Roda de mil dentes

Para Hunter S. Thompson, ficção se baseava em realidade; caso contrário, era conto de fadas
Hunter S. Thompson
01/09/2005

Acendo o cigarro e tiro da bolsa a garrafa de uísque. Encho a boca e gargarejo e cuspo. Olho o guia da literatura americana e memorizo dois nomes. Estou na metade do caminho. Dá tempo de ter um bom arsenal de informações, além de outros sinais clássicos de uma vida outsider. Não podia ter esquecido o vidro fechado de comprimidos, se bem que, pela experiência de duas noites passadas, melhor não exagerar. Comprimidos me deixam violento.

— Dois amigos meus já ouviram os tiros passando perto dos carros deles. Se você viu o filme que fizeram da vida dele, com o Bill Murray, sabe que é um idiota. Não entendo porque tanta gente se interessa. Gente como você. Drogados.

Com exceção das teclas. Eu tenho algumas péssimas tecladas em meu trabalho. Em meus termos… eu posso eventualmente não estar correto com algumas datas. Eu tento ser mais acurado do que outros jornalistas, o que não é difícil. Você precisa distinguir entre o que aconteceu e o que era a situação.

“Nós temos a confirmação de que Hunter S. Thompson foi encontrado morto esta noite, aparentemente vítima de um tiro auto-infligido.”  Tricia Louthis,  porta-voz do escritório do delegado de Pitkin Country.

Ficção é baseada na realidade, a menos que você seja um escritor de contos de fadas.

(Durante muitos anos imaginou que, após formado na faculdade, com bom emprego e dinheiro para uma produção decente — roupas de grife, revistas e jornais da moda, um cigarro entre os dedos e muito uísque para justificar a falta de músculos — uma bela o confundiria com um Kafka em frangalhos, e o acolheria em seu colo gasto de tantas línguas ágeis e esportistas. Essa prima-dona aposentada, fatigada de tantas maratonas orgiásticas e filas de mil mãos calejadas de barras de musculação, todas prontas a apertar sua bunda de Helena, subitamente descobre-se necessitada do verdadeiro sexo oral. E assim, após uma longa madrugada de mentiras e desculpas deslavadas, aquele com aparência de Tarzan de INSS jura ser Peter Parker antes da aranha — a dela —, David Banner sem os raios gama, que, em breve, no quarto de portas e janelas trancadas, fará saltar músculos verdes e prontos para destroçar a vagina incauta da virginal balzaquiana, amor de seus sonhos. Se agora ela se mostra relutante em ceder o precioso líquido de sua boca, a saliva ácida de doze cervejas, o perfume cálido de vômitos acumulados sobre carnes-de-onça bem temperadas, não tarda, se revelará a mais perfeita das meretrizes e, amanhecendo, entre uma calça amassada e botões perdidos, dirá que sim, podem se ver em breve, que irá ligar pois precisam repetir a dose)

Você precisa apanhar seu conhecimento sobre a vida de algum lugar. Você tem que conhecer o material sobre o qual você está escrevendo antes de alterá-lo.

(Para os que não sabem, nerds são os maiores amantes, os perfeitos, pois jamais realizados, podem tudo, se dispõem a tudo, desde que a mulherzinha tenha a paciência de limpar-se da primeira ejaculação precoce, a segunda que nem sabe onde espirrou, e a terceira perdida entre uma fronha e o tampão da privada. Superados esses dez minutos de puro idílio farsesco, tem a mulherzinha, à sua disposição, o pujante produtor de cola tenaz. Eis o homem. Só não façam a besteira de reclamar de seus chamados, desligar o fone, reclamar que nunca viram ninguém mais pegajoso, que não se importa se irá morrer ou não pois, se tiverem azar, e os comprimidos não o fizerem adormecer de vez, pode ser que algo muito ruim aconteça. Ainda mais se estiver o estúpido em pleno ataque psicótico, crente que vive a vida de outro.)

— Só vou até aqui.

Respondo que está tudo bem. Foi o combinado.

— Ao anoitecer, eu volto e te apanho.

Desço na beira da auto-estrada e o motorista me aponta a casa. Uma daquelas belas residências rurais que vemos na TV, em seriados e filmes americanos. Digna do jornalista Hunter Stockton Thompson, nascido em Louisville, Kentucky, em 18 de julho de 1937. Filho de Jack Robert Thompson — engenheiro de segurança — e Virginia Davidson Ray — dona de casa. Papa do jornalismo gonzo.

Enquanto o taxista limpa o banco traseiro do carro, encaixo a alça da bolsa no ombro e, ao caminhar, chuto um pedregulho uma, duas, três vezes.

Você não pode ser objetivo quando está negociando com situações passionais, políticas e assim por diante. Talvez você possa, eu não… Em algum momento, se você foi objetivo sobre Richard Nixon, você nunca o captou ou realmente o entendeu. Você tinha que ser subjetivo para entender os Hells Angels.

Enfio a mão na bolsa e tiro a cópia do e-mail. Um bom dinheiro por uma boa matéria. Respondi que tudo bem, estava ótimo. Tinha marcado uma conversa com Hunter S. Thompson e, caso interessasse, podia ser ele. Responderam que tudo bem. Sempre como o combinado. Educados, perguntam se continuo bem. Se o hotel é bacana, se as mulheres são interessantes. Respondo que sim. A vida é uma aventura, uma roda de mil dentes, e ainda estou na metade. No final, enviam o número da passagem de volta ao Brasil, meu pagamento extra.

(se vai parar de ler, faz isso agora. Há momentos em que é preciso desopilar o fígado enchendo o rabo de terceiros)

Hunter me espera na varanda. Óculos escuros, de patrulheiro, e totalmente careca. Educado, pede que eu entre para poder liberar os dobermans. A pistola em sua mão continua armada.

A primeira impressão é sempre a correta. Eu raramente mudo minha opinião sobre pessoas. Às vezes você é enganado muito depressa. Você quer ser enganado. Se você não pode acreditar em sua primeira impressão, você vai ter uma passagem mais difícil do que gostaria.

Tiro a bolsa do ombro e a acomodo na cadeira ao lado do sofá. Sento e estico as pernas. A biqueira do sapato está com um belo furo. A meia azul também. Acendo um cigarro, olhando o cigarro de Hunter.

Isto não é uma piteira. Isto é um filtro. Uma grande diferença. Um filtro segura uma boa dose de sujeira e alcatrão por dia, mantendo isso longe de arruinar meus pulmões. A primeira vez que usei, eu vi o que aparece no filtro e nunca mais parei.

Viadagem, penso, enquanto negocio com minha decepção inicial. A primeira impressão seria essa ou a tida com a leitura de seus livros? Fúria pela vida tola e a opção pela outra, a que vem com as drogas e a farra desenfreada. O universo beatnik levado com estilo para revistas e jornais. Para que arte se a vida já é a celebração da morte vindoura? Uma boa biografia já eterniza.

Eu encontrei Allen Ginsburg em NY, durante sua leitura de poemas e coisas. Era um dos poucos que realmente liam escritores desconhecidos. Pode ser que estivesse apenas mexendo comigo. Ele gostava de flertar. Eles o chamaram de monstro mas ele estava apenas apaixonado.

Viadagem, penso, quando aceito mais uma dose de tequila na temperatura ambiente e sinto os lábios dormentes. Deveria ter continuado com o uísque, mas a garrafa que escorregou de meus dedos era a última. Deveria ter aberto o portão e fechado, e só então tê-la tirado da bolsa. Mas tudo desculpa, viagem total. Para que fumar se vai usar filtro? Por que pílulas se tudo é passado? Já provou a macheza. Mostrou que nunca mentiu sobre seus atos. Por que ela tinha que chamá-lo de fracassado? Puta! Ainda bem que Thompson não estranha as roupas, o cheiro, meus olhos.

Foi em San Francisco que viemos a ter o mesmo traficante de erva. Era a época em que você comprava erva enrolada, tipo cigarros normais. Dez dólares, quinze. Eu vivia em um apartamento próximo do cara de quem ele estava comprando. Eu estava trabalhando no livro dos Hells Angels. Eu falei com ele a respeito disso, e ele foi de grande ajuda. Allen era um grande cara.

Aceito mais uma dose e levanto e vou até a janela. Os cachorros estão deitados na varanda, de olhos fechados. Ao me perceberem, levantam e me encaram desconfiados. Os dentes brancos e pontudos me assustam. Volto para o sofá. Hunter puxa o chapéu de vaqueiro para o colo e dobra as bordas. A espingarda AK-47 ocupa lugar de destaque na terceira estante do armário. O gatilho da pistola parece frágil para resistir ao menor aperto.

O cheiro do cigarro sendo apagado no cinzeiro irrita minhas narinas. Espirro e peço um copo de água para tomar um comprimido.

(Vida real, a merda flutuante na corrente sanguínea de sua excelentíssima vovó apodrecendo na sarjeta da bem-aventurada família. Vida real, o universo de Eros e Thanatos, migrando peça a peça para sabe-se lá onde e, ainda assim, cremos que comandado pelo grande deus Baal, por Jeová da sarça ardente, por Alah de um profeta, Buda deitado entre feras. Vida real narrada feito romance é a ficção da imaginação bundalelê, do pesquisador furibundo capaz de muita pesquisa e de grande memória.)

Hunter volta com outro cigarro na boca.

Ecstasy não é como ser elevado… A qualidade das drogas caiu com a qualidade de vida. Você espera que as drogas deixem você melhor? Não… há algumas novas drogas por aí que são extremamente depressivas. Pesados danos neurais, ataques psicóticos… você precisa estar preparado para ficar fora do seu corpo, fora de sua mente. É um fato — eu experimentei essas drogas por um longo tempo. Drogas ferram com seu cérebro.

Bela conclusão. De repente me sinto o paspalho de plantão. Aquele que aceitou a pregação do lorde Gonzo e mudou a vida estúpida e calma que levava pela tal da aventura do investigador ferrado, pela imersão no fato. Afinal, o que resta para o escritor sedento de sucesso senão camuflar seu escrito de vida real?

Você se masturba a vida inteira e morre.

Terceira pessoa? Jamais. Escolha daqueles que desejam manter o tal distanciamento, a possibilidade da suprema ciência, o controle divino. Tão dentro, tão fora. Opção que revela a tal fraqueza megalomaníaca de um ególatra dos teclados, incapaz de viver o que diz ser a vida.

 

Preciso ir embora. Faço a pergunta final.

Minhas pendências legais com a polícia de Aspen estão quase resolvidas. Nada está totalmente resolvido. Me parece que eu posso ser preso para o resto de minha vida por uma ou outra coisa.

Aceito mais uma dose enquanto o sol se põe. Dentro em pouco o táxi estará na beira da auto-estrada, me esperando. A pistola parece sentir-se solitária, largada na mesa de canto. Peço para usar o banheiro antes que termine sua fala.

Bem, eu não sei. Eu posso ser executado amanhã.

Primeira pessoa? Esta sim. O meio mais fácil de garantir a ansiedade imediata do leitor. Se eu realmente estou te contando, usando a credibilidade do “eu”, então devo estar prestes a revelar algo verdadeiramente interessante. Quem sabe o assassino do proxeneta fantasiado de executivo obeso e gago; ou o nome da mãe verdadeira do governador calvo, que gasta todos seus jetons em implantes capilares; poderia ser a extensão peniana do febril amante da neta daquele reitor de olhos oblíquos, aparentada de um hospital de fama relativa. Por que não digo o nome verdadeiro e uso o subterfúgio da metáfora, não interessa, realmente. A primeira pessoa revela meu desprendimento e a confiança em tua amizade, caro leitor.

Volto sorrindo. A pistola continua armada.

Seu mórbido pequeno bastardo… Éeeee, muitos figurões da década de 1960 se foram — Ginsberg, Leary, Kesey — , como será que eu me sinto sendo o último búfalo? Eu não sei. Acho que ninguém sabe. Quando você fala sobre os anos de 1960, você está falando sobre pessoas que foram assustadas até perderem o senso, tentando descobrir afinal que merda estava acontecendo.

Tantas armas só podem significar fraqueza. Nada mais que fraqueza.

— Me fala de seu pai.

— …

— Você nunca falou sobre ele.

— Bem, leia o que eu escrevi!

— Eu li tudo e você nunca o mencionou.

— …

— Me fale a respeito dele.

— Ele tinha uma grande visão da vida.

Termino minha bebida.

“Nós temos a confirmação de que Hunter S. Thompson foi encontrado morto esta noite, aparentemente vítima de um tiro auto-infligido.”  Tricia Louthis,  porta-voz do escritório do delegado de Pitkin Country.

O filho de Thompson, Juan, encontrou seu corpo. Disse que aos 67 anos, atirou em si mesmo: “Em 20 de fevereiro de 2005, Dr. Hunter S. Thompson tirou sua vida com um tiro na cabeça em sua casa, em Woody Creek, Colorado”.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho