Júlia (2)

As causas femininas na obra de Júlia Lopes de Almeida
01/11/2008

Disse anteriormente que considero Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) um dos escritores mais injustiçados da literatura brasileira. E creio mesmo que, colocada ao lado dos mais importantes autores da virada do século 19 para o 20, como Coelho Neto (1864-1934), Graça Aranha (1868-1931) e João do Rio (1881-1921), sua obra sobressaia, pela expressão política, coerência temática e excelência estética. Nisso, talvez se ombreie a Lima Barreto (1881-1922), tendo feito pela reflexão do papel da mulher na sociedade brasileira o que aquele fez pela questão do negro, com sua denúncia veemente contra o preconceito racial.

Ao longo de sua vida, Júlia Lopes de Almeida publicou dez romances, três coletâneas de contos e novelas, três compilações de crônicas, quatro peças de teatro, três seleções de contos infantis e seis livros diversos, entre relatos de viagem e conferências. E é interessante, e sintomático, o fato de que sua carreira se inicie com a publicação, em 1886, ou seja, quando tinha 24 anos, de um livro intitulado Contos infantis[1], em colaboração com sua irmã, Adelina Lopes de Almeida (1850-??), de intenções claramente pedagógicas. Adotado oficialmente pelas escolas primárias do Brasil, o volume chegou a 17 edições até 1927: são 58 textos, alternando textos em prosa de Júlia e poemas próprios ou traduzidos de Adelina. Ela ainda publicou, no contexto do que hoje classificaríamos de paradidático, mais dois títulos: Histórias da nossa Terra[2], que alcançou 21 edições até 1930, e Era uma vez…[3].

A pesquisadora Rosa Maria de Carvalho Gens afirma que cabe a Júlia Lopes de Almeida posição de destaque por perceber a importância do público infantil. “No prólogo à segunda edição, assinado pelas autoras, encontra-se o protocolo da leitura, que estabelece de saída o caráter moral: ‘Os Contos infantis são umas narrações singelas, em que procuramos fazer sentir aos pequeninos paixões boas, levando-os com amenidade de história a história’. (…) No entanto, para leitores posteriores, não se acham muito apreensíveis tais traços, desejados pelas autoras e que devemos configurar um modelo de leitura. Pelas narrativas passam meninas pobres, mas honestas e dignas, pombinhos mansos, burrinhos trabalhadores e pacientes, mães carinhosas, mas também crianças cruéis com animais, que recebem castigo, muito longe do tom ameno a ser perseguido. As narrativas são plasmadas por linguagem de clave bastante culta, com escolha lexical refinada”[4].

O objetivo das autoras, argumenta Rosa Gens, é “encaixar, através da disseminação de hábitos, valores e de estruturas de linguagem, a infância na sociedade”[5]. O sentido moral e formador aparece também em Era uma vez… Segundo ela, “a escritora acreditava na missão de educar, com a nítida firmeza de que, através dela, o país se desenvolveria. O procedimento traz a dimensão da época, de nítida diretriz desenvolvimentista, enfatizando-se na concepção do mundo infantil como um degrau para o adulto”[6].

Contos
Essa preocupação com a educação das crianças — indiscutivelmente uma preocupação política[7] —, Júlia terá também em relação à mulher. Antes de se aventurar pelo romance, a escritora publicou uma coletânea de contos, Traços e iluminuras, em 1887[8], seguido mais tarde por Ânsia eterna, de 1903[9], além de A isca, composto por quatro novelas[10]. Lúcia Miguel-Pereira, num julgamento do qual discordo, chega a afirmar que “os contos de Ânsia eterna parecem todavia a sua melhor obra, aquela em que, sem nada perder de sua singeleza, ela aproveitou com mais arte os seus recursos de escritora e deixou mais patente a sua sensibilidade”[11]. Este livro, composto por 28 histórias curtas, incluindo O caso de Ruth, publicado originalmente em folhetins em 1897[12], no Almanaque da Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, e o exaustivamente antologizado A caolha (que, aliás, nem é o seu melhor conto), possui algumas dedicatórias que chamam a atenção.

Dos 28 contos, 18 são ofertados, sendo 11 a famosos colegas das letras, a maioria muito provavelmente freqüentadora do “Salão Verde”[13]: os poetas Raimundo Correia (1859-1911) e Olavo Bilac (1865-1918), os comediógrafos Artur de Azevedo (1855-1908) e Batista Coelho (1877-1916), este mais conhecido sob o pseudônimo de João Foca, os romancistas Machado de Assis (1839-1908) e Coelho Neto (1864-1934), os intelectuais Lúcio de Mendonça (1854-1909), Valentim Magalhães (1859-1903), Magalhães de Azeredo (1872-1963), João Luso (1874-1950) e o chargista Julião Machado. Mas o que interessa, no caso, são as sete dedicatórias destinadas a mulheres, todas elas, como a própria Júlia, engajadas na luta pelo reconhecimento do papel da mulher na sociedade, correligionárias suas de A Mensageira revista literária dedicada à mulher brazileira, publicada quinzenalmente (mensalmente a partir do primeiro ano) entre 15 de outubro de 1897 e 15 de janeiro de 1900. Dirigida por Presciliana Duarte de Almeida (1880-1910), a quem Júlia dedica o conto A morte da velha, a revista foi o mais importante porta-voz das reivindicações das mulheres no período da República Velha — o direito à educação e ao voto —, além de ter apoiado as lutas anticolonialistas e se batido pelo pacifismo.

Em A Mensageira brilharam, desde o primeiro número, a gaúcha Maria Clara da Cunha Santos (1886-1911)[14], poeta e colaboradora assídua com sua Carta do Rio, a quem Júlia dedica A boa lua; as poetas Júlia Cortines (1868-1948)[15], fluminense de Rio Bonito, a quem dedica O último raio de luz, e Francisca Júlia (1871-1920)[16], a quem oferece A casa dos mortos; e Zalina Rolim (1869-1961)[17], também poeta, mas mais conhecida como educadora, a quem oferta As três irmãs. Em Ânsia eterna, Júlia ainda lembra-se da portuguesa Branca de Gonta Colaço (1880-1945)[18], no conto O lote 587, que possivelmente conheceu em uma de suas estadas em Lisboa, e da espanhola Eva Canel (1857-1932), no conto A caolha, com quem provavelmente manteve contato durante sua viagem a Buenos Aires, em 1922[19], cidade onde esta morava à época.

Para encerrar este capítulo, digamos assim “extra-literário”, recordemos que Júlia Lopes de Almeida era tratada, no entresséculos, como autora de indiscutível valor no cenário das letras contemporâneas. Em 1897, ano em que surge seu romance A viúva Simões em livro[20], Júlia aparece como personagem literária (e combatente das causas feministas) tão importante que cabe a ela apresentar A Mensageira aos leitores e leitoras brasileiros. Em um interessantíssimo texto intitulado Duas palavras, Júlia afirma: “A mulher brasileira conhece que pode querer mais, do que até aqui tem querido; que pode fazer mais do que até aqui tem feito. (…) Esta revista, dedicada às mulheres, parece-me dever dirigir-se especialmente às mulheres, incitando-as ao progresso, ao estudo, à reflexão, ao trabalho e a um ideal puro que as nobilite e as enriqueça, avolumando os seus dotes naturais. // Ensinará que, sendo o nosso, um povo pobre, as nossas aptidões podem e devem ser aproveitadas em variadas profissões remuneradas e que auxiliem a família, sem detrimento do trabalho do homem”[21]. Este pensamento, visto em seu contexto, embora prudente, extremamente revolucionário para um país machista e paternalista, a escritora aprofundará em seus romances, tema do nosso próximo artigo.

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Notas
[1] Lisboa: Companhia Editora, 1886.

[2] Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1907.

[3] Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1917.

[4] “Mulheres escrevem para crianças”. In: BRANDÃO, Izabel e MUZART, Zahidé L. Refazendo Nós. Florianópolis/ Santa Cruz do Sul: Editora Mulheres/Edunisc, 2003. p. 117-118.

[5] Idem, p. 118.

[6] Idem, p. 120.

[7] Não cabe aqui uma discussão a respeito de que valores morais defendia a autora — mas, talvez, apenas para efeito de reflexão, devamos lembrar que Júlia Lopes de Almeida pertencia a uma elite urbana e intelectualizada, num país rural e inculto. Só para termos uma idéia, em 1886, ano de lançamento de Contos Infantis o Brasil tinha apenas 1,6% da população alfabetizada… Portanto, defender a educação de moral burguesa num país que relevava a escolarização, principalmente a feminina, e cultuava valores aristocráticos rurais deve ser visto como algo bastante progressista…

[8] Lisboa: Tipografia Castro & Irmão, 1887.

[9] Rio de Janeiro: H. Garnier, 1903. É possível que, entre esta edição e a de 1938, póstuma (“nova edição, refundida pela autora” — Rio de Janeiro: A Noite), tenha havido outras, já que, no prefácio dos editores, consta: “Desde há muito esgotadas as primeiras edições desta extraordinária coleção de contos, e não cessando a sua procura nas livrarias nem os pedidos à ilustre autora para sua re-publicação (sic), resolveu ela, no último ano de sua vida (1934), recompor a obra para esta nova edição, suprimindo alguns contos e acrescentando outros escritos mais tarde”.

[10] Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, 1922. As novelas são: A isca, O homem que olha para dentro, O laço azul e O dedo do velho.

[11] Prosa de Ficção (de 1870 a 1920). 3ª edição. Rio de Janeiro/Brasília: José Olympio Editora/MEC, 1973, p. 271.

[12] V. TINHORÃO, José Ramos. Os romances em folhetins no Brasil. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1994, p. 79-80.

[13] Casarão do casal Júlia Lopes de Almeida e Filinto de Almeida situado no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, espaço freqüentado por artistas, intelectuais e jornalistas durante 21 anos, entre 1904 e 1925.

[14] Nascida em Pelotas, foi jornalista, poeta, contista e artista plástica. Publicou: Pirilampos (1890, poemas), Painéis (1902, contos), América e Europa (s/d, crônicas de viagem) e A alegria e o bom humor (s/d, conferência).

[15] De família culta e abastada, deixou dois livros de poemas, que tiveram bastante repercussão na época: Versos (1894) e Vibrações (1905).

[16] Nascida em Eldorado (SP), ainda menina radicou-se na capital paulista. Colaboradora de diversos jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, publicou em 1895 seu livro de poemas Mármores, que a consagrou com um dos mais importantes poetas parnasianos. Dedicou-se também à literatura para crianças, publicando em 1899 O livro da infância, pequenos textos em prosa e verso, que obteve ampla divulgação.

[17] Paulista de Botucatu, desde cedo se dedicou à alfabetização de crianças. Em São Paulo, lutou pela criação e instalação do Jardim da Infância, anexo ao curso normal para formação de professores, dirigido pelo professor Antônio Caetano de Campos. Publicou: O Coração (1893, poemas) e O livro das crianças (1897, poemas para crianças).

[18] Dramaturga e poeta, filha do político e escritor português Tomás Ribeiro, colaboradora em inúmeros jornais e revistas da época, casou-se aos 18 anos com um famoso azulejista, Jorge Rey Colaço. Manteve intensa atividade intelectual e deixou vários livros publicados.

[19] Aos 15 anos, Eva Canel já trabalhava no teatro, meio onde conheceu Eloy Perillán Buxó, com quem se casa. Em 1874, em conseqüência da publicação de um livro, Buxó é desterrado para a Bolívia, onde posteriormente o casal se reúne, Eva volta à Espanha em 1882, para onde o marido regressa dois anos depois, morrendo em seguida. Radicada em Barcelona, continua colaborando em jornais espanhóis e americanos. Em 1891, vai para Cuba, onde, durante a guerra pela independência, posiciona-se favoravelmente a seu pais natal. Volta para a Espanha e em 1899 fixa residência em Buenos Aires, onde colabora com jornais e revistas locais e dedica-se a conferências por todo o continente. Em 1914, volta para Cuba, onde morre em 1932 na pobreza. Deixou publicados livros de contos, novelas, teatro, crônicas e ensaios.

[20] Publicado originalmente em folhetins no jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 1895.

[21] A Mensageira. Edição facsimilar. Volume I. Anno I — Numero 1 — São Paulo, 15 de outubro de 1897 — p. 5-7. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado/Secretaria de Estado da Cultura, 1987.

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho