Michael Crichton

A conversa com o escritor que não planeja os finais de suas histórias
Crichton: “Eu não tento escrever best sellers”
01/01/2004

Eu não sei porque eu faço o que eu faço. E eu tento não analisar isso demais. Geralmente, eu estou tentando fazer uma de duas coisas.

De volta a Paris, Samuel fez questão de tomar o metrô até a região sul da cidade para me contar como foi expulso da América.

— Parece que vivi um conto de Kafka. De repente

Ou eu estou tentando resolver um problema de narrativa (por exemplo, como você poderia fazer pessoas acreditarem em dinossauros, pelo menos por algumas poucas horas?)

os funcionários do aeroporto me tiram da fila dos vistos e me levam para uma sala fechada e começam a me interrogar. Sem explicação alguma me mandam ficar pelado

ou estou tentando entender um problema do mundo real (o que é a relação entre agressor e vítima em um caso de ataque sexual?)

e reviram todas as minhas dobras

e como posso tirar disso um livro, ou um roteiro

e todos os meus buracos.

sinto que eu sempre escrevo para mim mesmo, no sentindo que eu sou o primeiro leitor. Mas isso também é uma estratégia. Eu quero dizer, como eu poderia decidir se um livro está indo bem ou não, exceto pelo modo como eu me sinto a respeito?

Perguntado se não reagiu

— Dei um peido na hora que o policial abriu minha bunda. Eu posso ser um cuzão, mas meu cu é muito macho!

Curvando o tronco para a frente,

Eu gosto de caminhar, gosto de passar o tempo com minha família,

Samuel pega o copo sobre a mesa de centro

eu gosto de cozinhar,

e enfia o dedo indicador direito

eu gosto de jogar tênis, mas eu não sou muito bom. Eu leio muito.

e o lambe.

Eu não tenho nenhum interesse especial, exceto que eu coleciono velhos relógios. Oh, e arte

— Sou muito macho…

eu não tento escrever best sellers, e eu não acho que alguém possa fazê-lo. Se você tentar, você acabará escrevendo um livro ruim e ele acabará falhando. Eu não aprecio de modo especial escrever. Eu quero dizer, eu gosto, mas é trabalho duro. Então, é mais ou menos como correr uma maratona. Corredores apreciam o que fazem, mas eles são ambivalentes sobre isso, também. Então, eu escrevo porque de algum modo eu sou compelido a fazê-lo. Freqüentemente eu me sinto agarrado por uma história e empurrado ao escritório para começar a escrever

Samuel deveria ter feito uma matéria sobre a crise da vaca louca que assola os EUA. Apesar de sua total ignorância sobre assuntos agropecuários, seu editor fez a solicitação e Samuel não tentou escapar da tarefa, pois, de todo modo, seria uma bela oportunidade para passear por Nova Iorque e fazer algumas compras. Faz tempo que ele junta dinheiro para reformar o guarda-roupa com modelos mais descolados. Donna Karan e Miu-Miu em vez dos Valentinos e Prada.

— No final das contas a vaca louca fui eu! — Samuel cai na gargalhada enquanto descemos de elevador até o saguão de meu prédio. — Pena que tudo eu que eu tinha era um punzinho fedido. Imagine se eu tivesse comido a maionese do François.

(uma pequena pausa. Samuel me olha nos olhos enquanto os números se sucedem acendendo e apagando na ordem inversa e aquela irritante campainha se repete como se fosse campainhas de patchinko e Samuel respira fundo e mostra as palmas de suas mãos me conclama a acompanhá-lo em um ritual primevo)

— Por favor…. — Samuel suplica e suplica até que me dou por vencido. — Vai. Um, dois e

“Helmanns, a verdadeira maionese!”

que gosto mais do “Varig, Varig, Varig!”

— Tostines é mais fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é mais fresquinho?

Pergunto se não é crocante?

— Isso, crocante. Eu sou fresquinho.

o personagem de cinema que mais lembra meu modo de ser é Ian Malcon, do Parque dos Dinossauros, e na televisão os personagens vividos por Noah Wyle e Anthony Edwards, em ER

Na patisserie da esquina comemos sanduíches de presunto e tomamos refrigerantes.

— Você precisa ir comigo falar com esse cara. É questão de vida ou morte. Se eu não der uma bola dentro posso perder o emprego.

Pergunto se o editor não é seu namorado?

— Foi. Todos na redação foram. E na embaixada também. E todos sabem disso e todos sentem ciúmes. Você sabe como esses tipos são. Quando perdem a exclusividade acabam com nossas vantagens. Qualquer dia, perco meu cartão de crédito e minhas milhagens. Imagine se milhagens na cama fossem reembolsadas? Eu estava rico!

que conheço quase nada de Michael Crichton. Nunca li nenhum de seus romances e a informação mais aprofundada que tenho é que é o criador da série ER, que no Brasil virou Plantão médico.

eu trabalho duro para ignorar a possibilidade de meu livro virar filme porque a) isso pode nunca acontecer; e b) eu não quero me autocensurar, decidindo antecipadamente o que pode ou não pode ser feito

— Bom, ele que escreveu Parque dos dinossauros e desencadeou essa febre pelos bichinhos. — Samuel pede ao atendente um croissant e uma Coca.

Para não entrar em mais uma controvérsia, também peço um croissant. Mas para não parecer um imitador barato, em vez de Coca bebo Pepsi.

No trem

às vezes eu tenho interesse em determinada área, então eu já sei muito do assunto quando começo a escrever. Outras vezes, como em Timeline, eu não tenho nenhum conhecimento anterior, então meu primeiro trabalho é me informar rapidamente sobre a Guerra dos Cem Anos na França, por exemplo. Mas eu acho a pesquisa divertida. Eu aprecio isso.

Rindo nervoso, Samuel me explica que não teve como recusar a matéria.

— Com minha deportação da América fiquei numa saia justa com meu editor. Eu até sugeri inventar alguma coisa. O problema é que depois daquele escândalo no New York Times, o mcarthismo voltou a imperar entre os correspondentes internacionais. Essa história de avalizar contos da carochinha com falsos informantes acabou. Pelo menos por um tempo, eu e meio milhão de enviados especiais na Europa vamos abandonar a ficção.

(toca-se o clarin!)

que eu nunca faria isso e que a vida pode ser injusta e que disso pode resultar algo bom, como algum deles tornar-se romancista.

— Quem me dera. Crichton é multimilionário.

Descendo na estação Bel-Air e cuidando para não trombar em ninguém que não fosse loiro e com mais de um metro e oitenta, Samuel passa a me dar ordens.

— Você fica com a máquina fotográfica digital. E nem vem reclamar que não sabe tirar fotos. O diretor de produção escolheu para a sessão de entrevistas esse hotel projetado por Phillip Starck. Com aquelas paredes monocromáaticas e móveis intercalados com objetos esquisitos já estão garantidos bons enquadramentos, por pior que seja o fotógrafo. Deixa fluir.

deixar fluir? Quem me dera! Não, há uma estrutura, e ela precisa existir antes, ou isso será dolorosamente construída durante o trabalho. Estrutura é extremamente importante e livros não se organizam sozinhos. Isso é trabalho duro (e algumas vezes sorte)

Enquanto esperamos nossa vez de fazer o circuito de entrevistas com os atores, diretor, e finalmente o produtor, bebemos algumas garrafas de água mineral e comemos sequilhos variados, enquanto o som ambiente varia de Smash Mouth a Dixie Chicks.

Samuel acende um cigarro.

No release entregue pela assistente de produção, leio algumas informações sobre Crichton.

Eu sinto que é um privilégio estar apto a fazer o que eu faço à minha maneira. Se bem que atualmente, eu tento manter o que vem de fora de minha cabeça ao mínimo. Eu gostaria de poder escrever não-ficção no lugar de ficção… então, eu tento maquiar o mínimo que for possível

— Que desperdício. — Samuel sopra a fumaça e aponta um dos atores coadjuvantes. — Quanta coisa eu não poderia estar fazendo?

Leio que Crichton, em 1992, foi eleito uma das cem pessoas mais bonitas do show business.

— Se soubesse disso, teria tomado banho antes de vir. Meu deus! — Samuel diz gargalhando e chamando a atenção de todos no corredor, até do ator coadjuvante. — Estou virando francês. Não é chiquérrimo?

Somos chamados. Por uma questão de comodidade, já que todos os demais participantes do filme estão ocupados com outros jornalistas, somos levados direto à sala na qual está Michael Crichton.

— É agora!

Freud foi o maior romancista.

— Vai você na frente e deixa eu fazer uma entrada triunfal.

A razão disso é esta: se o poder de um romancista é demonstrado pela habilidade de impor uma visão ficcional sobre o mundo e fazer os leitores acreditarem nesse mundo ficcional, então Freud é de longe o mais influente e poderoso romancista

— Quem sabe ele não me chama para um papel em seu próximo filme?

porque suas idéias são ficção: fantasias, especulações não provadas. Por meio do poder de sua escrita, muito do mundo ocidental acreditou nessas idéias, e pensam que elas descrevem algum aspecto genuíno do mundo.

Abro a porta e paro na entrada.

Normalmente eu tenho a história primeiro,

— O que foi?

e faço os personagens seguirem a história que preparei para eles. Algumas vezes os personagens recusam.

que não tem ninguém.

Eles podem causar problemas.

— Como assim?

Por exemplo, no Parque dos Dinossauros Ian Malcon não calava a boca. Eu queria que ele falasse um parágrafo ou dois, mas apesar disso ele papagaiava por quatro ou cinco páginas! E eu olhava esse material e pensava, isso é muito bom, mas eu não preciso de tudo isso. De qualquer modo, é sempre interessante estar escrevendo.

que não tem ninguém e peço que dê uma olhada.

Samuel me tira da sua frente e dá de cara com a poltrona vazia.

— Mas é muita desfaçatez! Só me tratam assim porque sou brasileiro. Esses babacas que acham que a capital do Brasil é Buenos Aires não têm direito de

A porta lateral abre e Crichton entra trazendo na mão direita um copo de café.

— Que sala linda, você não acha?

Concordo e vou sentando e colocando a máquina fotográfica aos pés da poltrona acedendo ao convite de nosso entrevistado que já se postou em seu lugar, estrategicamente encaixado entre a janela e uma luminária acesa que, juntando os dois focos de luz, eliminam qualquer rugosidade de pele.

— Há certos truques que se repetem — Samuel sussurra.

Para escrever um livro você precisa ter as coisas exatamente como você quer tê-las, mas freqüentemente você está discutindo consigo mesmo, o que é uma coisa muito dura de se fazer. E você fica sozinho um bom tempo, o que está bem para mim, exceto que eventualmente eu começo a ser muito silencioso em reuniões públicas, e eu acabo percebendo que perdi minha habilidade de dialogar. Se bem que eu nunca tive muita habilidade mesmo.

Devíamos ter quinze minutos, no entanto, sorte ou azar, uma assistente de produção interrompe Samuel no momento em que pergunta:

— Você foi mesmo eleito uma das cem pessoas mais lindas do mundo?

E diz que, se quisermos, na sala ao lado um dos atores coadjuvantes está disponível. Imediatamente Samuel levanta e me chama de lado e coloca a mão em meu peito e me pede que continue a entrevista.

— Se não for aquele gato que eu estou de olho, pelo menos meu emprego está garantido.

De algum modo, escrever é uma atividade anti-social. Mas quando o livro está pronto, ele é seu livro bem ou mal, certo ou errado, ele é seu trabalho. E isso pode produzir um sentimento de satisfação.

Enquanto conversava com Crichton, não consegui tirar os olhos da janela, esperando que a qualquer momento um tiranossauro rex aparecesse ou uma nave espacial ou um robô assassino ou que um trapezista mergulhasse no vazio. Enquanto eu o ouvia falar,

Certamente acho que a intuição é importante para o escritor. Mas a coisa é, quando você está “fazendo a coisa acontecer”, você nunca está seguro que você está apenas inventando, ou que está tirando de alguma outra fonte, que é um conhecimento que você tinha, mas esqueceu, e por aí vai.

não posso dizer que fiquei surpreso, e se fiquei, esse espanto durou apenas um segundo, o tempo de me dar conta que nada realmente seria capaz de me surpreender verdadeiramente.

Normalmente eu preciso escrever quando está quieto, então eu acabo escrevendo muito cedo (5/10 da manhã) ou tarde (6/11 da noite).

Vacinado por milhares de visões de efeitos especiais me descobri imune ao delírio, assim como me acho imune ao deslumbre intelectual. E deve ter sido por isso que me senti tão bem com as informações sobre a vida de Crichton (médico formado em Harvard, três ex-esposas, uma filha de doze anos, escritor, roteirista, diretor de cinema, produtor de cinema e televisão, dono de empresa de softwares), confirmando o que eu já suspeitava.

Então… eu não sei o que acontece quando eu escrevo.

Na hora de nos despedirmos, minha mão é esmagada pelo aperto de mão efusivo.

O dinheiro me trouxe montes de amigos.

Mal saio, entra uma jornalista de minissaia e salto plataforma que abre o belo sorriso que nenhuma de minhas perguntas inteligentes conseguiram extrair de Crichton.

Meu livro favorito é Vida no Mississipi, de Mark Twain

Quando conto o fato para Samuel

— É isso! Da próxima vez a gente vem de saia. E não vale usar kilt!

Rio bastante, ainda mais ao saber que o tal ator coadjuvante era um wasp idiota que, sem se dar conta das preferências de Samuel, falou em off que o que mais odiava em ser ator era conviver com tantos gays.

— Dá para acreditar nisso? Bonito, mas idiota. E olha que para eu achar alguém idiota é preciso que seja especial.

Admito que sim.

— Bom, pelo menos você fez a entrevista para mim. Quando você me entrega o texto?

Lembro que não fiz anotações.

— Putz. Tudo bem, eu invento alguma coisa. O importante são as fotos. Cadê a máquina?

Geralmente eu não sei exatamente o fim. Isso significa, especialmente nas histórias de suspense que é desse modo que eu chego ao final. Eu estou arrancando meus cabelos, dizendo: como eu termino esta coisa? Então, eu acho que em certo sentido eu estou recriando a experiência dos personagens, que também não sabem como será o fim.

No Brasil, os livros de Michael Crichton são editados pela Rocco.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho