Descobrir-se Sísifo

A releitura é uma maneira de resgatar a história pessoal contada pelos livros lidos ao longo da vida
Ilustração: Marcelo Frazão
01/09/2022

Reler um livro depois de vinte anos. Deveria ser uma obrigação.

Reler como reescrever, como nunca entrar duas vezes no mesmo rio, como estar e não estar no mesmo lugar.

Aquele menino que colhia pedaços de insetos e os criava numa jaula para ver se um monstro cresceria, agora, relido, é meu filho quando pequeno e a leitura fica envolta em lembranças, quando antes o menino não passava de um personagem. O velho que conta histórias para o comandante de Auschwitz sou eu mesma e não mais minha mãe. Bruno Schulz se transformando num salmão vira personagem de um conto que escrevo, quando, da primeira vez, ele me fez ir atrás do Bruno Schulz real.

Ver: amor, de David Grossman, é um chamado à penetração numa floresta onde o impossível é possível e onde o possível é ridículo. O silêncio dos sobreviventes da Segunda Guerra, incapazes de falar sobre sua experiência e tentando poupar seus filhos do sofrimento, para que vivessem felizes na terra de Israel, criou recalques, temores ocultos e também escritores, que inventam histórias para preencher o silêncio absurdo dos pais. A Segunda Guerra, silenciada, se torna uma lenda do nada, um poço capaz de comportar todas as histórias e quase todas de horror.

São três partes escritas como um mosaico, cujas combinações são alinhavadas pelo leitor. Como uma Scherazade ao contrário, um prisioneiro de Auschwitz, que quer morrer, conta uma história para o comandante do campo todos os dias, em troca de um tiro na cabeça. Acontece que ele nunca morre. O romance é a história desse avô que conta histórias para o comandante, enquanto também se refere ao neto que, por sua vez, inventa muitas outras histórias. Na segunda parte, a mar narra a saga de Bruno Schulz que, fugindo de oficiais nazistas, mergulha e vai, lentamente, se transformando num salmão que, como todos, nada contra a corrente até encontrar seu lugar.

São histórias dentro de histórias, numa fileira de espelhos sequenciais que refletem uns aos outros e onde o leitor é apenas mais um personagem-espelho. E eu, como releitora, sou um espelho duplo, refletindo também a mim mesma no passado, quando o li da primeira vez. Lá estou eu, presa na gaiola criada por Momik, já transformada num monstro horrível; agora que já conheço e, como David Grossman, também amo Bruno Schulz, nado ao lado dele e o protejo para que não seja capturado por pescadores; quanto ao avô que nunca morre, posso ajudá-lo a criar novos personagens, agora que também sou escritora.

Uma história são sempre inúmeras histórias e contar uma delas é oferecer fios que o ouvinte agarra e costura com mais outras que, por sua vez, se agarram à história inicial. Uma guerra, ao contrário do que dizem alguns, é fonte infinita e necessária de histórias possíveis e impossíveis e são elas que mantêm viva a memória do desastre, a memória de quem passou por ele e também a dos descendentes que só a conhecem pelo nome ou pelo silêncio. Não conseguir morrer e contar para poder morrer faz com que a narração se torne a própria verdade. Nada pode ser mais verdadeiro do que essa mentira, capaz de decidir entre a morte e a vida.

Nesse livro, David Grossman mergulha na mar que, com suas ondas, transforma pedras em conchas, abriga seres que nem a imaginação é capaz de inventar e guarda segredos que as civilizações futuras ainda hão de descobrir. Ao mesmo tempo, ele também faz o leitor mergulhar nas dores inacabáveis da guerra, na necessidade de narrá-las (embora quase ninguém queira ouvi-las) e numa utopia de transformação do mal pelas histórias. “Todas as histórias vêm da mesma história, só que às vezes você é quem empurra a pedra para o cume da montanha, e às vezes você mesmo é a pedra renitente”.

Reler um livro como esse depois de vinte anos é descobrir-se Sísifo, ainda empurrando a pedra das histórias depois de tanto tempo, mas é principalmente descobrir-se pedra, nós mesmos como uma história que está sendo contada pelos livros que lemos. E relemos.

Noemi Jaffe

É escritora, doutora em literatura brasileira pela USP e coordenadora do Espaço Cultural Literário Escrevedeira. Autora de O livro dos começos, Írisz: as orquídeas e O que ela sussurra, entre outros

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