O tempo da escrita

A escrita literária é sempre um reflexo da experiência e da personalidade do autor
James Joyce, autor de “Finnegans wake”
01/12/2012

É comum perguntarem ao escritor quanto tempo ele levou para escrever seu romance, sempre partindo do princípio de que quanto mais tempo demorar, melhor deve ser o resultado. Um ano, melhor nem ler; cinco, já está um pouco melhor; dez, bom, talvez tenha alguma relevância; e se o autor levar 20 anos para terminar o romance, ah, deve ser um gênio. Infelizmente, porém, o processo criativo não é tão simples assim. Primeiro porque, no caso da literatura, a escrita de um livro não começa no momento em que o autor senta diante do computador e digita a primeira palavra. Ela se inicia muito antes, quando o autor tem as primeiras idéias, quando faz as primeiras anotações, quando surgem os primeiros esboços do que poderia tornar-se uma história.

Mas se formos mais longe, veremos que essas primeiras idéias surgem muito antes, surgem no momento em que são vividas, uma briga ou um encontro amoroso, uma decepção, uma vitória, a experiência do luto ou do encanto. Às vezes, momentos da infância — o brinquedo que quebrou ou se perdeu num bueiro, o primeiro dia de aula, as empatias e crueldades —, ou na adolescência, as experiências de uma futura vida adulta. Ou então, nada especial, apenas um dia e um céu de cor indescritível, um aroma, uma frase anotada num pedaço de papel. O livro começa a surgir aí, nessas experiências que permanecem como lembranças, sensações, conceitos, ou diluídas na própria visão de mundo do autor. Se formos mais radicais ainda, poderíamos dizer que um livro começa a ser escrito no momento em que o autor nasce. Porque a escrita, quando literária, é sempre um reflexo (desvirtuado, claro) da experiência e da personalidade desse autor, seus talentos, suas falhas, suas lembranças, medos, alegrias, e até seus esquecimentos, as coisas que ele não sabe e as que ele não sabe que sabe. Tudo isso, num processo misterioso e irreproduzível, será parte do romance.

Como ilustração, podemos usar a velha imagem do iceberg: o texto é a parte visível, enquanto que, submerso, está todo o trabalho de construção desse texto. Assim, por mais que sejamos capazes de estabelecer técnicas, por mais que saibamos da importância da ourivesaria, do esforço diário da escrita, o processo criativo terá sempre o seu aspecto submerso, enigmático. E por isso mesmo não mensurável.

Mas deixemos a teoria de lado e pensemos na prática. Pensemos em clássicos, autores consagrados, pensemos nos extremos. James Joyce passou 17 anos trabalhando no Finnegans wake, obra que por muito tempo foi pensando como um work in progress. Já Dostoiévski, com seus eternos problemas financeiros e submetido a prazos de editor, escreveu Crime e castigo no espaço de um ano, e O jogador em menos de um mês. Finnegans wake é melhor que Crime e castigo? O jogador é um mau livro? Não se trata, claro, de responder essas perguntas, mas de pensar ou repensar certos critérios.

Para não ficar apenas nos clássicos, um bom exemplo de autor contemporâneo com uma extensa obra é o argentino César Aira. A partir da década de 1980, calcula-se uma média de um livro por ano. E trata-se de um dos autores mais originais da atualidade, capaz de subverter as regras da narrativa (que estão aí para isso mesmo) de um modo sempre inesperado. Em Noite de flores, um casal de aposentados resolve trabalhar como entregadores de pizza para se distrair e engordar a aposentadoria. A história segue nesse registro por muitas páginas, até que, de um momento para o outro, nada era o que parecia, e percebemos que na realidade, a história que lemos é outra. Em Cómo me hice monja, o narrador é uma menina de seis anos chamada César Aira, que no início do livro nos promete que contar a história de como se tornou freira, mas nunca mais toca no assunto.

Enfim, talvez a escrita do Finnegans wake tenha começado durante um sonho que Joyce mais tarde esqueceu, talvez Crime e castigo tenha sua origem diante de um pelotão de fuzilamento, quando um Dostoiévski prisioneiro, com orações feitas e capuz cobrindo a cabeça, por uma dessas surpresas do destino, veria sua pena de morte transformar-se em alguns anos de trabalhos forçados. Talvez.

Carola Saavedra

É autora, entre outros, dos romances Flores azuis (eleito melhor romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte), Paisagem com dromedário (Prêmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor), O inventário das coisas ausentes e Com armas sonolentas. Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Está entre os 20 melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta. Desde 2019, é professora e pesquisadora na Universidade de Colônia.

Rascunho