Tardes de café e literatura

Jamil Snege sempre foi muito generoso com os jovens escritores
Jamil Snege, autor de “Viver é prejudicial à saúde”
01/06/2003

escritor precisa ter pegada, coragem para…

Durante anos, sempre que podia, ligava ou fazia visitas,

(estou sozinho com as coroas de flores sobre a placa de metal sobre o buraco em meio à ladeira gramada como se eu fosse o único e mais ninguém se importasse que meu amigo estivesse morto)

chegando depois das duas da tarde, eventualmente carregando um pacote de doces, amendoins, marias-moles — que ele adorava —, doce-de-leite, torrones e o que mais eu encontrasse pelo caminho, eu subia os lances de escada e me anunciava lá da porta de entrada.

— Quer um café? — Jamil dizia interrompendo a leitura dos jornais.

(nos automóveis que deslizam sobre o asfalto, rostos colados às janelas não se esforçam para adivinhar os motivos do meu cansaço e decepção, mas nem por isso param, juntam-se ao meu lamento, apenas continuam escapando do anoitecer próximo)

Esperando a água ferver, nos apertávamos na pequena cozinha enquanto eu aguardava Jamil arrumar sobre a pequena mesa dois minúsculos copos de massa de tomate.

— O Marcelo Almeida trouxe da Europa uns copos de iogurte. Muito bonitos, mas eu ainda prefiro estes. Pena que não encontro mais para comprar.

De um modo burocrático, Jamil tirava o pó de café do pote, enfiando a colher duas vezes,

— O robusta tem sabor mais forte porque é mais torrado; o rubiácea já pode ser deixado menos tempo no fogo, assim fica mais suave. Se bem quê, em geral, os torrefadores fazem um blend para a venda

e ajeitava o filtro de papel no apoio. Por vezes, errava na quantidade de água e, para não desperdiçar, gastava o excesso escaldando longamente a garrafa térmica, sem jamais interromper a conversa.

— Olha este cantinho da cozinha, na segunda prateleira do armário de metal. Está vendo esta maçã? Faz três meses que ela está ai e não apodreceu. E isso acontece com tudo o que eu coloco neste pequeno quadrante. As frutas murcham e secam, mas não apodrecem.

(se ainda houvesse sol eu estaria protegido pelo toldo verde, eu e as flores, muitas, tantas, tantas que inundariam o cemitério de perfume ao murcharem rapidamente, expostas diretamente ao dia, mas que realmente não terão tempo pois três homens me observam à distância, esperando eu partir para só então tirarem o toldo verde, as flores, a placa de metal e, iluminados artificialmente, trazerem o trator para perto, arrastando a pequena carreta, a terra, o fim do sábado)

Lavado os copos no banheiro anexo, voltávamos para a sala, Jamil na frente, eu atrás, continuando a conferir se a planta era realmente nova, se havia novidades nas estantes bagunçadas de livros, algo pendurado para fora das gavetas do armário de metal que servia de arquivo de projetos, departamento de obras, estoque de material recebido.

— Preciso arrumar essa bagunça. Mas cadê o tempo? Tirando o ócio, me sobra muito pouco espaço na agenda.

(tento ouvir mas os pássaros não cantam, só lamentam não poder pousar no terreno aberto do morro feito solo sagrado, no qual nem mesmo as árvores são salubres e os finos veios de água que escorrem devem ser impedidos de chegar ao rio no fundo do vale ao custo de intoxicar)

Sentado junto à mesa, ao lado da janela, Jamil aproveitava para limpar o tampo de vidro de sua mesa das marcas de dedos e perdigotos. Esfregando freneticamente uma estopa embebida em álcool, procurava a menor mácula, até que parou e procurou entre os dedos algo,

— Durante minha vida inteira tive 76 quilos, aí, seis meses atrás, comecei a perder peso. No começo achei que era uma gripe besta, mas como apesar dos remédios continuei a emagrecer, um mês atrás fui falar com um amigo médico e ele fez uns exames e depois me indicou um oncologista.

algo que não encontra à vista e acaba obrigado a me encarar.

(quatro e meia da tarde, de braço dado com Maria Helena, saindo de uma visita à sua filha Maria José e a sua neta Samantha — “tudo vai ficar bem”, “eu sei que vai” — quando toca o celular. É Maria José: “Wilson, você não é amigo do Jamil Snege, o escritor? Está no jornal que ele morreu e o enterro vai ser quatro e meia da tarde”)

— Começo tratamento semana que vem.

Doze anos atrás, eu acreditava ter produzido um romance obra-prima de mil e duzentas páginas contando os sete dias da criação por meio de sessenta e cinco personagens principais e mais de duzentos secundários. Disposto a ser descoberto por aquele que todos diziam ser o maioral das letras paranaenses, o rei da cocada preta quando o assunto era literatura, o bruxo da palavra, toquei a campainha e me anunciei à voz de mulher que soou no interfone.

— Desculpa a demora, é que eu estava com um paciente.

Cruzamos uma porta de vidro e aço, andamos quinze passos de um corredor estreito e, tendo desviado de um vaso com uma palmeira anã, chegamos à grande sala tomada pela penumbra, com armários apinhados de livros, nas paredes pôsteres de reproduções de quadros famosos e pinturas originais de artistas vários, pilhas de revistas de todas as épocas, esculturas tribalistas, carrancas nordestinas, cactos de várias espécies, prêmios publicitários, com destaque para um profissionais do ano, montanhas de papéis datilografados e amontoados e organizados segundo uma ordem pessoal indefinível.

— Jamil, é para você.

Vera — que mais tarde descobri ser, além de psicóloga, esposa de Jamil — me anunciou e aquele homem de calvície avançada e rosto com clara ascendência libanesa deu alguns passos na minha direção.

— Muito prazer, Jamil Snege — me estendeu a mão. — Pissetti, não esquece de conferir essa história direito. O Requião precisa tomar mais cuidado com seus arroubos porque isso só dá munição aos adversários.

— O Pissetti trabalha com o Requião — Jamil me conta após as despedidas. — E você?

(chego no apartamento de Maria Helena e aviso Mônica do acontecido — “eu peguei o jornal e só li o segundo caderno. Isso é que dá ser tão alienado” — e pego a chave do carro e vou em disparada para o cemitério Parque Iguaçu, desviando de congestionamentos, não querendo xingar ninguém para não ser obrigado a, eventualmente, enfrentar uma briga de trânsito e)

— Quarenta anos, respondi para o médico e ele fez aquela cara “eu tinha certeza que era o cigarro”. Só que eu achei um livro de macrobiótica que diz que a ciência ainda não descobriu o que leva o câncer a se desenvolver. Desenvolver é a palavra, quer dizer, a gente já tem o troço, mas algo faz com que ele se desenvolva ou não. Ter câncer é como ter talento literário. O romance é o mais grave de todos.

E derrubando as cinzas no cinzeiro, parou de rir e cruzou as pernas e foi olhar a paisagem na janela, para a Curitiba sempre decadente e cheia de personagens patéticos. E

agora eu todos um deles

no silêncio dos minutos que vieram, Jamil continuou com um olhar vago rumo ao céu coberto de azul.

— Como esses caras conseguem se manter dentro de uma história por meses, anos, sem perder o fôlego até concluir uma obra de quatrocentas páginas. Como eles conseguem sustentar a pressão? Sobreviver?

Descansando o cigarro no cinzeiro, passa a mão na área calva de sua cabeça e se ajeita na cadeira, apertando levemente os olhos, como se observasse algo distante, pensando antes de falar algo realmente interessante, fundamental.

— Cadê o doce-de-leite que você trouxe?

(com o celular, tento ligar para Vera, Daniel, Márcio, Miguel, Fábio, Kussun, todos aqueles com que eu falava e não falava, aqueles que eu sabia estarem no enterro e que me diriam se ainda havia tempo, que jurariam segurar a corda um minuto a mais, que agüentariam a angústia de ver o caixão flutuando sobre a cova, incapaz de seguir a gravidade ou escapar em uma ascensão milagrosa)

Após o resultado da cintilografia óssea, que constatou a metástase, em sua crônica quinzenal no jornal Gazeta do Povo, Jamil escreveu que a coisa estava tomando seu corpo e como isso trazia desconfortos ao seu cotidiano.

— Olha minha calça. Tenho ela a mais de vinte anos e agora parece que nunca foi minha. E a barba? Eu nem lembro mais como eu era sem. Vai ser horrível acordar e dar de cara com um velho com uma baita bunda de bebê na cara.

Aos poucos, a ironia foi virando secura mórbida, um modo de tratar de todos os assuntos relacionados com o fim sem que parecesse covarde,

— Eu só vou meter as caras no grande mercado quando tiver pelo menos três romances prontos na gaveta. Se bem que, agora corro o perigo de me tornar uma grande descoberta. O mais novo autor póstumo contratado por uma grande editora.

além de aliviar falando o peso de sua doença.

Como se a língua fosse engolida e não os pulmões, como se a falta de ar fosse tanta que impedisse de continuar a puxar conversa atrás de conversa, passou a ficar cada vez mais tempo olhando pela janela, procurando passarinhos de espécies desconhecidas, aviões desgovernados rumo ao sol, nuvens psicóticas viradas personagens mágicos, uma chuva dourada capaz de curar toda a estupidez do mundo.

— Eu não sou autor que tem facilidade para os enredos, eu sou mais um homem de filigranas, que se ocupa com a lavra da palavra, e que agora está sem ânimo. Se nos últimos anos, eu sentia cansaço só de ver um livro grosso, com esta infestação de banalidades (a morte torna, em comparação, tudo meio besta), nem os finos me animam, ainda mais os meus.

Domingos Pellegrini é nosso melhor contador de histórias, sem dúvidas, mas ele precisa tomar cuidado com a quantidade de publicações, perder o pudor de cortar o texto e dar mais tempo de maturação ao que tem escrito. Gaveta faz bem a qualquer texto. Eu mesmo deixei o Como eu se fiz por si mesmo mais de dez anos guardado. Se não fosse o Fábio Campana, eu não publicava. Pelo contexto, O grande mar redondo pode ser que fique um pouco mais…

Complicado por algumas viagens, ocupado escrevendo para terceiros, acabei não conseguindo visitar Jamil na época mais difícil. Mesmo assim, eu tentava ligar, e tendo tempo, ia rapidamente a sua agência.

(largo o carro no estacionamento e corro ladeira abaixo, torcendo para que as conversas tenham se alongado, que as muitas histórias de Jamil tenham ressurgido repetidamente, em seus ricos detalhes, atrasando a cerimônia, seria fácil lembrarem das aventuras de Jamil pára-quedista no Rio de Janeiro, ou sua tentativa de impedir a revolução de 1964, invadindo o correio central de Curitiba, seus arroubos de fúria legalista contra Jaime Lerner etc.)

Cristovão Tezza é de longe o romancista mais técnico, gosto muito, mas suas histórias não correspondem ao primor da construção. Esse é o risco do aprofundamento da teoria. Se bem que não sei se esse é o motivo. A teoria embota a liberdade do autor que busca justificar uma determinada estrutura no momento da criação

(tanta gente passou por sua vida e quantas terão vindo? Quantas descobriram a tempo, quantas não te viram doente e mesmo assim vieram dar o último adeus?)

Dalton Trevisan deu o que tinha que dar. Continua sendo o maior nome do conto brasileiro, e entre os vivos, um dos melhores do mundo, porém essa história de haicai não dá para considerar com seriedade. Enxugar é uma coisa, tirar até os ossos é outra

Acabadas as sessões de quimioterapia, começaram as radioterapias. Primeiro em um ponto no ilíaco, que já o fazia mancar. Logo, algo mais se alterou. A tendência à depressão manifestou-se

— semana que vem estou na agência. Segunda-feira

tornando-o macambúzio,

— eu nem consigo andar. Preciso de uma cadeira de rodas para ir do quarto à sala. mas eu vou melhorar

menos afeito às longas conversas.

— estou tomando um remédio, desses de última geração, inteligente, semana que vem eu volto para o trabalho.

(ver fantasmas, ouvir vozes, sentir presenças, avançar deste mundo para outro mundo, no qual as leis da física têm pouco ou nenhum significado, e como isso pode ser verdade agora, permitindo que me ouça, ou eu o ouça, sentindo sua presença, como não-corpo, não-vida, não-nada, e assim desdobrar centenas de tardes juntos, percebendo o anoitecer pela janela de seu prédio, juntos continuando a procurar significado no mundo por meio de literaturas de mil nomes, disfarçadas em títulos diversos, amontoadas sobre a existência de cada um, mesmo os mortos, mortos ilustres, caricaturas de homens comuns, gente que tantas vezes descobrimos estúpidas, somente enriquecidas pela escrita, pela vontade de criar algo maior que suas vidas medíocres, admirados por fazerem crer que é possível um mundo interessante quando nada no mundo interessa realmente… meus deus, desculpe por não acreditar)

Dirigindo sem rumo definido, passo ao largo de crianças gordas e ágeis jogando bola no parque Barigüi, velhos arcados andando apressados por Santa Felicidade, mulheres empertigadas empurrando carrinhos de bebês comprados na Praça Zacarias, cachorros babões puxando adolescentes espinhentos de um lado a outro do Jardim Botânico, um menino vestido de preto saltando leve do muro ao chão da Ópera de Arame, uma casal de negros namorando na garagem da Reitoria, um lixeiro e seu lixo procurando o caminhão na rua Riachuelo, pequenos elefantes pendurados em árvores do Passeio Público, borboletas multicores transformando-se em vampiros no Alto da XV, éguas mancas terminando de banhar-se no Centro Cívico.

— Uma vez fiz uma desafio, em reposta ao Wilson Martins que me acusou de miniaturista. Eu propus, em um texto de jornal, que se alguém me pagasse dois mil dólares por mês, garantindo meu sustento, em dois anos eu daria à luz a um romance fenomenal, obra-prima da literatura em língua portuguesa.

— Nunca tive resposta, aí precisei continuar na minha vida medíocre de grande publicitário e competente marqueteiro político, tudo o que eu sempre achei que seria apenas até me tornar escritor, só escritor, alguém que vive de literatura, e não apenas para a literatura.

Chegando na casa de Maria Helena, Mônica me espera.

— Conseguiu?

— Não.

— E agora?

— Agora?

Gostaria de ter dito:

Se eu tiver paciência, daqui a alguns anos esse sentimento de tristeza vai ser suavizada e virará melancolia, então vou poder lembrar de um tempo em que descobri alguém que tinha pelo romance o mesmo apreço que eu, e que me dizendo isso, me fez acreditar que mais que escrever, é necessário encontrar algo que valha a pena escrever, e mais que ser bom, é preciso ser excelente; caso contrário, é melhor evitar de lançar obras que fiquem perdidas em estantes de sebos ou sirvam para constranger amigos que não tiveram paciência de terminar a leitura de sua última estupidez egomaníaca.

você não está me enchendo o saco, pelo contrário. Sinto falta quando você não aparece. Com o passar dos anos, mais que ficar velho a cabeça tem a tendência de se acomodar, e a fama faz com que as pessoas se aproximem esperando que saia luz e sabedoria de sua boca. Eu que mal pago minhas contas, como poderia ter um estoque infinito de luz? Escritor precisa ter pegada, coragem para… você acha que esses babacas que estão por aí conseguem ir além da vontade de ser iguais e assim conquistar um sucesso igual? São todos idiotas. No mundo da literatura, da boa literatura, não há espaço para concessões. Por isso eu gosto de ler biografias. Nelas você descobre como o autor genial não apenas esquece que pode ser banal, mas está condenado pela incapacidade de seguir o rebanho. Literatura não põe comida na mesa, esquece isso. Arranja outro trabalho, vai ser jornalista, publicitário, roteirista, fazer qualquer coisa que dê dinheiro porque você, como eu, está condenado a escrever. Não adianta querer desistir, ela vai te perseguir e te consumir até você lamentar ter esse talento e chamar seu talento de doença, mal, desgraça. Só que um dia, talvez num único instante, a palavra vai ser mais que palavra e a literatura vai brilhar em sua mente e em seu corpo, como um milagre, você não vai mais querer a cura pois estará totalmente consumido. Nesse dia, quando você descobrir a sua verdadeira voz, sua realidade literária, todas as dores terão valido a pena

— Você está bem?

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho