O ano era 1952; a cidade, Nova York. Um pianista entra na sala de concerto, senta-se ao piano, e durante exatos 4 minutos e 33 segundos não toca uma nota sequer. Silêncio. O público, que esperara ansioso o início do concerto, começa a ficar inquieto: ruídos, murmúrios. Após o fim do tempo estipulado, o pianista levanta-se, agradece e vai embora. O público, indignado, acabara de assistir a 4’33”, obra que se tornaria uma das mais famosas criações de John Cage.
Mas retrocedamos um pouco no tempo para o ano de 1917. Após alguns experimentos com pinturas figurativas, o ainda jovem Marcel Duchamp passara a trabalhar com objetos de uso comum, uma roda, um porta-garrafas. Por ocasião da exposição organizada pela Society of Independent Artists em Nova York, ele envia sua mais nova obra, Fountain. Trata-se de um urinol comprado numa loja de artigos sanitários que Duchamp virara em 90 graus, datara e assinara (seu pseudônimo) “R. Mutt”. A obra foi imediatamente vetada. Hoje em dia existem réplicas de Fountain em vários dos mais importantes museus do mundo (o urinol original despareceu).
O que esses dois trabalhos tão diferentes têm em comum? São obras de arte, dirão alguns; outros talvez afirmem justamente o contrário, que pode se tratar de uma farsa, qualquer coisa, menos arte. Mas afinal, o que é arte?
E. H. Gombrich inicia seu livro A história da arte afirmando: “Nada existe realmente a que se possa dar o nome de Arte. Existem somente artistas”. A afirmação de um dos mais conhecidos historiadores do assunto, por mais definitiva que pareça à primeira vista, enriquece o debate, mas não encerra a questão. E em pleno século 21 continuamos nos fazendo as mesmas perguntas: Para que serve a arte? É possível defini-la? Que critérios utilizar? As respostas, entre elas a de Gombrich, talvez nos tragam como principal conclusão a certeza de que não há respostas definitivas, e que talvez resida justamente aí a maior característica dessa massa moldável e indefinida — o que não nos impede de abordar certos aspectos e fazer algumas aproximações.
4’33”, de Cage, e Fountain, de Duchamp, são obras que na época de seu surgimento/apresentação (e às vezes até os dias de hoje) provocaram incompreensão e até revolta de grande parte do público. Fora isso, ou talvez justamente por isso, são obras que criam seu próprio leitor, e aqui trata-se do leitor no sentido de receptor, aquele que desvenda a mensagem. Em outras palavras, são obras que rompem com o registro tradicional e exigem uma espécie de chave de leitura para que possam ser compreendidas, sem a qual tornam-se, aí sim, um procedimento vazio. Mas o que seria uma chave de leitura?
No ensaio Em louvor da sombra (publicado na década de 1930), o escritor japonês Junichiro Tanizaki faz uma série de observações sobre a estética oriental, passando não só pelas artes, teatro, literatura, mas incluindo também temas mais prosaicos, como utensílios domésticos e latrinas. A tese principal é que o Ocidente, devido a uma visão positivista do mundo, teria criado uma estética solar, baseada nas luzes, enquanto os povos orientais, mais resignados em face às adversidades, teriam desenvolvido um conceito de beleza a partir da escuridão, ou seja, das sombras.
É necessário, claro, considerar a época e contexto em que o livro foi escrito, já que hoje em dia trata-se de uma tese facilmente refutável. Poderíamos questionar uma série de aspectos: o uso dos termos oriental/ocidental para falar de países tão dispares como, por exemplo, Japão e China ou Alemanha e México; e a própria idéia de purismo cultural, que se atem à idéia de uma cultura “original”, como se esta também não fosse o resultado de uma série de cruzamentos e influências de diversas culturas. Mas, independentemente disso, há uma série de aspectos comparativos que continuam interessantes e servem para iluminar algumas questões bem atuais da arte e literatura.
Um dos exemplos que mais chama atenção é o da laca japonesa. O autor fala dos diversos objetos laqueados (tigelas, mesinhas, etc.), quase sempre em preto, vermelho ou marrom, muitas vezes com detalhes em pó de ouro ou prata. Para os ocidentais, pode parecer exagerado, kitsch, até, mas só é visto desta forma porque, na verdade, esses objetos são feitos para serem apreciados na sombra: “a verdadeira beleza da laca japonesa só se revela plenamente na penumbra”, diz Tanizaki. Ou seja, o objeto só pode manifestar seu valor estético se apreciado num “contexto” adequado; retirado dele, torna-se um utensílio “fora de lugar”. Levando adiante essa idéia, poderíamos dizer que a penumbra, a iluminação, é parte do objeto, de seu efeito estético. Ou seja, é necessário conhecer sua chave de leitura. Sem ela, perde-se grande parte de sua beleza e, talvez, até de seu sentido. Esse mesmo raciocínio pode ser usado para qualquer outro tipo de arte — literatura, cinema, artes plásticas.
Mas o que seria essa chave de leitura? Num sentido mais amplo, quase antropológico, seria o conhecimento que devemos ter do outro, de outra cultura, para sermos capazes de compreender suas intenções, suas atitudes, sua linguagem. No caso específico da arte, seria um conhecimento prévio que o leitor, espectador, receptor deve ter para que seja possível compreender as sutilezas da obra ou, em certos casos, compreender o mais básico da obra. Sem essa chave, ela perde sua beleza, sua profundidade, e até mesmo seu sentido. Ou seja, sem uma compreensão da história da música, das artes plásticas, etc., e do significado da obra naquele momento, autores como Duchamp e Cage tornem-se ilegíveis, ou, no mínimo, perdem grande parte da sua acessibilidade. O ato de Duchamp ao trazer objetos cotidianos ao museu é, antes de mais nada, um conceito, uma idéia (que questiona o lugar e a função da obra de arte), e abre um diálogo que vai guiar as artes plásticas até hoje. Trata-se, claro, de um ato que só tem sentido em determinado contexto, em determinada época, por isso não faz sentido tentar reproduzi-lo. O mesmo vale para John Cage. Os 4 minutos e 33 segundos estendem o conceito de música, incorporando não só a idéia de silêncio mas sua ausência, já que o concerto seria na realidade os ruídos, os barulhos do ambiente — ou seja, o público. E se por um lado são obras “datadas”, por outro não o são, já que estabelecem novos critérios para pensar e repensar as velhas perguntas. Aqui, assim como na literatura, vale a frase do ensaísta e escritor Ricardo Piglia: os grandes textos são aqueles que transformam nosso modo de ler.