Do exótico e outros encantos

A literatura não está aí para dar respostas, mas para investigar a realidade e oferecer novas perguntas
O argentino Juan José Saer, autor de “A narração-objeto”
01/01/2012

Os jivaros são um grupo indígena que habita o Equador e parte do território peruano. São conhecidos por seu espírito guerreiro, e mais especificamente por terem desenvolvido (e aplicado) com indiscutível talento a técnica de encolher a cabeça de seus inimigos. Segundo algumas fontes, ao cortar e reduzir a cabeça do adversário, os jivaros estariam se assegurando de que o espírito deste não voltaria para se vingar. Eles próprios explicam que isso é lenda, o verdadeiro objetivo teria a ver com questões práticas e nada esotéricas. Porém, seja qual forem os motivos, a questão é que as cabeças existem, e apesar de hoje tratar-se de um procedimento em desuso (ao menos com cabeças humanas), é possível ver algumas delas espalhadas em museus por aí. Muito resumidamente, a técnica baseia-se em retirar o crânio e os tecidos moles, ferver o restante com algumas ervas secretas e depois defumá-la.

Enfim, um procedimento bastante exótico, até mesmo para nós, acostumados a todo tipo de excentricidade. Então, na esteira do exótico, imaginemos que um dia aparecesse por aqui um índio jivaro escritor, ou um escritor índio jivaro. Ele vem ao Brasil promover seu novo livro, dar entrevistas, participar de programas de televisão. Entusiasmados, cheios de curiosidade e quem sabe até algo temerosos, nos aproximamos (um pouco surpresos de ele estar vestindo tênis, camiseta e calça jeans) e perguntamos do que se trata o seu livro, sobre o que ele escreve. O índio jivaro esboça um sorriso enigmático e nos explica, com toda a delicadeza — mas nós muito atentos percebemos um leve tom bélico —, que ele não se reconhece enquanto jivaro, e que, aliás, jivaro é uma classificação errônea outorgada pelos espanhóis, e que dali por diante, por favor, refira-se a ele como integrante do grupo étnico dos Shuar. Aquele início cairia obviamente como um balde de água fria sobre o nosso interesse e boa vontade, mas pensando nas história das cabeças encolhidas, achamos mais prudente apenas concordar e ir logo ao que interessa, ao livro. Afinal, sobre o que escreve o integrante do grupo étnico dos Shuar? Ele continua, diz que é ficção, um romance. Então, que incrível, temos ali diante de nossos olhos um genuíno representante do grupo étnico dos Shuar que escreve romances. Incrível, e romances sobre o quê? Perguntamos na expectativa de histórias sobre guerras entre clãs, cabeças cortadas e encolhidas e demais costumes bárbaros. Mas para nossa surpresa, ele não escreve sobre cabeças encolhidas, nem nada disso. Com a maior naturalidade do mundo o genuíno representante do grupo étnico dos Shuar escreve sobre a impossibilidade da comunicação na contemporaneidade, cita a recontextualização da polifonia nos romances do século 21, faz alusões à fragmentação e à narrativa pós-moderna, fala da influência de Nietzsche e Walter Benjamin, etc., etc.

Decepcionados, balbuciamos, mas e as cabeças? Você não fala das cabeças? Ele nos olha surpreso e pergunta, cabeças? Que cabeças? Nós respondemos já sem paciência, como que cabeças? As cabeças encolhidas, ora! O genuíno representante do grupo étnico dos Shuar dá uma gargalhada e diz, ah, as cabeças, sei lá, não me interessam, nunca vi uma. Quer dizer, somente uma vez, num museu na Espanha. Nós o observamos incrédulos sem saber se se trata de ironia ou de algum problema de tradução. Enfim, poderíamos continuar esta história com nosso índio desfilando um extenso relato sobre a verdadeira função das cabeças na sua cultura, sobre as questões da atualidade, sobre o imperialismo, o colonialismo, o pós-colonialismo, etc., etc. Mas não é disso que se trata. Deixemos, ao menos momentaneamente, o índio Shuar de lado, com suas teorias e sua pós-modernidade, e passemos para outro autor.

Paris, final da década de 1970. O autor argentino Juan José Saer escreve o ensaio La selva espesa de lo real, no qual aborda a recepção da literatura latino-americana na Europa e critica a tendência de esperar que ela traga à tona aspectos explicativos de certa realidade histórica e social, o que acabaria por colocar os autores numa espécie de gueto da latino-americanidade. Ou seja, o autor só seria valorizado se seus livros de alguma forma abordassem questões específicas do seu país ou continente. Importante lembrar que se trata de uma época em que o chamado boom latino-americano está em seu auge, e o realismo mágico e derivados pareciam ter dado ao continente a tão sonhada identidade. Afinal, quem somos nós? O que nos diferencia do outro, ou seja, da Europa. Como se finalmente tivéssemos chegado a uma conclusão e disséssemos, já que a nossa realidade é tão inverossímil, trabalhemos então na inverossimilhança de modo a dar-lhe uma nova lógica. E fazendo um pequeno parêntese: como se o nosso índio Shuar tivesse resolvido escrever sim sobre as tais cabeças, afinal, elas existem, por mais fantasiosas que possam parecer. Enfim, o boom deu à literatura latino-americana uma nova e inesperada visibilidade, mas por outro lado fez com que autores que não trabalhavam nesse registro, como Onetti e o próprio Saer, permanecessem por muito tempo quase desconhecidos fora de seus países. Afinal, que interesse poderia haver em um autor estrangeiro se este não traz para sua literatura algo de sua estrangeiridade? Qual é o interesse num autor latino-americano que escreve sobre a Rússia, coisa que seria muito mais bem realizada por um russo? Ou, para voltar ao nosso exemplo inicial, de que poderia nos interessar um índio jivaro (ou Shuar) que escreve um romance que se passa em Helsinki? Ou que se interessa por Nietzsche ou Walter Benjamin?

Como resposta, uma frase do ensaio de Saer: “A narração não é um documento etnográfico ou um documento sociológico (…)”. O que pode ser traduzido da seguinte forma: a literatura não tem como função explicar o mundo, uma cultura ou um país. Ela, claro, o faz automaticamente devido à sua própria natureza, mas não porque esse seja um objetivo. A literatura não está aí para nos dar respostas, ao contrário, se é que ela tem alguma função, é investigar a realidade oferecendo novas perguntas. E sendo assim, as perguntas podem ser de qualquer tipo, não importa o tema. Até porque no fundo pouco importa se um autor escreve uma história passada em seu bairro, em seu país ou num outro continente. Ele nunca deixa de falar dele mesmo, ele nunca se desvincula da sua forma de estar no mundo, do seu olhar para aquilo que o rodeia. Ou seja, não há como fugir. E voltando novamente ao nosso personagem Shuar, tanto faz se a fragmentação do sujeito se dá através da estrutura narrativa e teorias pós-modernas, ou se passa pela saga de cinco gerações de encolhedores de cabeças. O que importa é a qualidade do texto, ou seja, a literatura. Até porque, mesmo sendo um exímio conhecedor de autores como Nietzsche ou Walter Benjamin, nosso legítimo representante do grupo étnico dos Shuar nunca perderá seu exotismo, já que o Nietzsche e o Benjamin que ele lê serão sempre um outro, um outro assombrado por rituais secretos e demais enigmas. E justamente aí reside o seu encanto.

Carola Saavedra

É autora, entre outros, dos romances Flores azuis (eleito melhor romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte), Paisagem com dromedário (Prêmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor), O inventário das coisas ausentes e Com armas sonolentas. Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Está entre os 20 melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta. Desde 2019, é professora e pesquisadora na Universidade de Colônia.

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