Outro dia, numa aula, um aluno escreveu: “pronomes possessivos: obsessão”. Quando fui ler o texto em voz alta, li, sem querer: “pronomes obsessivos”. Foi um lapso. Todos riram e alguém disse que “pronomes obsessivos” era uma solução bem mais criativa do que a frase original, explicativa.
Sem dúvida. “Pronomes obsessivos” é uma construção que, além de inédita, intriga, deixando entrever uma dúvida: do que se está falando?
Na pressa de escrever um outro texto, cujo tema eram narradores múltiplos, digitei narradores muúltiplos e, no momento da revisão, cogitei: por que não “narradores muúltiplos”? O “u” duplo não evidenciaria a questão de forma bem mais expressiva?
A escrita, como a fala, é ocasião para inúmeras formas de lapsos. Desde a digitação, passando por lapsos sintáticos e semânticos, até manifestações inconscientes que nos fazem trocar palavras, nomes, datas e frases.
E junto com os lapsos, sobrevêm os acasos — a campainha, a chuva, quedas, interrupções —, os esquecimentos inumeráveis, os improvisos e as surpresas. É claro que a tendência inicial é descartá-los, se não durante o ato da escrita, posteriormente.
Mas, como numa sessão de análise, esses supostos “erros” mecânicos ou mnemônicos podem — e devem — ser mais respeitados. O que eles estão querendo dizer? Será que não há material ali a ser aproveitado, reaproveitado, inventado? A ânsia do acerto e da correção pode, inadvertida ou “advertidamente”, pôr a perder algumas criações que jamais faríamos conscientemente.
Penso que o escritor, ao mesmo tempo que concentra sua atenção e foco no centro último da escrita — escrever —, também deve permitir que sua atenção flutue e se perca nas periferias do texto: o que acontece no ambiente, no seu corpo, em suas mãos, na circunstância e nos lapsos que comete. Como no lindo ensaio de Ursula le Guin, A teoria da bolsa de ficção, um texto ficcional coletor seria um texto que se permite penetrar pelo acaso.
Você pode estar interessado em descrever uma cena dentro de um apartamento, mas a chuva que começa a cair o faz lembrar de uma cena no campo. O apartamento não soa mais cabível nesse exato momento e você sente vontade, sem nem entender, de escrever sobre uma cena de infância.
Você está escrevendo um ensaio sobre a questão dos gêneros e, sem querer, digita “o casa” ou “a livro”. Pensando bem, se o texto não contiver concordância de gênero em alguns casos, quem sabe o leitor não perceba a ironia ou a crítica sutil?
Os lapsos e os “erros” não são simplesmente descartáveis. São, muitas vezes, sintomas e rastros de vozes que continuam falando dentro e fora de cada escritor.
As vozes internas murmuram lembranças, associações, nomes e canções que ficam ressoando na voz central, a voz do sujeito-escritor que comanda a narração. São elas que, às vezes, furam o cerco e sopram lapsos verbais, ironias, são elas que choram na hora errada e riem quando queríamos ficar sérios. Elas falam pelos cotovelos e através dos personagens que criamos e que nos traem, porque elas conhecem nossas máscaras melhor do que ninguém. Até melhor do que o “eu” que conduz o timão.
E as vozes externas seguem seu caminho independente de nós, tão certos de que nosso texto é o que há de mais importante na Terra: os ônibus freiam, as motos aceleram, a chuva cai, a campainha toca, o cachorro late, o bebê chora e o dinheiro falta.
Não somos sujeitos totais do que escrevemos, que bom. O artista pode se permitir ser também objeto do que escreve e deixar-se ser escrito. Não somente pelas palavras, mas pelo acaso e pelas circunstâncias.
“Eu quero mais erosão, menos granito, namorar o zzero e o não. Escrever tudo o que desprezzo e desprezzar tudo o que acredito.”*
NOTA
*O que é bonito, de Lenine, com interferência minha.