Stephen King

A conversa com o mestre do suspense, terror e sobrenatural
Stephen King: domínio sobre o medo
01/09/2003

Você não pergunta porque a agulha da bússola gira para o norte. Isso apenas acontece. É tudo! Meu pai, que eu nunca conheci, abandonou minha mãe quando eu tinha dois anos. Ele simplesmente desapareceu. Não me lembro dele, de nada. Bem, ele deixou para trás caixas e mais caixas de livros. Eles eram tudo, você sabe, escritos de H. P. Lovecraft (ficção de horror) e histórias de horror dos anos quarenta e cinqüenta. Aparentemente ele tinha o mesmo gosto para histórias. Eu amo histórias sobrenaturais. Eu amo tudo de Rudyard Kipling, particularmente as histórias que se passam na Índia.

O vento sobre as árvores. As folhas balouçando em idas e vindas aprisionadas. O vento sobre as árvores. O som do vento sobre as árvores. Poucas folhas escapando enquanto algo acontece ao redor.

“As costas do Maine…”

é algo que ouvi muitas vezes em programas de televisão como Viagens ao fundo do mar e em desenhos animados como Moby Dick e Shazan. Muitas tardes gastei assistindo TV em vez de correr pelas ruas, aproveitar o dia, confiar meu corpo ao espaço, sair da sala de estar e…

De repente percebo que cresci. Não estou mais restrito às paredes da casa de meus pais, muito menos ao ritmo cadenciado da vida interiorana. Mesmo assim não me sinto satisfeito. Se olho para a direita, tenho o espaço no qual um dia existiram duas torres, à esquerda tenho o rio Hudson.

Manhattan, abandono a ilha fugindo para o mar. Tenho um motivo, preciso encontrar Stephen King antes que meu prazo esgote, antes que

Eu acho que comecei a escrever com doze anos. Eu adorava. Ajudou-me muito a passar o tempo feito uma criança. Era mais como uma brincadeira do que trabalho. Então eu escrevia tanto quanto podia. Eu comecei a enviar histórias para revistas quando eu estava perto dos dezesseis anos e eu publiquei minha primeira história quando eu estava com vinte.

O vento sobre as árvores, repito a mesma frase em busca de um determinado ritmo, tentando provocar certa familiaridade no leitor. Não que eu o subestime, pelo contrário. Tenho certeza de que em sua perspicácia já percebeu meu subterfúgio. Longe de mim querer ser mais esperto que você… apenas que o vento, as folhas, o som, tudo isso é familiar ao cotidiano, familiar ao cinema, à televisão, familiar, e assim é fácil evocar um compromisso, entre mim e você, e assim posso te chamar de amigo, e assim posso contar certos segredos

— meu passado me constrange.

Pronto, está feito, estou cortando o asfalto em um Volvo alugado. Dirigindo calmamente enquanto poucos me ultrapassam, e menos ainda ficam para trás. Diferentemente dos fins de semana, ou dos meses de verão, agora a vida parece morbidamente calma, ainda mais emoldurada por tantos pinheiros e sombras sob os galhos. A todo momento parece que vejo alguém esgueirando-se, indo de uma vaguidão à outra, procurando vigiar sem ser descoberto, despindo de mim a privacidade que suponho; exceto por acreditar que em certos momentos alguém me observa, perdido entre a paisagem, feito eu perdido de mim mesmo à procura

Eu vendi uma novela chamada Carrie, em 1974. Aquela não era uma boa época. Era um tempo restrito em termos de dinheiro. Inicialmente peguei pouco dinheiro, mas então começaram a acontecer as vendas. Então eu consegui um adiantamento de um quarto de milhão de dólares. Até aquele ponto eu ensinava e então me aposentei como professor e tornei-me um escritor em tempo integral.

Mal chegado da escola, almoçava assistindo a desenhos: O Esquilo sem grilo, A bruxinha Mafalda, Speed Racer, Scooby-doo, Corrida maluca, e depois acompanhava as notícias no jornal Hoje. Era confuso atravessar o espaço de duas para três dimensões e, no intervalo das notícias, descobrir que havia uma quarta. Enquanto amadurecia, deixava de ser criança e descobria que o que me diferenciava não era outra coisa senão o sonho daqueles que me cercavam. Meu sonho era pouco. O que valia era a verdade que me preexistia. Eu não sabia que o tempo apenas curvava cada um a seu destino, não importando realmente quem é ou deixa de ser. Tolices, naquele momento, mastigando a carne mal passada que a um segundo estava na ponta de meu garfo, a única valia era que eu tinha heróis, e por mais que fossem agredidos, ofendidos, humilhados, erguiam-se inteiros antes do end.

As idéias apenas me ocorrem, isso é tudo. Eu tenho idéias e elas têm a tendência de serem gerais. Mas eu deliberadamente não costumo sair e buscar coisas assustadoras ou coisas esquisitas como assunto para escrever. Genericamente falando, eu pego toda idéia como sendo uma boa idéia e modelo-a em minha cabeça. Eu tenho essas substâncias em minha mente e isso faz meus editores felizes porque eles têm um lugar confortável para procurar idéias, se bem que eu mesmo não sei de onde elas vêm.

Estaciono o carro e entro no restaurante Rudeman. Peço um refrigerante e sento à mesa perto da janela. Stephen ainda não chegou, é óbvio. Os únicos presentes são eu e a mulher gorda de cabelos prateados. Ela me lembra alguém; alguém de meu passado.

— Tão velha quanto Matusalém,

suponho baixinho contando em seu rosto tantas rugas quanto moscas na janela.

— Endora!

Falo um pouco alto demais, chamando sua atenção, obrigando-me a pedir um pedaço de torta de maçã para evitar um constrangimento maior.

— Com creme, claro.

Quando entardecia, depois das novelas eu ficava assistindo Kojak, Bareta, Combat, Hawaí 5.0, Canon, Os detetives, Os novos centuriões, atrasando a hora de ir dormir, de fechar os olhos e encarar sonhos mais pobres do que aqueles que me eram dados via antena.

Toda a minha vida eu tenho sido fã de cinema. Eu cresci assistindo a filmes. Aquilo era sempre o mais divertido… irmos ao cinema e depois lembrar aquilo tudo como se fosse algo a ser alcançado. Então eu ia todas as vezes que podia. Eu acho que todos que cresceram assistindo a filmes, que tornaram-se escritores podem escrever cinematograficamente.

— Desculpe o atraso. Tive que parar no correio para colocar algumas cartas para Tabitha, minha mulher.

Stephen coloca a mão sobre meu ombro, impedindo-me de levantar, de disfarçar o riso

(a filha, a filha, eu rio)

— Hoje o dia está especialmente limpo. Dá vontade de sair caminhando pela estrada só para ter a sensação.

Pergunto ingenuamente

— Por que não?

e deixando a torta de lado, compramos duas garrafas de água e saímos do restaurante. Ao fechar a porta, vejo Endora limpando o caixa, e penso se devo voltar para saber como está sua filha Sabrina, seu genro Stephen, ou mesmo se Larry continua com a agência de publicidade (menos Thabita, é claro, que casou com…)

Eu sinto que a concentração é perturbada apenas quando você está aprendendo a digitar, não depois. Mas eu sei de muitos escritores que não têm este ponto de vista. Meu colaborador, Peter Straub, com quem eu fiz alguns livros, sempre escreve à mão. Ele tem uma péssima caligrafia, que ninguém, exceto eu, consegue entender. Ele nunca tentou digitar… obviamente existe algo nessa teoria de que o ritmo do teclado, ou da mão, interfere no processo criativo.

Sob o sol do começo da tarde, o estrabismo de Stephen parece mais acentuado, assim como seu jeito desajeitado.

— Do que você tanto ri?

É interessante ver como caminha olhando para os vários lados do mundo, sempre tropeçando, como se a estrada fosse esburacada exatamente nos locais onde seus pés tocam o chão. E se um algo mais acontece, como um corvo que pousa na estrada para comer os restos de um coelho atropelado, um suspiro nervoso aflora deixando ver os dentes tortos.

O homem sempre procurou o entretenimento e para isso ele ouvia contos sob a luz da fogueira desde os dias das cavernas. O contador de histórias naquela época era uma pessoa importante. Livros raramente elevam a mente humana, exceto os religiosos e outros dessa espécie. Homens amam ouvir histórias e o crime e o horror ajudam-no a entender a mente humana e seu comportamento. Elas servem a um propósito.

(como os desenhos animados!)

— Do que você tanto ri?

Muitos quilômetros à frente é possível ver alguns morros, que na cadência lenta de nossos passos, parecem tão perto quanto longe. Algo como a estrada do infinito, que quanto mais avançamos, mais longe estamos do fim.

Eu nunca fui a um psiquiatra porque eu não acho que precise…. o que você faz ao ir a um psiquiatra é pagar 75, 90 dólares a hora para pôr para fora seus medos. Quando eu escrevo eles aparecem. As pessoas me pagam para isso. Isso é bom.

Não digo o que penso, apenas rio. E esse riso aumenta quando uma caminhonete Ford 1954 passa em disparada, com o rádio no volume máximo. Eu não distingo a música, mas

Mistery train, Roy Orbison.

(o leitor deve ter notado como o relato autobiográfico perdeu a força. Certamente a característica confessional não desapareceu, porém, acredito, perdeu impacto. No entanto, para acalmar os ânimos daqueles que acreditam que a ficção deve ter seu rumo, vou esclarecer que interrompi minhas lembranças para me restringir ao suposto verdadeiro herói. Afinal, quem está sendo encontrado é que deve levar holofotes; se bem que caberia uma discussão sobre os limites da realidade… que se dane a realidade!)

—- Mistery train, Roy Orbison.

Peço uma pausa e ajoelho para amarrar o cadarço de minhas botas, e aproveito para tirar uma pedra que, encaixada no vão do solado, incomoda meus passos. Descubro que é um dente. E não um dente comum, como esses incisivos que normalmente encontramos nos relatos de qualquer autor de fantasias, mas um molar, de raízes longas e espessas, ainda com sangue fresco preso ao esmalte

Mistery train, Roy Orbison.

(Por que alguém retiraria um dente saudável?)

Sem mais risadas, respondo que gosto muito de Roy Orbison, e acrescento que sua vida daria um belo filme, e acrescento mais ainda, que se Orbison tivesse boa estampa teria feito mais sucesso que Elvis… Paro percebendo que meus argumentos não agradam

— eu li que, apesar de tudo, Orbison transava com todas as mulheres que queria.

Eu não acho que todos os homens, mas eu acho que isso vale para muitos homens. Eu acho que muitos homens podem agir de forma violenta, normalmente para defesa, mas eu acho que nós ainda somos criaturas primitivas, e que nós temos uma tendência real de assumirmos a violência. Muitos de nós somos como… bem, muitos de nós somos como muitos aviões. Lembra o TWA Flight 800, aquele que explodiu sobre Long Island Sound? Aquele foi um problema elétrico, ou, pelo menos, eles sentiram que tinha sido provavelmente um problema elétrico que iniciou o fogo nos cabos. Quando você vê um cara que repentinamente surta, um cara que enlouquece, um Charles Whitman, alguém que vai para o topo da Texas Tower e atira em uma multidão de pessoas, quando um cara envia cartas — que é a gíria para isso — esse é um cara com fogo em seus cabos, basicamente. Esses são a exceção, não a regra. Mas, é claro, nós recebemos muita informação a respeito desse tipo de coisa.

— O que você tem?

De repente, caminhando sob o sol do Maine, cercado pelo som do vento nas árvores, pela paisagem viva, mas vazia que envolve aqueles que caminham por uma estrada tranqüila; de repente, menos que a tranqüilidade eu leio nas folhas e nas sombras, no céu azul que recobre meus cabelos e pensamentos um cisco incômodo, talvez um inseto faminto que perturba sem saber que perturba, que se torna inimigo sem entender o que seja ser inimigo; de repente, coçando as costas da mão eu sinto que o mal é algo que não existe por escolha, mas existe; de repente eu me vejo criança, caminhando pelos corredores de minha casa, indo para meu quarto dormir, cercado pela noite que consegue atravessar as paredes e cobrir meus olhos; de repente eu estou sob minhas cobertas, querendo ir ao banheiro, mas sem coragem, sem forças, deixando-me urinar no colchão, tendo mais medo daquilo que não sei se realmente está na escuridão do que de meus pais; de repente olho para o passo descompassado de Stephen, lembro de seus livros, dos fãs obcecados, dele sendo atropelado, de sua casa sendo invadida, de tantos seriados nos quais tudo sempre acaba bem mas que na vida real eu não sei nunca. O fraqueza é Cthulu, a covardia

(Lovecraft, lembra-se, querido leitor? O contemporâneo de Edgar Rice Burroghs, o autor de Tarzan. Foi uma época de busca de um herói redentor, de Conans, de reis da selva, de demônios inomináveis… mas que se danem! Digo e repito, eu cresci!)

Stephen não desvia os olhos do dente entre meus dedos, suas mãos fechadas em punho.

Sugiro que talvez devêssemos voltar, porém Stephen não responde. Eu insisto…

Eu lembro de dizer a uma garota com que eu saía na época da universidade… bem, nós namoramos um tempo e paramos de nos encontrar porque queríamos ver outras pessoas — nós sempre dizemos isso — mas ela queria ver outras pessoas, e nós rompemos, essencialmente. E eu a vi mais tarde e ela tinha uma marca sob o olho. E eu perguntei: O que aconteceu? E ela disse: Eu não quero falar a respeito. E eu disse: Vem, vamos tomar uma xícara de café. Porque ela estava claramente perturbada. Então nós fomos. Ela tinha saído com outro cara, e o cara queria fazer algumas coisas que ela não queria, então ele a agrediu. E eu nunca esqueci disso. E isso veio a ser a base de acontecimentos em um bom número de diferentes textos que eu vim a escrever. Eu ainda lembro de dizer a ela, naquele dia: É preciso coragem para sair com um cara, não é? Talvez você esteja atraída por ele, você está interessada nele, mas basicamente você está dizendo: Eu estou entrando em seu carro, eu estou indo com você a algum lugar, e eu estou confiando que você irá me trazer de volta inteira. Isso precisa coragem. E ela respondeu: Você nunca sabe. Homens são perigosos. Nós somos grandes animais. Eu tenho oitenta quilos sobre os pés, e eu posso bater. Então não me provoque. E se você me tirar do controle, eu tentarei sorrir e tudo o mais, mas se eu não conseguir, provavelmente haverá danos.

Jogo o dente fora, para o meio dos pinheiros, e enquanto permanecemos imóveis, ouço som de passos, e não de apenas um par, mas de centenas, centenas que soam milhares em meio ao silêncio do vento roçando os galhos das árvores. Eu poderia chamar Stephen uma vez mais, mas não adiantaria.. Eu aceito. Sou adulto. Não sei o motivo, está tudo escuro, mas sei que mereço.

(aqui deveria entrar a explicação. Uma cena do passado que acordaria o leitor para o círculo viciado que são as tramas novelísticas. Porém isto não é uma novela, nem mesmo é um conto, é mais um relato de um momento de duas vidas. Por isso mesmo, leitor amigo, contente-se com os fatos, e esqueça por um momento o suspense, os plots, a riqueza de cada personagem. A realidade é assim, sem grandes desfechos, sem momentos sublimes, apenas uma sucessão de desilusões, coisas que acabam por nos bastar)

No brasil obra do Stephen
King é publicada pela objetiva.
São cerca de 20 títulos.
O último é Buick 8
Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho