Devo ter assistido a cerca de 500 filmes durante a quarentena, desde março de 2020. Começou por causa de um curso sobre Fellini que meu marido estava fazendo e precisamos assistir a quase toda sua obra, o que nos motivou a acabar vendo a obra completa. Daí a querer ver a filmografia completa de Antonioni, Visconti, Bergman, Tarkovsky, todo o cinema novo, foi um passo, ou melhor, vários. Quase todas as noites, à exceção dos dias em que dou aula, a casa gira em torno de um filme: qual vamos ver, onde está passando, que horas começamos, o que vamos comer junto.
E assim meu corpo, meu verbo e minha imaginação foram se habituando ao tempo e às imagens do cinema. Posso dizer, hoje, acabando o mundo que acabou, que o cinema foi uma das coisas que me ajudaram a manter a vivacidade, a energia e a esperança. Nunca tinha sido muito apreciadora, a não ser pelas histórias, pelo roteiro. Raramente saía de um filme comentando a fotografia, que nunca soube muito bem o que significava. Mas agora tudo mudou. Sei ver os cortes, as técnicas, imagino o cineasta e os câmeras filmando as cenas e os atores representando; sustento muitos minutos parados filmando uma mão inútil e adoro sobretudo as inutilidades; meu tempo de expectativa para a próxima cena se alargou demais e se estendeu para a vida, que agora conta com mais paciência e silêncio. Não faço mais questão de um roteiro claro, reconheço os tipos de luz, me questiono sobre como tal ou tal passagem pode ter sido filmada e comparo cineastas, épocas e estilos. Como Antonioni filmaria Persona? Como Glauber pensaria essa cena de Fellini? Também assisto a documentários ecológicos, políticos, artísticos e salve o Mubi, o Stremio, o Vimeo e conexões esdrúxulas antes impensáveis.
Posso dizer sem medo que o cinema qualificou meu olhar sobre, do e pelo mundo, fazendo com que as coisas mais aparentemente ínfimas ganhem contornos de particularidade e beleza. Isso faz com que pouca coisa possa ser considerada sem graça, desde um rodo até um rio poluído. Ao mesmo tempo, as formas combinatórias das montagens cinematográficas — ideogramáticas, misturando tempos e espaços, dando nexo ao sem nexo — criam novos nexos também na vida cotidiana e vejo lógica entre a tornozeleira da ginástica e o rabo da cachorra, além de compreender melhor como alguns traumas do passado interferem em algumas ações cotidianas. Me apaixono por algumas personagens e atrizes (Cabíria, claro, e Gelsomina, mas também Monica Vitti, Helena Ignez, Miou-Miou…) e me pego fingindo que sou uma delas ou várias misturadas.
Agnès Varda, de cineasta idealizada que era, se tornou mais íntima minha e hoje sei distinguir, na sua obra, filmes menores, uma personalidade mais problemática, o que não diminui em nada meu afeto por ela e por seus filmes. Mas aprendi que os filmes de Chris Marker a influenciaram muito e que, por vezes, alguns recursos deste último superam os dela em profundidade. Ingmar Bergman tem uma obra genial e desigual, com algumas comédias, por exemplo, que deixam bastante a desejar. E como lidar com o fato de ele ter sido nazista convicto aos 20 anos? Me apaixonei tanto por Tarkovsky que assisti a todos os filmes dele, além de documentários a respeito, um livro de Geoff Dyer sobre Stalker e o livro do próprio Tarkovsky, Esculpir o tempo, pois é exatamente isso o que ele faz.
Vendo os filmes de Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Nelson Pereira dos Santos e Paulo César Saraceni, entre outros, tomei coragem de assistir a todo o Glauber Rocha, que sempre me enchia de medo: será que vou gostar, entender? Orson Welles, junto com Glauber, era outro que me ameaçava com sua Rosebud incompreensível, e foi outro que processei com espanto e alegria. Ufa! Assisti e ufa!, entendi e gostei.
Isso tudo sem falar nos muitos cineastas desconhecidos para mim, como os incríveis Alice Rohrwacher, Kelly Reichardt e Guillaume Brac, todos descobertos no Mubi e que se tornaram amigos íntimos da família de dois que mora aqui em casa.
Mas e os antigos? John Ford, Howard Hawks, John Huston, nos Estados Unidos, e Fritz Lang, Jean Renoir, Frank Capra na Europa, além de ter morrido de rir com Buster Keaton, rir de chorar, de me dobrar e ficar com dor de barriga.
Sei que falo como uma neófita, uma louca entusiasmada, como se nunca tivesse visto filmes na vida antes da quarentena. Mas é assim que me sinto. Já não consigo mais ver filmes medianos, perdi a paciência para séries ruins e, pasmem, acho que não me tornei uma chata eruditoide, embora o texto talvez o faça parecer. Não. Me tornei mais livre e com um olhar mais tolerante para o fim do mundo em que estamos metidos.
Isso quer dizer que o bom cinema é panaceia? Em certa medida, sim. Uma panaceia para a mediocridade, para a forma morna e cansada de olhar e pensar o que está acontecendo e a vida pessoal também.
O cinema, com sua particularidade de tempo em movimento, de montagens e cortes, de aproximação detalhada do rosto e dos detalhes, sua maximização dos afetos e as infinitas potencialidades que oferece em termos de tratamento da luz e do espaço, consegue nos transportar, talvez como nenhuma outra arte, para dentro de novos mundos, fora e dentro de cada um. É um transporte que, se nos insere em outras realidades, nos devolve com mais energia para a nossa e, de qualquer modo, nos faz compreender melhor que, entre a realidade assim chamada “real” e as outras, a separação é sempre menos clara do que nosso pragmatismo chão quer nos fazer acreditar.