Da janela lateral

Temos transformado nosso presente em notas de repúdio, arrumação da casa, lives interessantes e desinteressantes, aprendizado de novas formas de comunicação
Ilustração: FP Rodrigues
02/01/2021

Ontem recebi, por email, um vídeo enviado por uma amiga, de cerca de cinco anos atrás, em que aparece um grupo de pessoas cantando “você não quer acreditar, mas isso é tão normal… um cavaleiro marginal, banhado em ribeirão”, do Lô Borges. Éramos cinco pessoas cantando em uníssono, acompanhando um violão e quase gritando de alegria. Eu estava entre elas.

Fui me lembrando saudosa, quando me dei conta de que, na lembrança, três tempos se superpunham: o tempo da cantoria coletiva, o tempo em que eu cantava Lô Borges adolescente e o tempo da rememoração e levei um susto pela simultaneidade de passado e presente. Como era possível estarmos juntos cantando, sem preocupação com perdigotos, abraços, todos sem máscaras, rindo alto e desafinando? E onde estão as neves de antanho, quando eu não fazia ideia de que seria escritora e professora, que teria que pensar no valor do botijão de gás e na piada homofóbica do presidente e pensava ser “cavaleiro e senhor de casa e árvores, sem querer descanso nem dominical”, acreditando que aquilo era uma totalidade sem risco de ameaça? E, ao mesmo tempo, a ideia de que o próprio momento dessas duas lembranças também logo se tornará passado, nesse ano em que o tempo engrossou e afinou, virou areia e chumbo e em que tudo passa tão lentamente e, quando viu, já passou.

Meu pai se contorcia de raiva quando eu, aos 13 anos, dizia ter certeza de que iria me casar com Milton Nascimento e que nosso filho se chamaria Pablo. Consegui ir a um show dele no ginásio do Ibirapuera, fiquei no gargarejo e ele me deu um beijo. Não lavei o rosto por duas semanas e passava a mão na bochecha como se ela fosse um talismã. O Clube da Esquina era minha varanda, meu cigarro e colírio. Não sabia nada de ditadura, mas sabia que o mundo podia ser uma voz. E cantava na rua, no banheiro, com os amigos em fogueiras e até plantando eucaliptos às cinco da manhã, num acampamento que arremedava comunidades agrícolas socialistas. Tudo seria bom. Não foi. Ou então, nossa ideia atual de “bom” é, como tudo o mais, uma ideia relativizada e cheia de senões, como bons realistas pragmáticos que os adultos aprendemos a ser.

Voltar a cantar as canções do Clube da Esquina aos 50 anos, como neste vídeo de cinco, seis anos atrás, em situação não pandêmica, é, de alguma forma, voltar a ter 13 anos. A alegria sem escoltas retorna e, enquanto se canta, a vida recupera um sentido perdido e a gente grita, desafina, ri junto e, quando a música acaba, a gente exclama “aí! Uhuuu” e bate palmas. Talvez só a música, mais do que as outras expressões, possa nos transportar para o passado e fazê-lo reexistir e nós dentro dele, não como lembrança, mas como presença. E, por isso, o corpo participa e, pelo tempo de duração da canção, esquecemos da distância e acontece um “devir som, devir jovem” que não se compara com nada mais.

Mas entre o presente da cantoria no tempo da adolescência e o presente da rememoração de cinco anos atrás, posta-se o presente pandêmico que, esse sim, no momento mesmo em que acontece, já se tornou passado, de tão espesso e interditado. Nossos corpos estão trancados e a psique está bloqueada por máscaras cuja dimensão nem conhecemos. Lembrar, nesse ano em vias de acabar, não é mais reviver; é como olhar um horizonte distante, como ser Tântalo olhando para uvas próximas que não se podem alcançar. O passado nunca foi tão passado, de impossível encarnação. Não podemos cantar juntos e, se cantássemos, estaríamos a um metro de distância, mascarados e temerosos. Nosso presente é impermeável. Tanto, que mal se pode imaginar o presente por vir, escondido em uma neblina de frenesi e horror: “Vou sair festejando e beijando todo mundo ou outras pandemias vão se repetir continuamente e vou precisar usar máscara para o resto da vida”. O futuro é um passado antevivido.

E no entanto estamos aqui. É dezembro e estamos vivos, pelo que se deve agradecer. Podemos cantar pelo Zoom, com nossos amigos e familiares. Precisamos cantar. Temos transformado nosso presente em notas de repúdio, arrumação da casa, lives interessantes e desinteressantes, aprendizado de novas formas de comunicação, introspecção e tédio profundo, reconhecimento de si e do outro por perspectivas nunca antes imaginadas, culpa pela inação, processamento dos ódios, amor ao rodinho de pia. É aquilo a que fomos submetidos, mas isso pode ter seus encantos também. Soubemos lidar com o impossível e, em muitos sentidos, nos saímos bem, dadas as circunstâncias de vivermos num dos piores lugares para se estar em 2020.

Já posso pensar em 2020 como um passado de que vou lembrar, quem sabe daqui a cinco anos, quando essa ou outra amiga me enviar um vídeo de uns minutos do Zoom, quando eu imitava o Marcelo Adnet imitando alguém e posso figurar um comentário nostálgico de um ano ruim que passou, em que havia um louco cujo nome qual era mesmo? que naquele momento estará preso, lembra dos filhos?, a gente usava máscara até para pegar a correspondência, correspondência?, o que é isso?, meu netinho vai dizer, ao que vou responder, sabe Pablinho, correspondência é um poema de um escritor de muito antigamente, francês, chamado Bô-de–lér. Bodelér, vovó, isso é nome de gente? Vovó, canta aquela música da janela do quarto de dormir?

Noemi Jaffe

É escritora, doutora em literatura brasileira pela USP e coordenadora do Espaço Cultural Literário Escrevedeira. Autora de O livro dos começos, Írisz: as orquídeas e O que ela sussurra, entre outros

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