Pedro Juan Gutierrez

A conversa com o escritor que se formou na união da leitura, poesia e jornalismo
Pedro Juan Gutierrez
01/12/2004

A cibalena vem sobre um pires de louça branca. A água, em um copo de cristal. A bandeja na mão do garçom é de prata de lei, enfeitada nas bordas com rococós intrincados em formas que confundem marolas e tubarões e sereias e monstros marinhos imemoriais de um caribe antediluviano.

Todo me ha dado siempre mucho trabajo en la vida.

Levantam das largas poltronas de couro engraxado e deixam as dependências do hotel Nacional pela porta frontal. Um adolescente trajando um cuidado uniforme azul celeste os acompanha até a rua, onde abre a porta do Sinca e deseja bom passeio, com a mão esquerda às costas e a direita estendida frente a um sorriso branco e incompleto.

Yo nunca he tenido nada fácil. Quizás porque me planteo metas fuertes. Pero al mismo tiempo yo escribía mucho.

Encaixa a chave na ignição e a gira devagar, demorando para conseguir o primeiro sinal de que o motor de arranque está em bom estado. Pedro não se incomoda com a demora e

(nasceu em 1950, em Cuba)

enquanto o motor engasga três vezes, mantém o braço apoiado na porta do passageiro,

(cresceu em Matanzas, lendo livros da biblioteca de um patriota da revolução de 1930 e gibis importados pela empresa de uma tia, que vivia em San Luis)

mordendo a ponta apagada de um charuto Monte Cristo. Seus olhos seguem os passos de um casal de negros, dançarinos de uma das várias boates que podem ser visitadas depois do entardecer.

Junto con toda esta historia que te estoy contando, resulta que yo escribo poesía desde que tengo 13 ó 14 años. Y cuando empiezo a hacer periodismo, empiezo a escribir de otra manera.

A negra cruza os pés um adiante do outro, quase no limite de tropeçar nos altos saltos agulha que sustentam seus calcanhares e a obrigam a um rebolar impossível, que joga no espaço ancas e o farfalhante tecido translúcido que se sustenta na delicada curva de sua cintura.

Y eso va avanzando y progresando y cuando yo tengo 18 años, tomo una decisión muy tajante y muy radical y digo: “Bueno, a mí lo único que a me gusta en la vida definitivamente es escribir, es ser escritor. Es lo único que realmente me interesa: ser un escritor muy fuerte”.

A fumaça do Monte Cristo forma um tracejado irregular por onde passa o Sinca, feito um caminho de anjos caídos, ofegantes e sem uma clara idéia de onde poderiam descansar pela eternidade em exílio.

Para mi formación ha sido decisivo no sólo esto de leer tanto desde tan niño y tantos comics, sino también esa combinación de poesía y periodismo. Porque la poesía te enseña a trabajar palabra por palabra, con mucho cuidado.

Pedro acaricia o topo calvo de sua cabeça e aponta para irem adiante, avenida Antonio Maceo adiante, Malecon adiante, seguindo a beira mar que flanqueia o bairro do Vedado e o centro até Havana velha pelos cinco quilômetros que vão de Castilho de la Punta a la Chorrera.

Tú puedes estar haciendo un epigrama de cuatro líneas y te pasas días, lo vuelves a mirar y tachas, y vas adquiriendo una disciplina, yo diría un amor por la palabra.

Homens e mulheres de várias idades

(porque aqui todos são homens e mulheres e crianças e velhos ao mesmo tempo)

gastam distintos modos de observar os carros que passam lentos na longa avenida e se deixam ficar sentados na mureta, separados pelo asfalto de casas centenárias, levados pelo pesar de dias corroídos pelo tédio e insatisfação.

Incluso yo escribo a mano. No importa si tuviera computadora. Yo escribo a mano, voy escribiendo con tinta negra, es casi como un ritual, ¿no? Yo voy casi dibujando las palabras, palabra por palabra.

Ultrapassa o Sinca um Chevrolet Special DeLuxe, de 1941, com pintura em dois tons — saia-e-blusa —, motor de seis cilindros e 3,55 litros, 90 cv de potência, um dos poucos que parece ter sido corretamente reformado. Diferente do Sinca, ou do pobre Packard Clipper cupê, de 1947, refeitos à custa de muitas gambiarras, o Chevrolet segue roncando o motor e acelera marcha sobre marcha, dando-se ao luxo de desviar no último instante de um Soto Suburban, 1951, que deixava o estacionamento e mal sustentava com arames o pára-choque enferrujado.

Y el periodismo te da un sentido muy pragmático del trabajo. Tú sabes que tienes que hacer una investigación, y lo tienes que tener todo resuelto, y cuando tienes que escribir, es lo último que tú haces, porque lo tienes todo diseñado.

Estacionam na vaga deixada pelo Soto Suburban e Pedro põe-se a conversar com um grupo de jovens que o tratam como um professor muito admirado. São quatro rapazes, de calças jeans gastas de tão usadas, sapatos reformados, camisas de algodão, tingidas para parecerem feitas de brim índigo blue. Falam gesticulando muito, dando tapas nos ombros uns dos outros, acenando diversas vezes para pessoas que passam distantes demais para um aperto de mão ou próximas demais para um abraço. Comentam sobre a vida alheia e confessam um tom mais baixo que resgataram diversas histórias de Cuba do tempo de Batista e que talvez pudessem interessar a um escritor famoso e que esse escritor famoso bem poderia pagar alguns dólares pela informação.

Y así yo diseño los cuentos. Y cuando yo tengo un cuento todo resuelto digo: “Esto funciona y así va a ser el cuento”.

Pedro tira o charuto da boca e tosse e devolve o tabaco para entre os lábios e bate palmas e cruza as pernas e enfia as mãos nos bolsos e baixa o olhar e depois de um instante, o tempo de uma gaivota perseguir um grupo de maçaricos e lhes tomar os restos de uma sardinha meio digerida, bate novas palmas e muda de assunto e

Después empiezo a corregir porque empieza la artesanía entonces, después de una primera escritura con un ángel, si tú quieres. Porque a veces diseñas y después a veces cambia todo cuando tú escribes, y ése es el ángel que te lo cambia todo.

Um dos rapazes olha o relógio e

(chamam-se com nomes de autores beats e da contra-cultura americana: Charles Bukowski, Willian Burroghs, Jack Kerouac, Allen Guinsberg e agem feito machos de estirpe e)

pergunta as horas e conta sem economia de palavras e gestos como a marca tem um alto valor de revenda, mas que isso realmente não deve interessar porque o alto valor de revenda entre a população cubana não passa de dinheiro de mesquinharias gasto por turista e outros covardes que exploram as mulheres e crianças miseráveis de Cuba.

Tengo asumido muy claro que la literatura no debe ser ni política, ni antropología, ni sociología, ni religión. Puede ser todo esto de un modo oblicuo, es decir de un modo inconsciente. Es decir el narrador no se debe plantear, hacer un estudio explícito en su novela. No. Tú estás contando una historia y dentro de esta historia entra la religión, la literatura se contamina con todo, de modo oblicuo.

Charles pede desculpas e permanece calado depois que larga os amigos e vai no banco traseiro do Sinca e almoça em um pequeno restaurante de uma parenta de Pedro.

(El Picadillo/Ingredientes: carne picada, ajo, cebolla, pimiento verde, jugo de tomate, zumo de lima (limon para los cubanos) y aceite. Picar bien la carne y dejarla en adobo, durante 1h, en sal y lima. Freir a continuación la cebolla y el ajo, añadir la carne y seguir friendo a fuego lento. Añadir, mas tarde, el jugo de tomate)

De volta ao banco traseiro do Sinca, com sua bunda seca espalhada sobre o couro puído, retoma a conversa com Pedro, que o chama de Henry Chinaski, e ri de seu meio discurso, meio elegia, cantiga do herói, homem comum,

(conversa que me confunde sem me permitir saber se é algo de bela ingenuidade ou apenas um desvio da retórica socialista e)

cortador de cana, médico sem recursos, prostitutas e michês com títulos de PHD.

Bueno, después de contarte todo esto ahora te voy a hablar un poco más de las influencias. Para mí fue muy importante el descubrir, precisamente en Mexicali, estando allí en el año 90, esto del nuevo periodismo.

Deixam o Malecon e Pedro desce do carro e caminha com as mãos nos bolsos da calça até sumir no interior da fábrica. No alto do prédio uma placa: Partagas. Retorna trazendo uma mulher morena, de idade indefinida. Ela

(respira como uma senhora de cinqüenta e poucos anos)

entra no carro e vai de mãos dadas com Pedro, passando Charles (ou Henry) para o banco da frente. Dada a partida e uma quadra adiante, tira de sob a saia, antes presos na cinta-liga, cinco charutos Churchill. Charles agradece e comenta que o gosto das coxas da mulher cubana é o verdadeiro diferencial de sabor de seus charutos. O fumo? O fumo verdadeiro é o carajo de seus homens.

(penso que do modo como as coisas vão, logo a qualidade dos puros irá se perder, tantos são os que invadem a ilha e outras concavidades tão úmidas e tão quentes quanto)

Descubro una antología de Tom Wolfe, que se llama así, El nuevo periodismo. Y yo caminando por la frontera entre Tijuana y Mexicali, que estuve 16 ó 17 días, iba leyendo aquello y estaba apasionado, porque es una mezcla de literatura, un poco de ficción y un poco de periodismo. Y tanto fue así que cuando yo regresé a Cuba escribí ocho crónicas sobre la frontera entre México y Estados Unidos. La frontera tú sabes que es muy fuerte, no es ni Estados Unidos ni es México, es otra cosa.

Cinco quadras mais, Clara pede com um tapa no ombro e o carro para duas rodas sobre a calçada, junto a um grupo de músicos que não para de tocar enquanto ela distribui os charutos que estavam ocultos presos em sua perna esquerda

— os melhores para o melhores

e se nos despede com beijos e tapas e risos e põe-se a caminhar de volta à fábrica.

Pero las crónicas eran tan fuertes que la directora de Bohemia se aterró y me publicó cuatro nada más. Me decía que la embajada de México se iba a quejar, que íbamos a traer problemas al gobierno. Escribí crónicas tan fuertes que gané el Premio Nacional de Periodismo del 91. Se llaman Crónicas de México, y fue por eso, por la influencia de esta antología de Tom Wolfe, y esos enfoques y la materia que traía que era muy fuerte, realmente fuerte — los niños de las calles de Tijuana y todo eso. Entonces en cuanto a influencias yo lo veo así.

Encostados no carro e fumando puros, gastam meia-hora ouvindo metais, violões e vozes arranhadas. Charles não ergue o olhar e segue contemplando seus sapatos gastos, usando a ponta do pé esquerdo para roçar uma pequena lingüeta de couro que escapa de um buraco do pé direito, como se assim fosse assustar a ferida e ela se fechasse espontaneamente.

Para mí la narrativa norteamericana del siglo 20 es decisiva, definitivamente. Hay dos escritores que me subyugan: uno es Cortázar y el otro es Kafka. Kafka y Cortázar me subyugan por otra razón.

Contornam o parque Central, o Centro Galego e o Capitólio. E numa rua lateral, Charles os deixa por um grupo de rapazes afeminados, bêbados de rum e muito alegres e saltitantes. Dois deles vestem camisas de algodão azuis e saias rodadas muito coloridas. Apoiados nas laterais dos automóveis que encontram pelo caminho, gritam falsetes e cantam com baixos profundos antigos boleros e sucessos de rádios de Miami e riem mais e mais.

A mi modo de ver, ellos entienden la literatura como un mundo encerrado sin salida.

O Sinca é posto de lado e

 Tanto Kafka como Cortázar hacen literatura por literatura por literatura por literatura. Son capaces de coger cualquier tema, ese vaso de agua, por ejemplo, y van creando como un mundo a partir de cualquier cosa, de ese reloj, de una escalera. ¿Te das cuenta?

mergulham nas ruas estreitas e vielas repletas de pessoas indo e vindo.

A mí me fascinan por eso, por esa facilidad tan maravillosa de jugar con el lector y de ir haciéndole trucos, haciéndole trampas, y enredándolo todo y complicándolo todo, y de algo aparentemente trivial ir formando un mundo. Eso lo hacen Kafka y Cortázar y para mí son fascinantes.

Pedro não interrompe sua fala ao cumprimentar muitos, aqui e ali, com apertos de mão e acenos que parecem soluços em meio ao seu relato verborrágico.

Otro es Hemingway; para mí hay cosas de Hemingway que son fascinantes. El cuento de Hemingway El viejo y el mar me parece que es lo más sincero que él escribió. Como técnica estos escritores norteamericanos son espléndidos, definitivamente.

No Passeio del Prado bebem margueritas em um bar de balcão branco e muitos cartazes pregados pelo teto, paredes e móveis. O velho que os serve perdeu um dos dedos na invasão da baía dos Porcos e mostra com orgulho a foto na parede. Che, Fidel e um grupo de soldados posando de guerreiros poderosos, não fosse a galinha que o ainda jovem velho segura entre as pernas. Pedro pede que conte a estranheza que é ter lutado supondo morrer e não morrer e assim perder a chance de ser eternizado. Mas o velho não conta, reclama apenas que Pedro já o fez e apenas acrescenta que a vida é assim mesmo, que alguns são feitos para a eternidade, outros apenas sobrevivem à batalha para morrerem esquecidos um dia qualquer.

Date cuenta que yo tengo la vocación del periodista. Yo no puedo resistir escribir algo y no publicarlo. Tener que escribir y luego decir: “Esto no sirve”, y echarlo a un lado, eso me molesta muchísimo. Yo pienso muy bien lo que voy a escribir para que quede lo mejor posible y se pueda publicar, por supuesto.

Mais duas margueritas e duas doses de rum e a conversa desvia para futebol e para a seleção brasileira e os belos gols de Pelé e lágrimas umedecem os olhos do velho Otacílio Francisco Jimenez. Ninguém pergunta o motivo, apenas ergue-se um brinde e todos ficam em silêncio

(até mesmo Pedro)

quando entram no bar Charles e seus amigos.

Y aquí hay un escritor que era gallego, Carlos Montenegro, que emigró aquí. Y escribió un libro muy fuerte sobre la homosexualidad en el Castillo del Príncipe, que es una cárcel. Su libro se llama Hombres sin mujer y se publicó primero en México.

Charles abraça e marca sua bochecha com seus lábios vermelhos. Laranjas estufam sua camisa e no lugar dos sapatos gastos uma sandália vermelha que um dia foi brilhante e refletia as luzes do sol e as cores da noite. Lembra pouco o rapaz sério de hora atrás.

Aquí hubo que esperar muchísimos anõs porque el libro caía tan mal a la burguesía y a los dueños de imprenta que ni siquiera quisieron imprimirla cuando sus amigos se ofrecían a pagar por la edición, hicieron una colecta para pagar la edición.

Seus companheiros, de mãos dadas, colocam-se contra a parede de fundos do bar e cantam em alta voz Murmullo. Charles tenta puxá-lo para dançar e acaba levando o velho, que salta feito um gato velho por sobre o balcão e o envolve em seus braços como se fosse a mais bela guajira.

Y ni así porque la consideraban muy incorrecta para la época, te estoy hablando de los años 30.

Não se interrompem quando entra no bar cinco instrumentistas guiados por Clara, que expulsa fregueses de suas cadeiras para que os cantores possam ter quem os acompanhe em La Punalada.

Entonces se editó en México, donde fue un éxito y muchos años después fue cuando se hizo una pequeñísima edición en Cuba. Yo conozco el libro porque se volvió a editar hace cuestión de cuatro o cinco años.

Pedro e Clara dançam e os vê, precisando apoiar no balcão pois as pernas amoleceram. Ninguém mais serve ninguém. São os fregueses que pegam as garrafas e tomam o quanto acham que é necessário e jogam moedas e notas dentro de uma caixa de madeira, ao lado de um antigo espelho bisotado e de prata gasta. Fidel os observa sem contrariar ou dar incentivos.

Eso sucede continuamente y a mí eso no me molesta. Es de esperar que cuando tú escribes de manera fuerte, suceda esto. Y no sólo hay cubanos molestos con mis libros. En Alemania cinco editoriales han rechazado la Trilogía porque tiene demasiado sexo y es muy dura. Pasó lo mismo con tres editoriales suecas de Estocolmo y una finlandesa. Y siempre por lo mismo: demasiado sexo y es muy dura, es muy fuerte esa literatura. Yo sé que yo escribo una literatura provocativa pero no lo hago por un esnobismo ni por molestar por molestar.

Anoitece.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho