Revistas literárias da década de 1970 (1)

A importância da "Escrita", fundada em 1975 pelo escritor e jornalista Wladyr Náder
01/03/2009

Talvez apenas a década de 1920 tenha convivido com um movimento tão fértil de revistas literárias quanto a década de 1970 — e, ainda assim, com certeza, esta muito mais eclética que aquela. Em praticamente todos os estados brasileiros apareceram publicações — de pequenos e malfeitos folhetos, rodados em mimeógrafos manuais ou elétricos, a álcool ou a tinta, de distribuição local, até mensários impressos em off set, de circulação nacional. Uns e outros contribuíram para fomentar o momento mais instigante da produção nacional de romances, contos e poemas, num casamento de resistência cultural e militância política. A censura à grande imprensa e as restrições às liberdades individuais impostas pela ditadura militar tornavam os livros de ficção uma das poucas fontes confiáveis de informação sobre a realidade nacional — junto com os jornais alternativos, que também publicavam literatura. Assim, justificando o que se convencionou chamar de “boom” da literatura brasileira, as tiragens chegavam a impensáveis 30 mil exemplares para a primeira edição de um escritor brasileiro desconhecido — caso de Murilo Rubião (19126-1991), com O pirotécnico Zacarias, em 1974, ou Antonio Torres (1940), com Essa terra, em 1976, por exemplo. E o correio colocava em contato autores de tendências estéticas e temáticas as mais díspares: ficava-se sabendo que o praxismo chegara ao Acre, por meio da produção do poeta Clodomir Monteiro (-); que no interior do Paraná havia um ótimo contista, Domingos Pellegrini (1949); que no Rio de Janeiro um jovem carioca, Julio Cesar Monteiro Martins (1955), provocava polêmica com suas corajosas histórias de dor e sofrimento; que Cinéas Santos (1948) desafiava a geografia e inaugurava o Piauí; que em Cataguases (sempre Cataguases) um grupo, liderado pelo vanguardista Joaquim Branco (1940), inundava o mundo (literalmente) com a arte-postal…

É a algumas dessas revistas, que arejavam o normalmente autocentrado círculo literário, que vamos nos dedicar nos próximos artigos.

1. ESCRITA
A revista Escrita, ideada e editada pelo escritor e jornalista Wladyr Náder (1938), foi, a meu ver, o mais importante veículo de divulgação literária da década de 1970. Lançada em São Paulo, em 1º de outubro de 1975, numa edição de 10 mil exemplares e circulação nacional em bancas, contou com grande repercussão na imprensa[1], e durante 39 números (distribuídos irregularmente do ano do lançamento a 1988, com largas interrupções) publicou contos, poemas, fragmentos de romances, entrevistas, resenhas e ensaios, independentemente de grupos ou tendências. Além disso, manteve um concurso mensal para revelar novos escritores e, num segundo momento, um concurso de poesia falada, que movimentava um grande número de participantes[2].

Quando a revista surgiu, já então a Editora Vertente, responsável legal pela publicação, existia há sete anos. Fundada em 1968, o primeiro título lançado foi Lições de pânico, uma coleção de contos fantásticos e de ficção científica do próprio Náder — e, à altura de 1975, eram cerca de 20 os livros em catálogo, inclusive Tarde da noite, de 1970, do hoje consagrado Luiz Vilela (1942). Ao longo da existência da editora, dois volumes sobressaíram em vendas: o romance Confissões de uma máscara, do japonês Yukio Mishima, que em 1976 alcançou uma tiragem total de cerca de 28 mil exemplares[3], e Sapo Cururinho da beira do rio, infantil de Magdalena Gastelois, com 60 mil exemplares. Os lucros auferidos com a editora, cujas tiragens variavam de dois mil a cinco mil exemplares[4], e com a livraria, que funcionou entre 1977 e 1984[5], sustentavam a revista[6].

A rigor, Escrita contou com três fases distintas. A primeira, mensal, a mais longa, contínua e produtiva, durou do nº 1 (outubro de 1975) ao nº 25 (outubro de 1977), e mais os números 26 e 27 sem datação (mas, com certeza, publicados ainda em 1978), em formato 21 cm x 27,5 cm, quantidade de páginas variando entre 24 e 58, tiragens médias de 10 mil exemplares (do nº 1 ao 12, com teto de 15 mil exemplares no nº 6) e cinco mil exemplares (do nº 13 ao 27)[7] e distribuição da Editora Abril[8]. A segunda fase se estendeu, espasmodicamente, pelos números 28 e 29 (ambos sem datação, mas seguramente de 1979), 30 (abril de 1980), 31 (janeiro/fevereiro de 1981), 32 (maio de 1982) e 33 (que leva, erroneamente, o nº 36, maio de 1983), com formato 16 cm x 23 cm, quantidade de páginas variando de 80 a 128, tiragem média de três mil exemplares e distribuição pulverizada. Finalmente, a terceira e última fase, que foi, na verdade, uma tentativa quixotesca de Náder de ressuscitar a revista, em 1986, nos mesmos moldes do período áureo de 1975-1977, com a recuperação do formato original e introdução de duas novidades: o papel couchê e as capas coloridas. Embora o entusiasmado editorial do número da retomada afirmasse, categórico, que a revista seria de novo mensal, estes seis derradeiros números sofreram com a falta de continuidade. Sem datação especificada, os números 34 e 35 apareceram em 1986[9], o 36 em 1987, e os 37, 38 e 39, em 1988, com distribuição da Fernando Chinaglia e tiragem média de três mil exemplares.

Em seu lançamento, a revista Escrita, ou melhor, seu editor, Wladyr Náder, já propugnava alguns temas que iriam reaparecer nos diversos momentos da existência da publicação: a visão do escritor como profissional (“Dar duro sobre a máquina de escrever, alinhavar as idéias de forma que no papel elas façam sentido para alguém”); a luta contra o obscurantismo (“Os livros incomodam porque transmitem idéias e as idéias, remotamente, podem mudar as coisas”); e a opção pelo pluralismo (“Nossas portas estão abertas a todos (…) nos colocamos contra todos os que, com hábeis combinações de vocábulos, apresentem fórmulas perfeitas de como as coisas devem ser”).

Além disso, transparece em suas páginas, principalmente na primeira fase, uma mescla inteligente de compromisso prioritário com o autor nacional e contemporâneo, sem esquecer, no entanto, que a literatura é também movimento histórico: em todos os números, são publicados textos de escritores antigos, esquecidos ou pouco valorizados, o que, curiosamente, motivava senões na seção de cartas. A revista também abriu um espaço generoso para a literatura infantil (que não era ainda o fenômeno editorial que é hoje) e para a literatura hispano-americana, mostrando um profundo respeito pela primeira (coisa rara até mesmo nos dias que correm) e um engajamento político comum no tempo, no segundo caso. E, mais interessante ainda, não se furtou a tentar compreender os fenômenos editoriais da época, como Maria Jose Dupré ou Adelaide Carraro (esta, capa do nº 18, concedeu uma entrevista absolutamente tocante a Náder).

A partir de setembro de 1977, a Editora Vertente mudou de endereço, deixando a Rua Monte Alegre pela Rua Homem de Mello, ambos logradouros do bairro de Perdizes, em São Paulo, local onde passou a também funcionar a Livraria Escrita. Neste endereço, ocorreu o único episódio sério de repressão às suas atividades. Em entrevista a mim concedida, Náder afirmou que a revista nunca teve problema com a censura, “porque a driblávamos com capas, digamos, amenas”. No entanto, na madrugada de junho de 1980, o edifício foi atingido “por cerca de 25 tiros, que destruíram a vitrina do andar térreo”[10]. Cerca de dois meses antes, a sede havia sido transferida para a Rua General Jardim, na Vila Buarque, e no local alvejado funcionava o depósito da Livraria Zapata, e, no porão, a Agência Brasileira de Reportagens, uma cooperativa de jornalistas. Náder acredita, no entanto, que o atentado visava mesmo a editora, “já que estávamos publicando a Escrita-Ensaio[11], voltada para questões polêmicas das ciências humanas, quando não exclusivamente da classe trabalhadora”[12].

LEIA A CONTINUAÇÃO DA COLUNA.

Notas
[1] “Até mesmo a TV Globo entrou na parada. A TV Bandeirantes e a TV Cultura cobriram o lançamento da revista, num boteco próximo à PUC. Os jornais também deram uma força, sobretudo os colegas da área de variedades”. Wladyr Náder em entrevista ao autor.

[2] “Inventamos de fazer poesia falada a partir de bem-sucedidos debates e bate-papos realizados às quartas-feiras na sede da livraria-editora na Rua Homem de Melo, em Perdizes, São Paulo. Depois, por conta do aumento do interesse, vivíamos mudando de local: Centro Cultural São Paulo, Biblioteca Infantil Monteiro Lobato, Sesc Pompéia, auditório da Faculdade de Medicina, e uma ou outra cidade do interior”. Idem.

[3] Desses, 20 mil exemplares vendidos por conta de uma parceria com o Círculo do Livro.

[4] Ao encerrar suas atividades, junto com a revista, em 1988, a Editora Vertente contava com cerca de 60 títulos em catálogo, alguns dos quais se tornaram clássicos da literatura brasileira contemporânea, como A festa, de Ivan Ângelo, de 1976, e Os meninos, de Domingos Pellegrini, de 1977; outros, reedições importantes como Diálogo, de Samuel Rawet, e O louco do Cati, de Dyonélio Machado, e traduções fundamentais, como O urso, de William Faulkner, por Hamilton Trevisan.

[5] “A sede da livraria-editora acabou se transformando em ponto de encontro, sobretudo aos sábados pela manhã, quando compareciam em peso os membros do conselho editorial (Hamilton Trevisan, Astolfo Araújo, Dennis Toledo e José Américo Mikas), mais Raduan Nassar, Marcos Rey, Roniwalter Jatobá, Márcia Denser, José Carlos Abbate, J.B. Sayeg e Y. Fujyama. Os dois últimos também ajudavam na seleção dos textos a serem publicados. Além desses, participavam esporadicamente Humberto Mariotti e Joyce Cavalcante”. Idem.

[6] As assinaturas, segundo Náder, nunca passaram de 1,2 mil.

[7] No último número dessa primeira fase, uma nota editorial assinada por Wladyr Náder antecipa a crise que se aproxima: “Depois de dois anos de relativa euforia, as revistas e jornais literários atravessam uma fase bem difícil, atrelados que estão a um sistema de distribuição preparado para dar escoamento a grandes tiragens” (Escrita, nº 27, p. 2). E, na continuação, apela para que os leitores se empenhem numa campanha de assinaturas da revista, única maneira de salvá-la, o que não surtiu os efeitos desejados.

[8] O editorial da revista Escrita nº 31 informa que os números 23 a 27 foram distribuídos apenas em bancas de São Paulo e do Rio de Janeiro, “o que levou muita gente a pensar que havia desaparecido” (pág. 2).

[9] Esses dois números foram editados numa parceria entre a Livro Aberto Livraria e Editora (empresa de Náder que substituiu a Editora Vertente) e a Editora Tchê, de Porto Alegre.

[10] Revista Escrita nº 31, janeiro-fevereiro de 1981, pág. 111.

[11] Publicações de formato 17,5 cm x 27 cm, que tiraram 11 títulos, sendo o último um volume duplo. Saíram ainda em 1977 os dois únicos volumes da série Escrita-Livro: Ficção Brasileira Hoje, reunindo contos de Osman Lins, Ivan Ângelo, Ricardo Ramos, Samuel Rawet, Moacyr Scliar e Gilberto Mansur, e Confissões de um comedor de ópio (comentado por Baudelaire), de Thomas de Quincey.

[12] Entrevista ao autor.

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho