Até por dever de ofício, sempre me interessei por tentar compreender o funcionamento do meio editorial. O nosso, formado por cerca de 500 empresas que publicam mais de 330 milhões de exemplares e faturam R$ 3,3 bilhões por ano, é particularmente interessante. Não deve haver hoje, no mundo, mercado potencialmente mais promissor: somos 200 milhões de pessoas, a imensa maioria pronta para compartilhar o prazer que o livro proporciona. Faltam, é claro, as condições objetivas: educação e dinheiro, mas, pouco a pouco, essa situação vem se revertendo.
Embora 10% da população brasileira ainda detenha 75,4% do total das riquezas do país, a renda da parcela mais pobre vem conhecendo melhorias significativas — em 2008, segundo dados do Instituto de Pesquisas Econômicas (Ipea), esse número foi igual a 22%, enquanto o crescimento da renda da parcela mais rica, no mesmo período, foi de 4,9%. Por outro lado, de acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), o número de alunos inscritos no ensino universitário cresceu 150% entre 1994 e 2004 — embora, evidentemente, falte muito ainda para alcançarmos um ensino de qualidade e para conhecermos um país socialmente mais justo.
A questão é que, diante do tamanho da nossa população e da quantidade de pessoas que ainda não consomem livros, pelas razões expostas, o mercado brasileiro é potencialmente interessante para os grandes conglomerados editoriais. Não é à toa que gigantes espanhóis e portugueses têm aportado com fome por aqui. A tendência, registrada nos últimos anos, é a de concentração da produção de livros em alguns poucos selos — cerca de 50 das 500 empresas existentes são enquadradas, pelo faturamento, como grandes ou médias, restando às pequenas e micro um público bastante pulverizado. E quem são e como sobrevivem essas empresas é a pergunta que começa a ser respondida a partir deste número. Boa parte vem percebendo que restam nichos não cobertos pelas grandes e médias editoras e apostam neles. Nesta edição, por exemplo, apresentamos uma editora que encontrou seu nicho no gênero (Editora Mulheres), outra que sobrevive como ONG (LetraSelvagem). Vamos tentar entrevistar o maior número possível de editores (deixando de lado os selos que sobrevivem unicamente com edições contra pagamento do autor).
Editora Mulheres
Fundada em 1996, inspirada em sua congênere francesa, Des Femmes, a Editora Mulheres (www.editoramulheres.com.br), de Florianópolis (SC), conta hoje com 80 títulos lançados, entre eles a quase totalidade dos romances da paulista Julia Lopes de Almeida (1862-1934), uma das mais importantes (e injustiçadas) escritoras brasileiras. Zahidé Lupinacci Muzart conta que, ao se aposentar, tinha oito orientandas de mestrado e um projeto de resgate de escritoras do século 19, com apoio do CNPq. “No início da pesquisa, era voz corrente de que aquelas mulheres nada tinham escrito, e, por conseguinte, menos ainda publicado. Logo ficou claro, que, na verdade, não só escreveram e publicaram uma grande quantidade de textos, mas, bem mais que isso, que esses textos constituíam um legado de boa qualidade literária e de valor histórico inquestionável”. Assim, com o objetivo de reeditar livros de escritoras do passado, ela, junto com uma colega, Susana Funck, fundou o selo, tocado hoje apenas por Zahidé.
A Editora Mulheres publica basicamente autoras do século 19, ensaios sobre feminismo e estudos de gênero. Além dos três volumes de Escritoras brasileiras do século XIX, uma antologia que reúne, em suas mais de 3 mil páginas, cerca de 150 autoras, os livros que mais lhe deram projeção foram Úrsula, de Maria Firmina dos Reis (1825-1917), o primeiro romance de uma mulher negra no Brasil, editado em 1859, e Masculino feminino plural, ensaios organizados por Joana Maria Pedro e Miriam Grossi. O processo de edição ocorre com o envio do texto para duas pareceristas e só depois de recebidos os pareceres (e se forem favoráveis) são feitos o orçamento e o planejamento da publicação, que a editora banca parcialmente, com a participação efetiva do autor. Os próximos títulos previstos, até julho, são o romance O perdão, de Andradina de Oliveira, com organização de Rita Terezinha Schmidt (no prelo) e Estudos In(ter)disciplinados: gênero, feminismos, sexualidades, conjugalidades, organização de Mara Coelho de Souza Lago, Miriam Pillar Grossi e Adriano Henrique Nuernberg; Mulher e literatura – 25 anos: raízes e rumos, organização de Cristina Stevens; O Oriente não é longe daqui¸ensaio de Fernanda Müller e Gênero e geração em contextos rurais, organização de Parry Scott; Rosineide Cordeiro e Marilda Menezes. As tiragens são, em média, de 500 exemplares.
Editora LetraSelvagem
Responsável pelo relançamento do excelente romance Deus de Caim, do escritor matogrossense Ricardo Guilherme Dicke (1936-2008), em sua terceira edição, a LetraSelvagem (www.letraselvagem.com.br), de Taubaté (SP), fundada em 2007, é um selo editorial que integra o patrimônio da entidade cultural sem fins lucrativos, Associação Cultural LetraSelvagem. Trata-se de uma Organização Não-Governamental sui generis, explica seu atual presidente, o escritor Nicodemos Sena, pois há uma cláusula em seus estatutos que veda a aceitação de qualquer ajuda do erário público. “A LetraSelvagem foi criada como um ente da sociedade civil que visa reforçar a cidadania em contraposição ao poder aliciador e corruptor do Estado e às forças impositivas do mercado. Visa agregar e dar visibilidade aos que não entraram ou foram excluídos do ‘jogo’. Procura resgatar antigos valores, numa sociedade dominada pelo dinheiro. Não tem sócios nem ‘donos’, pois não visa lucro.”
Em dois anos, a editora lançou oito títulos, entre poesia e romance, sendo que um de seus livros, Anima animalis — Voz de bichos brasileiros, de Olga Savary, ganhou o Prêmio da APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes) como o “melhor livro de poesia editado no Brasil em 2008”. A intenção da editora, ainda segundo Sena, é promover o gosto pela leitura e resgatar autores e livros de alto nível literário mas que, por razões extraliterárias, caíram no esquecimento. “Esta valorização da literatura de boa qualidade se estende a autores e livros de outros países da América Latina e mesmo da África”, explica Sena. Com seis títulos previstos para este ano (os próximos são os romances Gente pobre, de Dostoievski; A maldição de ondina, do português-moçambicano António Cabrita e O sal da terra, de Caio Porfírio Carneiro), a idéia é, a partir do ano que vem, passar para dez títulos anuais. E nesse caso, estão previstos os romances Selva trágica, de Hernâni Donato; Os desvalidos, do mexicano Mariano Azuela; Sombras sobre a terra, do uruguaio Francisco Espínola, entre outros.
Sena explica que a editora banca integralmente as edições, pois se recusa a se tornar mais um “caça níquel” na área do livro ou “explorar autores incautos”. “Contudo, por não aceitar ‘ajuda’ do erário público e não se prestar a ser chapéu para negócios escusos, vê-se na contingência, aliás salutar, de depurar os critérios para a aceitação dos textos que lhe são apresentados e não errar na escolha dos livros a serem reeditados”. As tiragens, atualmente de mil exemplares, devem passar para 1,5 mil no ano que vem.