Júlia (3)

A evolução de Júlia Lopes de Almeida como romancista
01/12/2008

Tivesse Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) se limitado a colaborar em jornais e revistas, sempre defendendo a importância da educação das crianças e a valorização do papel da mulher na sociedade, já lhe caberia o honroso lugar de uma das mais importantes vozes feministas brasileiras. Mas Júlia fez mais: escreveu romances refinados, onde descreve com elegância e precisão as encruzilhadas da mulher na sociedade de fins do Século 19 e princípios do século 20, não se esquivando de enfrentar temas complexos e polêmicos para a época.

O primeiro romance escrito (e segundo editado) de Júlia Lopes de Almeida foi A família Medeiros, que aparece em folhetins no jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, entre 16 de outubro e 17 de dezembro de 1891, e em livro no ano seguinte[1]. O crítico Wilson Martins afirma que o livro, iniciado em 1886 e concluído em 1888, “não foi imediatamente publicado, porque o advento da Abolição pareceu, por um momento, ter-lhe tirado o interesse; agora [1892], quando os negros passaram a ser abertamente atacados e novas formas de escravidão congeminadas pelos pais da Pátria, a história adquiria inesperada atualidade”[2]. Martins questiona alguns defeitos do livro: “diálogos artificiais, notas de rodapé explicando ou justificando peculiaridades da língua, de vocabulário ou de costumes, e, bem entendido, a intenção moralizante: os personagens dividem-se em dois grupos nítidos: os escravocratas, todos criminosos, perversos e desumanos, contrastando com os abolicionistas, todos nobres, generosos e esclarecidos”[3]. Ainda assim, não tem dúvida em apontá-lo como o melhor romance publicado naquele ano — o que não é pouco se levarmos em consideração serem estes os primeiros passos da autora na prosa de ficção.

Seu segundo romance escrito (e primeiro publicado em livro), Memórias de Marta, apareceu, segundo a pesquisadora Rosane Saint-Denis Salomoni[4], em folhetins na Tribuna Liberal, do Rio de Janeiro, entre 3 de dezembro de 1888 e 18 de janeiro de 1889[5], portanto, antes de A família Medeiros. Curiosamente, o livro antecipa o tema da obra-prima de Aluísio Azevedo (1857-1913), O cortiço, publicado em 1890. A narrativa de Júlia, lançada em livro em 1889[6], centra-se na história de Marta, que, após a morte do pai, vai com a mãe morar num cortiço na Cidade Nova, e lá convive com personagens também encontrados no romance de Azevedo: a família de portugueses miseráveis, a moça bonita que termina na prostituição, a ganância do proprietário das casas… Enfim, num ambiente promíscuo e vicioso, Marta tenta sobreviver dignamente e, embora chegue a formar-se professora, somente por meio de um casamento de conveniência consegue deixar para trás aquela vida de privações.

Fino estudo psicológico
Em 1895, Júlia volta a usar as páginas do jornal Gazeta de Notícias para publicar outro folhetim, A viúva Simões, lançado em livro dois anos depois[7]. Wilson Martins, normalmente econômico em elogios, afirma ser esse “um excelente romance, de grande força dramática, escrito num estilo brilhante e enxuto, com perfeito desenvolvimento narrativo.”[8] A bela viúva do Comendador Simões, mulher honesta e recatada, mãe discreta e dedicada, vê-se no centro de uma avalanche emocional ao reencontrar, depois de vinte anos, um antigo namorado, ainda solteiro, galante, sedutor. Atiçada em sua sensualidade reprimida, ela não mede esforços para reconquistar seu amor, enfrentando tudo e todos para alcançar a felicidade, colocando-se contra até mesmo sua filha, quando esta, sem o saber, disputa-lhe o mesmo homem. Um fino estudo psicológico, que acompanha a derrocada vertiginosa de um lar burguês do entresséculos.

João do Rio, numa célebre reportagem com a escritora, afirma: “este cenário [“trechos da Gamboa, trechos centrais, torres de igreja, a cúpula da Candelária, tetos envidraçados dos frontões, altas chaminés das fábricas, palácios, casas miseráveis, pedaços de mar obstruídos de mastros”] lembra-me sempre aquele livro seu — A viúva Simões. Não imagina a impressão desse trabalho na minha formação de pobre escrevinhador”[9]. E anota: “há muita gente que [a] considera o primeiro romancista brasileiro”[10], isto nos primeiros anos do século 20, já que as entrevistas foram publicadas no jornal Gazeta de Notícias ao longo de 1904 e 1905, antes de serem enfeixadas em livro dois anos depois.

Neste momento, Júlia está em plena posse de sua arte narrativa. Em 1901 publica aquele que vem a ser sua obra-prima, A falência[11], um romance que se insere na corrente realista brasileira, que, nascendo nas melhores páginas urbanas de José de Alencar (1829-1877), realiza-se à perfeição nos contos e romances de Machado de Assis (1839-1908). Parece que Júlia Lopes de Almeida tinha plena consciência da importância desse “excelente romance de inspiração eciana”[12] em sua obra. Em nota escrita provavelmente entre 1932-1933, segundo informações de Rosane Saint-Denis Salomoni, a autora relembra: “escrevi este romance duas vezes. A primeira em solteira, e dessa primeira fatura figuram dois capítulos no meu livro de contos Traços e iluminuras, escrito ainda como meu nome de solteira. Esse romance rasguei-o, sentindo que lhe faltava o que o seu assunto exigia e que só depois de mulher eu poderia dar completamente o conhecimento da vida. A idéia ficou cantando no meu espírito e só depois de muitos anos de casada e cinco vezes mãe, foi que o escrevi do primeiro ao último capítulo definitivamente”[13].

Livro trabalhado
Também José Veríssimo, contemporâneo da autora, afirma que com A falência Júlia Lopes de Almeida “toma decididamente lugar, e não somenos, entre os nossos romancistas”[14]. Crítico exigente, Veríssimo afirma: “os acostumados a julgar esta espécie de obras, se leram outros livros da autora, não custarão a perceber que é um livro trabalhado, mas daquele trabalho que honra e eleva o artista, ao invés de diminuí-lo. Julgando-o em comparação com a nossa produção somente, esse novo romance de D. Júlia Lopes é obra de merecimento, de bastante merecimento, sem ser entretanto nem uma obra superior, nem uma obra forte, como hoje se diz”[15]. Finalmente, conclui, dizendo que um dos melhores elogios a este livro é de que se trata de “um escritor já na posse de todos os seus meios”[16]. Martins, mais entusiasmado, escreve que “depõe mais contra a crítica e os leitores do que contra a romancista que um romance dessa qualidade tenha praticamente caído no esquecimento”[17].

Rosane Saint-Denis Salomoni afirma que, no mesmo ano em que foi publicado, A falência alcançou uma segunda edição, “devido ao apreço do público”[18] e uma terceira edição no ano seguinte. Fato é que este é dos poucos romances de Júlia que não passou antes pelo crivo dos leitores diários dos jornais, já que não foi publicado em folhetins, o que tinha ocorrido com os três primeiros títulos (além de A Casa Verde, escrito a quatro mãos com o marido Filinto de Almeida[19]) e o que aconteceria também com o novo romance, A intrusa, que, segundo Salomoni, foi publicado em folhetins no Jornal do Comércio, em 1905[20], e em livro três anos depois[21]. Dele disse Martins (um dos poucos críticos a se debruçar sobre a obra de Júlia): a autora “representa, talvez, o ponto mais alto do nosso romance realista e, apesar da língua algo lusitanizante, não perderia no confronto com Aluísio Azevedo (vítima do mesmo mal). É ela um dos nossos romancistas do passado a exigir urgente releitura e reavaliação”.[22]

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Notas

[1] Rio de Janeiro: s/ed, 1892. A segunda edição, revista: Rio de Janeiro: Empresa Nacional de Publicidade, 1919.

[2] In: História da Inteligência Brasileira. 2ª edição. São Paulo: T.A. Queiroz Editor, 1996. Volume IV (1887-1896), p. 400.

[3] Idem, pág. 399.

[4] V. Introdução. Memórias de Marta. (4ª edição). Florianópolis/Santa Cruz do Sul: Editora Mulheres/Edunisc, 2007, p. 7-20.

[5] Esta informação não consta do exaustivo levantamento de TINHORÃO. José Ramos. Os romances em folhetins no Brasil (1830 à atualidade). São Paulo: Duas Cidades, 1994.

[6] Sorocaba: Casa Durski, 1889. Segundo pesquisas de Rosane Saint-Denis Salomoni, o romance teve uma segunda edição dez anos depois e uma terceira pela Livraria Francesa e Brasileira Truchy-Leroy, (Paris, 1930).

[7] Lisboa: Antônio Maria Pereira, 1897. A segunda edição: Florianópolis/Santa Cruz do Sul: Editora Mulheres/Edunisc, 1999.

[8] Op. Cit. Volume V (1897-1914), p. 12.

[9] Idem, p. 31.

[10] RIO, João do. O momento literário. 2ª edição. Organização Rosa Gens. Rio de Janeiro: Edições do Departamento Nacional do Livro/Fundação Biblioteca Nacional, 1994, p. 33.

[11] Rio de Janeiro: Oficina de Obras d”A Tribuna, 1901. Segunda edição: São Paulo: Hucitec/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1978. Terceira edição: Florianópolis/Santa Cruz do Sul: Editora Mulheres/Edunisc, 2003.

[12] MARTINS, Wilson. Op. Cit, Volume V (1897-1914), p. 195.

[13] ALMEIDA, Júlia Lopes de. A Falência. 4ª edição. Florianópolis/Santa Cruz do Sul: Editora Mulheres/Edunisc, 2003. Contracapa. Em correspondência com o autor, a pesquisadora Rosane Saint-Denis Salomoni corrigiu a data divulgada anteriormente, que dava a informação como sendo provavelmente de 1902.

[14] “Um romance da vida fluminense”. In: Estudos de Literatura Brasileira. 5ª série. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1977, p. 79.

[15] Idem, p. 82.

[16] Ibidem, p. 84.

[17] Op. Cit. Volume V (1897-1914), p. 195.

[18] Op. Cit, p. 25.

[19] Publicado entre 18 de dezembro de 1898 e 16 de março de 1899 nas páginas do Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, sob o pseudônimo comum de A. Julinto. V. TINHORÃO, José Ramos. Op. Cit. p. 80. Curiosamente, o pesquisador cita apenas o nome de Júlia Lopes de Almeida como autor do folhetim. No entanto, à página 88, aponta uma nova publicação do folhetim no mesmo Jornal do Comércio, em 1932, em que dá crédito a ambos, marido e mulher, sem o pseudônimo…

[20] Informação que não consta em TINHORÃO.

[21] Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1908. A segunda edição: Porto: Livraria Simões Lopes, 1935. A terceira edição: Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Livro/Fundação Biblioteca Nacional, 1994.

[22] Op. Cit. Volume V (1897-1914), p. 384.

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

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