Ângelo, Samuel Rawet, Nélida Piñon, João Antônio, Moacyr Scliar, Antônio Carlos Ataíde e do agente e tradutor norte-americano Thomas Colchie.
[7] Pseudônimo do contista e poeta Ricardo Lindo (1947).
[8] Seu livro mais conhecido, Memórias do Subdesenvolvimento, originalmente publicado em 1965, só teve uma edição brasileira em 2008 pela Editora Memorial, de São Paulo.