Vício bom

Elias Canetti, Clarice Lispector e Laurence Sterne usavam bem as digressões, um recurso que mostra ao leitor as rotas mentais do narrador ou do personagem
Ilustração: Mariana Tavares
01/02/2022

Em sua autobiografia, Elias Canetti conta que, quando adolescente, estudava numa escola cuja professora de búlgaro detestava digressões; a cada vez que um aluno, durante uma fala, cometesse uma, a classe toda deveria gritar unissonamente: “digressão, digressão”. Canetti era famoso por ser digressivo e, por isso, acabou ficando traumatizado, embora isso não o tenha feito deixar de escrever Massa e poder, Auto-de-fé e a própria autobiografia, todos recheados desse “vício” terrível.

Eu adoro digressões. Por vários motivos: elas me lembram desvios geográficos, coisa que também cultivo. Caminhando, especialmente por lugares que desconheço, não gosto de seguir roteiros estabelecidos e, se a cidade não for muito inóspita, prefiro me perder. Se estou indo para algum lugar, sem muita determinação de horário, gosto de avistar alguma coisa numa rua paralela e ir até lá. Isso pode — e quase sempre acontece — me levar a outra rua e a outra e a outra e acabo esquecendo do destino original. Às vezes relembro e retorno, mas pode ocorrer de eu não voltar. Sigo o acaso e, no lugar de adequar a cidade ao meu plano, sou eu que me adapto às surpresas que vão surgindo. É assim também com as digressões narrativas, que se comportam um pouco como se o texto fosse ruas — que não deixam de ser — e uma palavra pode levar a outra, que leva a outra, que leva a outra, até que, quando se percebe, a ideia supostamente original acaba se transformando em muitas outras, a ela indiretamente relacionadas. O que o leitor ganha com isso é um reconhecimento das rotas mentais do narrador ou do personagem, chegando a uma intimidade diferente e talvez mais próxima do que se a sequência tivesse seguido seu fluxo linear e direto.

Num livro como A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, do inglês Laurence Sterne, inteiramente composto por digressões e em que não se encontra um centro localizável único, elas funcionam muito mais em nome delas mesmas do que a serviço de alguma “alma” da narrativa, que parece nunca começar nem chegar a algum clímax que a justifique. É como se elas engabelassem um leitor que sempre anseia por uma continuação que não chega. O romance, já no século 18, ironiza expectativas mais conservadoras e apresenta um personagem cuja fala lembra algo como a construção da muralha da China: interminável e fundamental em sua tortuosidade.

Também gosto das digressões porque elas oferecem uma espécie de liberdade discursiva que as frases sequenciais rejeitam: que tal um parêntese aqui, um atalho, uma marginal, uma referência a mais? E se eu resolvesse mudar um pouco de assunto para poder exemplificar melhor, ou contasse uma história que aconteceu comigo para que a cena fique mais completa ou dinâmica? A interlocução se distensiona, ambos, leitor e narrador se apresentam falíveis e, com isso, o contrato narrativo ganha confiança. É claro que o excesso de digressões, no lugar de descontrair, pode também contrair, tornar tudo mais tenso, como no caso de David Foster Wallace, por exemplo, que pode escrever mais notas de rodapé do que a própria história. Nesse caso, também a tensão é bem-vinda, porque mostra o quanto cada coisa pode ser muitas, o quanto esse narrador é hesitante e como seus desvios podem ser mais expressivos do que a estrada principal.

Digressões são ainda espécies de blefes, como no caso de Machado de Assis, que as praticava estrategicamente, para armar algum engodo para o leitor que, enquanto se preocupa com elas, não se dá conta de algo importante que o personagem está tramando ou então, distraído com uma borboleta que passa, acaba perdendo o amor de sua vida. Esse é o caso de digressões irônicas ou metalinguísticas, detalhadamente planejadas pelo narrador.

Mas há as digressões sinceras, talvez inocentes, como no caso de Clarice Lispector ou do austríaco Sebald. Narrando caminhadas pelo litoral inglês, Sebald nos guia por múltiplas referências históricas, geológicas e filosóficas que vão sendo aludidas pelos lugares que ele encontra e que, somadas a uma suposta narrativa central, compõem quadros que tanto conduzem o leitor pela vida de um personagem quanto o fazem conhecer a Inglaterra, a época e os problemas subjetivos de quem conta. Sebald mistura ficção e realidade a tal ponto que, muitas vezes, personagens aparentemente reais são inventados e coisas que parecem impossíveis são realmente factuais. Já Clarice Lispector usa as digressões como momentos epifânicos, eventos inesperados na rotina de suas personagens, que invariavelmente provocam transformações pequenas, mas essenciais em suas vidas. É o passeio infernal e paradisíaco pelo Jardim Botânico no conto Amor ou os infinitos descaminhos em A paixão segundo G. H., que vão levando o leitor para dentro de uma alma inquieta e labiríntica, cujos caminhos acabam por chegar a uma decisão final que, é claro, não posso contar aqui.

Digressões são distrações, planejadas ou não, e distrações, como todo deslocamento (“dis – track”, fora da área, fora da pista), fazem bem para a língua literária: “É preciso fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero”, já dizia Manuel Bandeira na década de 30.

Desejo a você, leitor, um ano digressivo. Sei que o ano tem um centro, que se localiza nos meses de outubro e novembro e que quase tudo deve ser feito em nome dele: panelas, gritos, lutas e manifestações. Mas, enquanto isso, saia da rota e se perca. Você vai voltar arejado e pronto para o clímax dessa história, que, dessa vez, vai ficar do nosso lado.

Noemi Jaffe

É escritora, doutora em literatura brasileira pela USP e coordenadora do Espaço Cultural Literário Escrevedeira. Autora de O livro dos começos, Írisz: as orquídeas e O que ela sussurra, entre outros

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