Passados vinte anos da publicação da primeira antologia de contos brasileiros, vieram a lume duas novas contribuições para a construção do cânone da literatura brasileira, com caráter bastante distinto daquela tentativa de Alberto de Oliveira e Jorge Jobim[1], que, como vimos em artigo anterior, encerrava uma clara intenção de referendar a Academia Brasileira de Letras como repositório natural da cultura brasileira. Agora, sob o impacto das transformações políticas promovidas pela Revolução de 30, que havia contrariado os velhos interesses da oligarquia mineiro-paulista, e das transformações estéticas introduzidas pelas idéias modernistas afinal vitoriosas, pensava-se o Brasil de maneira diversa. Exigia-se uma literatura mais “engajada” na discussão da identidade nacional, e menos “exótica”, e para isso valorizava-se, nos autores antigos, o que de “moderno” eles pudessem conter.
Além disso, se os poetas até o fim da República Velha mantiveram-se em posição de destaque na sociedade, com poder de controlar a política literária (“a poesia era tida como o gênero social e intelectualmente mais rentável”[2] e não é à toa que Alberto de Oliveira emprestara seu prestígio à nossa primeira antologia de… contos), agora cediam espaço para os ficcionistas, devido principalmente à consolidação do mercado editorial brasileiro, pois romances e contos registravam “maior aceitação” do público, possibilitando uma comercialização mais segura do livro. Por outro lado, a crítica (mesmo que ainda formada basicamente por jornalistas especializados em literatura) assumia com mais empenho o papel de estabelecer os critérios de “canonicidade” dos autores.
Mudam-se os personagens: homens como Alberto de Oliveira, consagrado poeta, irretorquível em suas preferências aos 65 anos, idade que tem quando organiza Contos brasileiros, dão lugar a jovens desconhecidos na tarefa de referendar autores e obras. Tem 28 anos, em 1942, Donatello Grieco, filho do irascível crítico Agripino Grieco (1888-1973), ao publicar sua Antologia de contos brasileiros, pela Editora A Noite, do Rio de Janeiro[3]. Também 28 anos tem Almiro Rolmes Barbosa e 32 anos Edgard Cavalheiro (1911-1958), quando lançam Obras primas do conto brasileiro, pela Editora Martins, de São Paulo, em 1943.
A recolha de Donatello Grieco é surpreendente, pois, de sua lista de 16 autores, alguns recém-publicados, a maioria manteria seu nome inscrito nos manuais de literatura futuros. Ao lado de Machado de Assis (1839-1908), sua opção, entre os que haviam estruturado uma carreira, recai sobre Artur de Azevedo (1855-1908), Afonso Arinos (1868-1916) e João do Rio (1881-1921)[4], já mortos à época, e Alberto Rangel (1871-1945), Monteiro Lobato (1882-1948) e Gastão Cruls (1888-1959), ainda vivos. Além disso, recupera três “esquecidos” — J. Simões Lopes Neto (1865-1916), Valdomiro Silveira (1873-1941)[5] e Lima Barreto (1881-1922) — e faz suas apostas em nomes “novos”, Antônio de Alcântara Machado (1901-1935), já falecido, e Mário de Andrade (1893-1945), Ribeiro Couto (1898-1963), Darci Azambuja (1903-1970) e Marques Rebelo (1907-1973), estes em plena atividade. Infelizmente, de Otávio de Teffé (?-1927?) não consegui obter maiores dados biobibliográficos.
Escolhas
Em relação à lista de Alberto de Oliveira, Donatello Grieco aceita apenas sete autores, eliminando todos aqueles execrados pelos primeiros modernistas como antiquados ou passadistas (Coelho Neto à frente, como símbolo a combater), os fundamentalmente romancistas, críticos literários e poetas e os diletantes. Talvez cometa pelo menos um grande equívoco, quando, ignorando Julia Lopes de Almeida (1862-1934) e Hugo de Carvalho Ramos (1895-1921), inclui Otávio de Teffé, que sucumbirá sem deixar rastros. Entre os “novos”, Alcântara Machado, prematuramente desaparecido, Ribeiro Couto e Mário de Andrade já desfrutavam de fama à época, principalmente em função do extenuante trabalho de divulgação e “catequização” realizado pelo último. Dos “novíssimos”, Darci Azambuja tornara célebre sua coletânea No galpão, lançada em 1925, e recentemente editara Romance antigo(1940), enquanto Marques Rebelo já dera ao público o melhor de sua pena: Oscarina, Três caminhose Stela me abriu a porta (contos) e Marafae A estrela sobe (romances).
De natureza bastante diversa é a antologia Obras primas do conto brasileiro, surgida um ano depois da seleta de Donatello Grieco. Os organizadores, Almiro Rolmes Barbosa e Edgard Cavalheiro, partiram do resultado de um inquérito patrocinado pela Revista Acadêmica[6], que, ouvindo “as figuras mais destacadas dos nossos círculos literários”, propunha-se a apurar quais eram os dez melhores contos brasileiros de todos os tempos. “Verificamos, porém, que dez contos seriam pouco, muito pouco para formar um panorama mais ou menos completo do conto brasileiro; mesmo porque inúmeros nomes foram significativamente votados e somente por acaso não ocuparam um dos dez lugares estabelecidos pelo regulamento do concurso.”[7] Então, ampliaram a lista para 28 trabalhos, acrescentando, por conta própria, duas fábulas populares, recolhidas por Barbosa Rodrigues (1842-1909) e por Lindolfo Gomes (1875-1953), fato bastante significativo se lembrarmos que o momento era de busca de nossas raízes mais profundas.
Por outro lado, Barbosa e Cavalheiro constataram, surpresos, que “quase todos” os escritores divergiam dos entrevistados pela Revista Acadêmica quanto aos seus contos escolhidos, e, então, na antologia foi dada preferência aos títulos apontados pelos próprios autores, o que amplia ainda mais o interesse pelo livro, tanto por parte dos pesquisadores quanto por parte do público em geral, que o transformou num grande sucesso editorial, haja vista as sucessivas edições tiradas entre os anos 1940 e 1960[8]. Prevendo contestações, os antologistas anotam um habeas-corpus preventivo na introdução: “Estamos vendo daqui os protestos pelas exclusões, não só de certos medalhões, como de inúmeros novíssimos”, e, dando às costas aos primeiros, procuram tranqüilizar os últimos, anunciando a organização de um novo volume “no qual procuraremos dar ao público a justa medida da importância desse grupo”[9] — e citam uma enfiada de 33 nomes, “entre outros”.
Autores consensuais
Bem mais eclética que a interessadamente modernista de Donatello Grieco, a antologia de Barbosa e Cavalheiro contempla autores consensuais, como Afonso Arinos, Artur Azevedo, Hugo de Carvalho Ramos, João do Rio, Machado de Assis e Monteiro Lobato, junto a outros recém-reavaliados, como Lima Barreto, J. Simões Lopes Neto e Valdomiro Silveira (todos eles hoje canônicos). Inclui ainda escritores rebaixados a segundo plano, como Julia Lopes de Almeida, Gastão Cruls e Coelho Neto (1864-1934) — além de José Veríssimo (1857-1916), que, embora tenha um lugar de honra reservado na literatura brasileira como crítico e historiador, não é mais cogitado como ficcionista. Entre os “novos”, nomes consolidados como Antônio de Alcântara Machado, Mário de Andrade e Ribeiro Couto, e outros em ascensão, como Aníbal M. Machado (1884-1964), Graciliano Ramos contista (1892-1953), João Alphonsus (1901-1944), Orígenes Lessa (1903-1986) e Marques Rebelo.
E completando a lista, alguns autores que pouco ou nada nos dizem hoje, como Amadeu de Queiroz (1873-1955), Afonso Schmidt (1890-1964), Peregrino Junior (1898-1983), Ernani Fornari (1899-1964) e Luis Jardim (1901-1987). Não é de estranhar, no entanto, a presença desses nomes, se lembrarmos o caráter abrangente do “círculo literário” que aceitou participar do inquérito da Revista Acadêmica, resultado seguido de perto por Barbosa e Cavalheiro. Só para termos uma idéia das ainda não muito claras referências do gosto estético vigente à época, tomemos a resposta do “Papa do Modernismo”, Mário de Andrade, ao questionário, coligida no número 38, de agosto de 1938, em que, fazendo mofa — “os dez melhores contos da literatura brasileira são, pelo menos, duas dúzias” —, cita, entre outros de sua preferência, contos de Roque Callage (1888-1931), Léo Vaz (1890-1973), Menotti del Picchia (1892-1961) e Prudente de Morais, Neto (1904-1977)[10].
A partir da década de 1950, as antologias de contos iriam ganhar fôlego e se multiplicar, defendendo posições de grupos, etnias, gêneros, até tornarem-se quase onipresentes, como nas estantes das livrarias nos dias de hoje. Para além de proporcionar ao público a possibilidade de tomar conhecimento das inclinações de vários autores num único livro — numa espécie de “degustação literária” que o encaminha para um banquete posterior —, esse tipo de livro continua sendo um dos mais importantes e eficazes meios de fazer política literária.
Notas
[1] Contos Brasileiros. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1922.
[2] MICELI, Sérgio. Intelectuais à Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 (p. 159).
[3] Da edição não conta a data de publicação, mas sigo nota presente em: COUTINHO, Afrânio. SOUSA, J. Galante de. Enciclopédia de Literatura Brasileira. São Paulo/Rio de Janeiro: Global/Fundação Biblioteca Nacional/Academia Brasileira de Letras, 2001. (Volume I, p. 801). Há uma segunda edição, com o título O livro de bolso dos Contos Brasileiros (Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1964).
[4] Embora com toda razão o crítico Renato Cordeiro Gomes, em seu excelente ensaio João do Rio (Rio de Janeiro: Agir, 2005 – Coleção Nossos Clássicos), lembre o “quase esquecimento a que fora relegado” o autor, é interessante observar que, pelo menos até a década de 1950, inclusive, o nome de João do Rio aparece em quase todas as antologias.
[5] A bem da verdade, Valdomiro Silveira, publicando contos esparsos em jornais desde 1894, só terá sua obra editada em livro a partir de 1920, com Os Caboclos, seguido de Nas Serras e nas Furnas (1931), Mixuangos (1937) e Leréias (1945).
[6] Dirigida por Murilo Miranda (1912-1971), a Revista Acadêmica, fundada em 1933, tirou 70 números até 1945, e se transformou num bastião do Modernismo no Rio de Janeiro.
[7] BARBOSA, Almiro Rolmes. CAVALHEIRO, Edgard. Obras primas do Conto Brasileiro. 10ª edição. São Paulo: Martins, 1966 (p. XII-XIII).
[8] Foram 10 edições, a saber: 1943, 1947, 1950, 1952, 1954, 1955, 1957, 1962, 1964 e 1966.
[9] Parece, no entanto, que este novo volume não chegou a ser publicado.
[10] ANDRADE, Mário de. Entrevistas e depoimentos. Edição organizada por Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: T.A. Queiroz, Editor, 1983 (p. 54)