Yasunari Kawabata

A conversa com o escritor que diz que morrer não é pior que morder um caqui verde
Kawabata Foto: Yousuf Karsh Gallery of Australia
01/04/2005

a literatura se acomodou aos rescaldos de si mesmo

pequenas pedras, apenas pequenas pedras e algumas folhas secas de colorido variando do amarelo mais apagado ao vermelho asmático de quem

cansado de protelar certos pensamentos em nome de uma educação acometida de covardias tolas. Passei da idade e, sejamos corretos, posso dizer o que digo pois meu tempo se foi antes mesmo de seu nascimento e

poderia ter dito mais e foi impedido. Com um leve meneio de mãos desfaz o monte e espalha o que poderia ser um sinal de

flores. Hoje o que mais sinto falta é do odor de certas flores.

esperança pelo quintal do parque. Acende um cigarro e olha ao redor, acocorado, sentindo crescer o formigamento nas pernas.

(é engraçado pensar que o natal é grande festa do renascimento. Eu sem idéias, sem vontade, com tanta preguiça que)

Não deveria estar fumando. Assim como o álcool, o tabaco foi proibido pelos médicos.

— Você precisa escolher. Ou continua bebendo e fumando ou nunca mais vai beber e fumar nada.

(não encontro nada que não seja uma biografia ou outra)

Sorriu e perguntou se aquilo era piada, mais uma piada das tantas que não achou graça de ouvir nos últimos dias em tantos outros consultórios. Mas o médico apenas meneou a cabeça e também sorriu, um riso parco de alegria e entusiasmo.

— Não faz isso com você mesmo.

Não faça deste mundo um calvário, eu poderia aconselhar, mas não é correto… correto… Quando jovem ouvi muitas palavras de aconselhamento. Pessoas bem intencionadas que hoje sei que faziam o que faziam sem perceber o mal que estava por vir. Diziam

Levanta-se e precisa de um breve alongamento para conseguir caminhar. Entre passos lentos olha para o céu e encara a copa das castanheiras imponentes. O céu nublado além dos galhos a desnudar-se parece uma imagem conveniente a esses gigantes que

(ter de escrever e não ter como é algo como a vida que se desfaz entre os dedos feito bolo de avó. Você se lembra, amigo, do bolo que sua avó fazia e que na primeira mordida tornava-se farelo e você se entristecia por acreditar estar perdendo grande parte da delícia? Pois então, a vida se desfaz entre os dedos e)

mesmo o corvo e familiares pousados como estátuas brilhantes e úmidas pelo chuviscar constante não afeta seu ânimo. Tudo o que transforma seu

morrer em abril diz mais de mim do que minha juventude

mover-se entre os inertes transeuntes é a sensação de que a fofura do solo ofende a limpeza de seus sapatos. Se bem que isso não importa mais.

todos querem saber de minhas origens, as tolices e risadas e sofrimentos e…. os neosensualistas, escritores que iam contra o realismo social que prevalecia nos anos 1920. Não pense que tudo é novo. Tudo é velho. Já era quando da minha juventude, imagine na sua

— Você devia procurar outro. Esses caras vivem errando!

Responde que foi a cinco e nenhum deles deu resposta diferente. Termina a dose de uísque e pede outro comemorando a volta do que nunca realmente foi e diz sério que pensou em procurar um desses curandeiros, daqueles que aparecem nos noticiários e prometem curas milagrosas. Mas desistiu. Imaginando o dinheiro gasto nos médicos de universidade, imagine o que cobraria um curador espiritual. Olho por olho, dente por dente. Cura o corpo em troca de dinheiro, cura a alma em troca de quê?

(mentir é uma arte, posso mentir)

— Pelo menos você ainda consegue fazer piada.

Tira o gelo do copo e responde que gostaria de ter tempo de superar a piada que a vida lhe pregou.

O lirismo tão cantado em minha obra sempre foi a desgraça de minha existência. A maioria não se dá conta que a sensibilidade que obriga a tratar o mundo com tais odores é a mesma que condena a perceber o tempo como um carrasco clemente, que vacila no momento de baixar o machado, prolongando a agonia.

Atravessa o portão e assusta-se como a rua está movimentada. Mas não se trata de um susto tolo, daqueles que ocupam nossos sentidos quando somos tomados por um momento surpreendente. É mais um susto apaziguado

como quando o senhor Mishima suicidou-se de um modo espetacular. Não sei se o admirei por isso

que não provoca palpitações ou grandes saltos, apenas um suspiro que o vento leva no mesmo esforço que leva o cheiro dos escapamentos e o perfume adocicado das mulheres de cabelos soltos. De repente,

(adeus, pudores)

encarando o movimento que sabe que irá continuar apesar de tudo, precisa cuspir e cuspir de novo, e sem se importar com as pessoas ao redor, continua tentando tirar de si o amargor insuportável de saber que não faz diferença sua presença ou ausência. Nas circunavegações que a humanidade sofre ao redor de um universo louco, sua existência é pouco mais que um fio de cabelo que se desprende.

(você me entende, amigo? Ontem mesmo eu estava abrindo a janela do escritório e tentando entender o que faz tanta gente miúda seguir pela vida mesmo sem ter por quê. Jogando ao vento pétalas de gérberas ressecadas supondo ser o instinto animal que faz tantos nanicos perseverarem. Chega a ser engraçado, não é, amigo)

16 de abril é uma bela data para um velho doente dar adeus, eu não pensei

O gosto do café espresso provoca um alívio mínimo, os olhos e o sorriso da menina que o atende suaviza mais o ranço ocre e infecto de seu corpo. No crachá está escrito um nome que poderia ler se tirasse os óculos do bolso do casaco. Com as lentes grossas e os aros escuros a vida fica mais clara e fácil de definir, ou pelo menos era isso que supunha. Ver os contornos e não borrões, durante muitos anos, foi uma bênção que servia a muitos propósitos. Principalmente em se tratando de mulheres.

traumas? Não sei. Vejamos: órfão aos três, sem avó aos sete, sem irmã aos nove

Ir para a cama e suprir os desejos no toque era o paraíso, porém, poder ter com os olhos ao mesmo tempo que com a pele sempre lhe pareceu a redenção cristã. Por isso aderiu às lentes de contato e durante meses pesou os prós e os contra de uma cirurgia corretiva. Não a fez por medo de perder o pouco que tinha como certo. Mesmo sendo visões turvadas ainda eram visões. Se bem que agora parece que isso não importa mais. Nunca mais, poderia ser dito.

— Mais alguma coisa?

condenar sem realmente conhecer é fácil. O sofrimento da carne é diferente do sofrimento emocional. E mais diferente da associação dos dois. Na entrega do prêmio Nobel eu e muitos estávamos impressionados com o número de colegas de profissão que se abandonavam ao auto-aniquilamento. Me parecia tolo desesperar com o inverno da carne quando o intelectual tem como instrumento a mente. Foi duro descobrir que mente e corpo são constituídos na mesma trama. Que o fio que tece a existência do homem não pode ser desfiado senão pelo tempo

No relógio da parede os ponteiros avançam depressa. Tem um compromisso e precisa cumpri-lo. A menina pergunta novamente se quer outro café. Sorri e diz que não e se levanta e se vai sentindo o amargor aumentar por saber que estes pequenos prazeres logo estarão definitivamente além de seu alcance. Acha estranho como mesmo os pequenos podem tornar-se grandes em determinados momentos. Basta

explicações para a morte é como escrever no vento com a tinta do desespero… que é o que faz o verdadeiro artista do espírito. Olhar para o passado — o surrealismo, impressionismo, as vanguardas — e ver que tudo é história resumida em livros grossos demais para serem lidos sem fastio. Toque minha pele e sinta o quanto a morte se revela na aparência e nos sentidos. Mesmo os comediantes são movidos por esse desespero. Morrer sem saber por que se morre, como se morre, o que realmente morre, esse é o combustível do artista e de todo e qualquer

Tóquio é uma cidade estranha. Mesmo para um rapaz de olhos amendoados e cabelos pretos e lisos e que bem passaria desapercebido na multidão simétrica. Poderia caso não fosse a assincronia de seus sentimentos para com os sentimentos da megalópole.

homem

— Quando você volta?

Respira e respira mais uma vez antes de dizer que em breve.

— Que bom, estou com saudades.

Cospe no chão da calçada e chama a atenção de pessoas desacostumadas com tal grosseria.

— A gente está indo todo final de semana para Piçarras. O sol e a praia estão lindos. Quando dá ânimo a gente pega o asfalto e vai pras praias da redondeza. É muito bacana isso de ter tanto lugar bonito pra visitar. Só falta você.

Diz que está atrasado para um compromisso e que precisa desligar.

— Quando você chegar vai ter um pudim de leite enorme te esperando.

Diz que vai ser muito bom rever a todos e

(todas as vezes que é preciso ir a um velório, dar um adeus doído, sofrer um momento de partida, algo se modifica em mim. Sabe, amigo, é cruel dizer mas eu sempre gostei desses momentos. Quero dizer, dos bons e ruins. Neles eu me sentia mais vivo e e tinha a certeza de que serviriam para algo, algo escrito, quero dizer)

desliga e coloca o fone no gancho com o cuidado com que colocaria um bebê no berço. Tira o cartão e o guarda na carteira e vai na cadência da multidão até a primeira estação de metrô e acomoda-se ao aperto de mil corpos largando o próprio corpo para que esses tantos outros corpos o sustentem. E surpreendentemente isso traz um tamanho alívio que pensa que poderia ficar indo de um lado a outro de Tóquio, suportado pela multidão anônima, até que finalmente fosse expulso dos vagões, ou simplesmente se dissolvesse e fosse absorvido pelas carnes moles e desavisadas de seu destino e levado para mil casas para usufruir da banalidade cotidiana de mil indigentes emocionais como se isso fosse ambrosia ou o néctar que escorre do seio da deusa esquecida.

escrever é mais do que pode supor. Nasci em Osaka, em 1899, como deve saber. Séculos se foram e meus textos curtos ainda são minha grande obra, não meus romances. Vida longa, textos curtos, momentos… uma ironia, não acha?

Com o cigarro entre os lábios, caminha pelas vielas estreitas e chega ao número indicado no cartão. A pequena placa é de madeira compacta, esculpida no velho estilo japonês. Logo abaixo um fio branco corre entre as heras até um interruptor. Toca a campainha e uma senhora muito velha o atende e de forma gentil pede que espere. Se ela soubesse o quanto o ofende saber que nunca alcançará tamanha decrepitude, que nunca terá a chance de descobrir os desgostos de se ver a transformar-se em poeira no ritmo lento do evaporar-se e secar. Então ela não lhe daria as costas, recuaria cuidadosa, com os olhos fixos em seus olhos mortiços e desapareceria no longo corredor que leva ao interior da casa para nunca mais retornar.

(gosto de piadas que me fazem rir até cair fora de mim)

com as mãos secas frente ao sexo seco ela cumprimenta novamente e pede que a acompanhe após tirar os sapatos. As meias que ela oferece são muitos úteis no ambiente exposto do jardim de inverno.

— O patrão já virá atendê-lo.

Pergunta se pode fumar e ela sai e volta trazendo um pequeno cinzeiro de jade.

— Gostaria de uma bebida?

Da bandeja de prata lavrada tira o copo alto, cheio de uísque Suntory e

— Não, eu não tenho filhos, sorri

agradece e a velha senhora se retira e fecha a porta corrediça, deixando-o sozinho no pequeno jardim de inverno, sentado na varanda sobre uma almofada recheada de palha de arroz prensada e com os pés balançando sobre a água e milhares de pedregulhos cinza claros. Assim

as coisas tomam a dimensão da realidade que se escolheu para os olhos interiores. Escrever é o que me dá sanidade e me permite ter a certeza de minha individualidade. Ao mesmo tempo, escrever é o que torna este indivíduo senil da finitude e o mergulha na possibilidade da eternidade da obra. Viver por meio da obra é uma estupidez tão grande como matar a sede com açúcar. Escrever é morrer antes da morte e pior, é uma morte falsa em um paraíso que nunca terá a forma do verdadeiro paraíso. Se é que realmente existe o que eu deveria conhecer e não conheço

Duas pedras de rio, negras e cobertas de musgo verde e fresco de gotículas de água límpida, predominam como dois maciços gêmeos. Pequenos arbustos plantados aos seus pés aumentam a sensação da imensidão das rochas. No lago que desaparece sob o assoalho da varanda nadam pequenas carpas coloridas. Apenas seus pés apoiados nas pedras que emergem das águas atrapalham a ilusão.

— O senhor poderia aguardar mais alguns instantes? O patrão recebeu uma ligação urgente.

Diz que sim e do mesmo modo que não ouviu a porta se abrir, não a ouve fechar, distraído a encontrar na pequena paisagem detalhes que apenas a observação acurada faz descobrir. Coisas como as ínfimas conchas que se afundam na fina areia que escorre dos pés das miniaturas de pinheiro negro e em manchas irregulares compõem a praia do lago e

há momentos e momentos como aqueles em que nos damos conta de que estamos a morrer, não agora, que é a única vida que realmente temos, mas a morte terrível e inexorável da consciência de que o contraste entre o passado e o futuro é que nos mata. Eu não choro, mas gostaria de ter essa válvula de escape. Tirar de mim o que eu sei que nunca poderei realmente dispor, a não ser quando escrevo e

os galhos secos enfiados junto à parede, protegendo as raízes dos bambus de canas finas e que de tão longas alcançam a linha do céu acima do telhado e conseguem ocultar as nuvens trançadas em si mesmas e que oscilam no firmamento parecendo observar a terra, os prédios, as casas, o jardim de inverno e

posso dizer que escrever sobre si mesmo é contornar a vida com um traço tão fino que desaparece ao olhar atento do tempo e deste modo letra e sangue fluem como um rio único. A morte do senhor Mishima me fez repensar muito do que me ocupava a mente deste a juventude e que pouco se transformou, se pensarmos bem. O adolescente e o homem velho são o mesmo homem, com o mesmo tempo futuro demarcado pela incerteza do fim, com a diferença de que a carne jovem ainda não foi conspurcada pela experiência excessiva, reiterada, amargurante. O senhor Mishima não percebeu o quão fina era a linha, ou percebeu e aceitou de um modo que eu jamais pude. De todo modo, morrer não é pior que morder um caqui verde.

tudo o que está como está sem realmente saber.

A Estação Liberdade acaba de lançar O país das neves e A casa das belas adormecidas, de Yasunari Kawabata.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho