Seria melhor não encontrar G. K. Chesterton

O encontro com o escritor que considerava todo ato um sacrifício e para quem desejar uma ação era uma limitação
Gilbert Keith Chesterton, autor de “O tempero da vida e outros ensaios”
01/05/2005

Respira com certa dificuldade.

(tenha certeza)

As frutas estão amassadas de tanto que batem dentro da sacola.

(posso reverter palavras em palavras outras, mas)

Os tomates perderam as sementes e as folhas de alface parecem cascas úmidas de velhas feridas.

(a verdade é uma só,)

Duas bolas amarelas soltam seu sumo azedo dentro do saco plástico no qual ainda está mal colada a etiqueta a anunciar

(quando sua mãe morreu, amigo, do modo como morreu, o que fez foi entregar a você o maior dos presentes. Só você não está entendendo o quanto de si existe nas)

passion fruits.

(tuas atuais certezas, dê tempo ao tempo)

Usa a mão esquerda para carregar as compras, com a direita traz o vaso de petúnias. Sempre ouviu falar de petúnias mas nunca as tinha visto. Precisou viajar meio mundo para encontrar um vaso. Pequeno, mas significativo em sua bela florada. Minúsculo e mesmo assim tão pesado.

— Eu realmente não acho que seja assim. Com o passar dos anos o homem torna-se mais espectador do que autor da vida social.

Chesterton, com a bengala, aponta para a multidão que passeia pelo Golden Gate Park, em visita ao Conservatório de Flores. Mulheres de cabelos armados com tanto laquê que prendem o vento ao redor; crianças bisnetas do flower power, vestidas com jardineiras jeans e descalças como ninfas na floresta; gays em longos beijos apaixonados, contrastando o amor de seus bigodes às calças de couro e braços musculosos. Todos mergulhados em si mesmos e em seus desejos.

— Ou talvez não.

A revoada de gaivotas faz fundo ao recolocar da ponta de prata da bengala no chão. Abaixo de um intenso bater de asas, Chesterton apóia ambas as mãos e cruza as pernas abaixo de seu tronco obeso e

— Antes podia dizer que a única educação eterna é estar bastante seguro de uma coisa para dizê-la a uma criança. Mas e agora que elas não existem mais?

sorri como se sorrisse para toda a vida que viveu morto sem realmente estar.

(ansiedade que se supera no tédio, maior remédio às dores da vida)

— Mas de um modo ou de outro, a aventura poderá ser louca, mas o aventureiro, para levá-la a cabo, não.

Chesterton ergue os braços ao céu e atinge com a ponta prateada uma das grandes aves, que tomba como se fosse o espectro do vampiro, o demônio amaldiçoado, a encarnação dos pesadelos de Lugosi, ou no mínimo a resposta da senhora sorte às preces de um fantasma fora de moda.

(é uma situação complexa, se quer realmente que eu explique meu ponto de vista. Não pretendo fazer filosofices, ou pior, auto-ajuda de beira de estrada, prefiro me empanturrar de carne assada a perder tempo aconselhando alguém com vistas a fazê-lo acreditar em soluções miraculosas como a bondade do ser humano ou que o câncer de sua mãe valeu a pena, porque eu sei que)

Sentado em um dos bancos como as frutas como se fosse fome meu problema. Mastigo devagar, rolando as órbitas do céu à terra, das pernas aos olhos de centenas de pequenas mulheres e homens foragidos de desenhos de Walt Disney, que assim como eu não parecem afetar ao gordo Chesterton. Imerso em suas palavras, a falar expansivo e

(entre as escolhas que todos fizemos, nenhuma delas, antes desta, foi a verdadeira alteradora de destinos. Mas, se formos pensar bem, qual foi a escolha? Continuar a vê-la gemer e gritar e atacar o ar e as mãos que tentavam conter seu pequeno corpo na cama era realmente uma possibilidade?)

mesmo assim sem chamar a atenção,

(Somente quem passou pela experiência sabe o que é ver o corpo de sua mãe estrebuchando como uma rã espasmódica em uma aula de ciências sob os olhares de dezenas de crianças curiosas)

exceto de um mulah de olhos pequenos e barba tão longa quanto suas tranças,

(incapaz de definir se o que sente é dor pela dor de quem ama ou o desejo proibido de que tudo se acabe o mais cedo possível, pois já está saturado seu fígado com a certeza de que a vida está sendo injusta consigo, e certamente sua mãe está sendo cruel em não se entregar à finitude, acabando assim com o sofrimento de todos no quarto e na sala de estar e)

que vislumbra no lado vazio do banco algo mais que apenas um homem a lamber sôfrego a casca murcha do maracujá, afogando-se no acumulado sabor ácido de suas lembranças.

— O senhor está bem? Precisa de ajuda?

O mulah permanece em pé, frente ao banco, abraçado ao Corão, sem jamais olhar uma linha que vá abaixo do horizonte. Acompanhando-o uma fila de crianças do Islã, uma segurando a mão da outra, outra procurando nos arredores algo que seja mais curioso que o professor a conversar com um estranho.

— Não se envergonhe. Pessoas que tiveram grandes dores sabem. Grandes perdas e grandes encontros. Reversos que se desfazem no momento que nos damos conta dos desejos de Allah.

Uso as alças da sacola como cordas soltas e amarro a boca do lixo improvisado e o jogo na lixeira colada ao banco.

— Eu me chamo Yusuf Islam,

diz meio envergonhado, meio consolador. E acrescenta que deus ama o limpo, como se a citação aliviasse mais o suor do que o lenço oferecido.

(a enfermeira já havia dito que o que tínhamos ali era o corpo vazio,)

Chesterton com seus óculos de aro redondo apertando seu rosto contra a barba meio grisalha do mulah.

(uma casca na qual a consciência havia desaparecido. Mas o que digo e repito repetindo o que li e reli: Descartes estava errado. A dualidade corpo e mente é uma ilusão. Por mais que nos tenham ensinado essa falsa verdade)

— Não há outro deus senão deus.

(é impossível dizer que carne e espírito, mente e corpo sejam separáveis. Senão seria fácil abandonar aqueles braços e pernas brancos pela longa falta de sol e arroxeados devido à força que fazíamos para contê-la na cama)

Chesterton ouve o mulah pedir que as crianças se afastem e

(sua mãe que em sua tez definhada podia ser qualquer um, qualquer sexo, qualquer idade, qualquer ardor qualquer algo que conseguisse atirar para longe de si a vontade de simplesmente esganá-la e assim poder ir dormir o sono que não é morte, é apenas esquecimento, de horas, de dias, de razão que)

não se abala e volta-se para mim, inerte, e diz carregando nos erres:

— Como vão chegar a ser bons caricaturistas aqueles que já triunfam como caricaturas?

(rezava a deus recuperar ou perder de vez)

Se por um lado caio, por outro levanto e o sigo, no horário, para variar, triste por abandonar o mundo, mas feliz por ter desaparecido a dor no braço esquerdo que parecia, em pontadas fundas, paralisar metade de meu tronco.

(nossa geração, todos os nossos amigos, todos, sem exceção, viveram a identidade do gênio e a certeza incompleta de que algo havia a ser temido, e por isso éramos incapazes de tomar grandes decisões, e muitas vezes as menores. Veja o que aconteceu com Jonas. Foi menos o álcool e mais a incapacidade de agüentar pressões que o fez fracassar sem ter realmente tentado. A patologia psiquiátrica á algo irônico para um psicólogo, mas talvez seja comum entre músicos. Se bem que você escapou dessa, não é, amigo?)

O bonde sobe o morro em marcha lenta. Poucas pessoas lêem jornais, menos ainda seguram revistas semanais. Isolada no fundo, uma velha senhora usa um livro como suporte para seus pulsos sobre o colo. Ao seu lado, Emile Cioran olha para as calçadas e não parece ficar desapontado quando a velha senhora se levanta e

— Assassino. Matou a mulher e preferiu a loucura à razão que foi a causa de sua fama.

muda de lugar, tão indignada com o outro passageiro quanto esquisita com a faca nas costas.

(na verdade me surpreende o modo como Jonas se agarrou à vida. Após tanta bebida, surras na rua, ser rejeitado pela mulher, sentir-se rebaixado pelo pai ao fracasso que nunca quis e renegou mas que, compadres da má sorte, beija todos os dias desde o dia que preferiu a covardia que todos nós temos na carne sem admitir)

Uma família de samoanos, com seus enormes sarongues e maiores barrigas, riem enquanto caminham e trocam empurrões brutais que lhes parecem carinho e atenção. A mulher empurra um carrinho de bebê cheio de compras.

(Você entende o ponto ao qual quero chegar? Falhamos pois nossa identidade era a covardia. Se quiser uma análise fácil, um psicologismo rasteiro, nossas relações mal-resolvidas com nossos pais nos tornaram aleijões emocionais. Ou você não sabe que a indecisão está ligada de modo profundo à capacidade de se emocionar? Pela lógica, como provou, como afirmou Antonio Damásio, todas as respostas são justificáveis. É a emoção que nos permite cortar caminhos e decidir imediatamente. Não acredita? Vá ler O erro de Descartes, vá se informar com um bom neurologista. O espírito está no corpo, e não apenas no cérebro morto de sua mãe, mas em todo o corpo, em todas as células. Quando escolhemos deixar que morresse, fomos assassinos de sua existência)

Me sento. Cioran aproxima a boca de meu ouvido e sussurra

— Minha consciência tem para mim mais peso que a oposição de todo o mundo.

e volta a observar a calçada, como se ali houvesse algo além de grupos de samoanos, japoneses, negros, caucasianos, acompanhados e solitários, perfumados pelo odor adocicado da existência vadia, sem direção que importe a alguém mais que ao indivíduo em trajeto.

— Dickens é um exemplo genial do que acontece quando um autor genial tem o mesmo gosto que o público.

Ninguém dá atenção a Chesterton.

(apesar de tudo nunca tive pesadelos com o que passamos, no máximo lembranças concatenadas a fim de serem utilizadas em um texto, como este texto, amigo, no qual, de modo cruel, transcrevo tua experiência mais dolorosa)

Joseph Conrad passa por nós e reconhece a Cioran e faz uma mesura. Cioran não responde, continua lembrando um momento de loucura no qual a filosofia preferiu o aço à misericórdia

— Ingrato, não há dúvidas. Mas todas as ambições são detestáveis, exceto as que enobrecem o homem e estimulam sua humanidade.

Conrad é o Conrad velho, de barbas brancas e jeito de quem se perdeu da realidade abraçando algo mais concreto. Longe de nós, caminha a flutuar sobre o concreto e o asfalto, fazendo de si um componente do vento, uma canção sem voz.

Chesterton ergue a voz e

— Desejar a ação é uma limitação. Neste sentido todo ato é um sacrifício. Ao escolher uma coisa rechaçamos necessariamente algumas outras.

antes que continue, Wittgenstein o interrompe.

– Para trazer um limite ao pensamento teríamos que ser capazes de pensar de ambos os lados desse limite, e teríamos por conseguinte de ser capazes de pensar o que não se pode pensar.

Começo a rir de forma incontrolável. Não que o argumento fosse algo especialmente engraçado, ou que servisse de contraprova a tudo o que os mal-amados escritores e filósofos diziam, mas Wittgenstein conseguiu fazer enrubescer Chesterton e isso já era mais do que eu podia esperar ver em um dia ensolarado em San Francisco. E como brinde, obrigou Cioran a atentar para as pessoas no bonde e isso o trouxe de volta à vida — se é que realmente é possível dizer isso — e diante dos confrades, acabou aceitando descer no ponto seguinte, deixando que eu seguisse sozinho meu caminho. Pelo menos até o ponto final. Pelo menos excetuando Chesterton.

— É isso. Um grande clássico é um homem ao qual se pode fazer um elogio sem tê-lo lido.

(decidir antecipar o momento da morte de um de seus pais é a maior das escolhas, amigo. Depois dela, o que pode te afligir nesta vida?)

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho