O artista enquanto Künstler

O que faz de um escritor um artista?, ou nesse mesmo âmbito, o que tira um texto de sua função mais básica (comunicar alguma coisa) e o transforma em literatura?
Dom Quixote em ilustração de Salvador Dalí
01/07/2012

O que faz de um escritor um artista?, ou nesse mesmo âmbito, o que tira um texto de sua função mais básica (comunicar alguma coisa) e o transforma em literatura? Trata-se de um conhecimento transmissível? Ou seja, é possível ensinar alguém a ser um artista? Comecemos com o significado da palavra. Segundo o dicionário, o vocábulo “artista” tem uma longa série de significados, entre eles: 1) aquele que estuda ou se dedica às belas artes, 2) aquele que é dotado de habilidades ou particularidades físicas especiais e as exibe em circos, feiras, etc., 3) aquele que interpreta papéis em teatro, cinema, televisão ou rádio, 4) operário ou artesão que trabalha em determinados ofícios. Em outras palavras, artista é um termo genérico que inclui as mais diversas atividades e profissões, o que não deixa de estar correto. Porém, na realidade, não é essa a concepção de artista que faz de alguém um escritor. Em alemão, que é um idioma sempre exato e minucioso, utiliza-se a palavra Künstler. Mas o que é um Künstler? O dicionário alemão é excepcionalmente pouco claro ao dar o significado, Künstler é alguém que produz/cria obras de arte. Claro, poderíamos nos perguntar, afinal, o que é uma obra de arte, o dicionário alemão continua saindo pela tangente: obra de arte é o produto de um fazer artístico. Ou seja, Künslter seria mais ou menos o que nosso dicionário (em português) define como aquele que é “exímio no desempenho de seu ofício”, o que não resolve muita coisa, já que ser exímio não significa criar uma obra de arte.

Enfim, todas essas definições de dicionário (que pouco definem) servem apenas para demonstrar justamente isso, que quando se trata de arte, todo julgamento é subjetivo, varia de acordo com a pessoa, a cultura, a época, etc. Sendo assim, poderíamos pensar, ótimo, então arte é tudo aquilo que eu disser que é arte (o que fizeram de certa forma artistas como Marcel Duchamp e Joseph Beuys). Em termos mais radicais, talvez sim, o que não significa que o assunto esteja esgotado, pois mesmo sem solução, os séculos passam e continuamos investigando a mesma coisa, esse algo enigmático que faz com que um livro ou uma obra qualquer se abra em efeitos e discursos e significados que escapam ao próprio texto, à própria obra, e, por conseguinte, ao próprio autor.

Mas voltando à palavra Künstler, que pouco teria a ver com nossa definição de artista, já que não bastaria com ser ator para ser um Künstler, mas sim um ator que transforma a sua interpretação em arte. Não bastaria apenas desenhar, pintar, criar instalações. O mesmo valendo para qualquer outra profissão. Ou seja, voltando para a literatura, o Künstler transforma um livro, que poderia ser sobre qualquer assunto, em literatura. Um texto que não se esgota em sua primeira (nem terceira, nem quarta) interpretação. E que processo seria esse, poderíamos nos perguntar, que mistério seria esse que ultrapassando o domínio da técnica, transformaria um texto em outra coisa? Tentar compreender esse mistério seria voltar à velha questão do que é arte, questão insolúvel, claro, mas talvez seja possível fazer algumas aproximações. Talvez o mistério não esteja no saber, no domínio da técnica (certamente não está), mas numa espécie de “olhar do escritor” para o mundo e para si mesmo.

O artista é de certa forma alguém que dá um passo para o lado, e vê alguma coisa, ou vê as mesmas coisas de uma forma inesperada, é alguém que diante dessa experiência de alteridade, aponta e diz, olhe, e compartilha com os outros a surpresa. E não se trata apenas do escritor-filósofo em sua torre de marfim, ou de uma espécie de sábio, iluminado por musas ou criaturas do gênero. Pensemos em escritores que viveram bem próximos do “mundo exterior”, ou talvez até arrebatados por ele, como é o caso de Cervantes, por exemplo, que viveu uma vida digna de um filme de Hollywood. Entre as mais diversas aventuras estão a batalha de Lepanto, na qual lutou e, ao ser atingido, perdeu os movimentos da mão esquerda (o que lhe deu o apelido de “el manco de Lepanto”), e a captura por corsários em Argel, onde permaneceu prisioneiro durante cinco anos, período no qual planejou e executou quatro tentativas de fuga, todas frustradas. Cervantes, como tantos outros aventureiros, poderia ter voltado para seu país de origem e escrito sobre o que viu sem que o texto adquirisse por isso um valor literário, ou o que é mais comum, simplesmente não ter escrito nada. O que faz com que o Quixote seja o Quixote é a forma como Cervantes aborda a experiência de vida, ou seja, é o seu olhar para o mundo (um olhar muitas vezes irônico, e inesperado e pessimista). É esse olhar do escritor que, aliado claro ao domínio da técnica, faz com que séculos mais tarde continuemos lendo e comentando o Quixote.

Podemos então retomar uma das perguntas do início, é possível ensinar alguém a escrever literatura? Uma questão muito em voga, já que cada vez mais proliferam oficinas e cursos de formação de escritores. No fundo seria como se nos perguntássemos, é possível ensinar alguém a olhar para o mundo, para o outro, para si mesmo?, e mais especificamente, é possível ensinar alguém a deslocar esse olhar, a trazer para o texto algo que nos surpreenda, e principalmente, que não se esgote na própria leitura? É possível ensinar alguém a ler? Certamente não, não há fórmulas. O que não significa que não seja possível apontar caminhos. Porque, se por um lado, o artista (Künstler) não surge através da técnica apenas, por outro, sem ela, o olhar perde-se no mundo isolado de cada indivíduo. É essa junção técnica/arte que, ao nos depararmos hoje com as páginas do Quixote, nos permite ter acesso a algo que, mais do que a história de alguém que enlouquece e se imagina cavalheiro andante, é o olhar do autor para um mundo que se extinguia, e continua se extinguindo (outros mundos, outros homens) a cada leitura.

Carola Saavedra

É autora, entre outros, dos romances Flores azuis (eleito melhor romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte), Paisagem com dromedário (Prêmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor), O inventário das coisas ausentes e Com armas sonolentas. Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Está entre os 20 melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta. Desde 2019, é professora e pesquisadora na Universidade de Colônia.

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