Mia Couto

A conversa com um dos principais escritores em língua portuguesa
Mia Couto: encantadora prosa poética
01/07/2003

Sim, vinte e oito anos atrás, em 1975, acabava a guerra da independência. Adeus, Portugal. Se de um lado partia António Lobo Antunes, de outro ficava a glória de um mercado editorial que produz quinze livros ao ano e, nossa!, cá estou eu lamentando ironia. Mas é verdade, Lobo Antunes esteve aqui, talvez tenha dormido nesta mesma cama, ou caminhado por estas ruas, já pensou? É um mundo pequeno — de muitos hotéis, mas poucos autores — menor ainda, se você fala português.

— É a situação em que nós estamos: na margem de uma estrada que não há, nós é que pensamos que ela está lá. Há toda uma reconfirmação construída para criar segurança e certeza, mas a estrada não está lá. Às vezes não haver estrada é melhor. Avistam-se as coisas melhor, não há indicações de caminhos. Eu não tenho medo de não ter caminhos, porque há uma coisa que a África ensina: a atitude de não ter previsão, de não ter medo.

Foi, acredite, foi assim mesmo. De um lado a Revolução dos Cravos, que tornou Antunes um campeão de vendas — trezentas mil cópias de Memória de elefante, ou seja, mil por cento da população portuguesa leitora e mais alguns alemães e chineses foragidos —, de outro a guerra da independência de Moçambique e António Emílio Leite Couto, ou Mia Couto (1955)

— quando chegou o momento da pré-independência, 1974, um período de transição, a Frente de Libertação de Moçambique, a Frelimo, pediu-me para que eu, como se dizia na altura, me infiltrasse. Havia uma campanha de infiltração nos órgãos de informação, que estavam nas mãos dos portugueses. E eu fui destacado para essa tarefa. Pedi emprego para a direção de um jornal chamado A Tribuna. O termo “infiltrar” era usado naquela altura para significar algo como uma pequena formiga corroendo, subvertendo um edifício que estava completamente criado para fazer uma certa coisa. Então nós havíamos de contrariar esse domínio. Mas não foi uma coisa heróica porque a direção desse jornal era simpática à causa. Então, eu não corri grandes riscos com isso.

(não é, Marilena?)

Desci em Maputo, capital de Moçambique, já falei, não falei? (desprezo ao ver os prédios da cidade ao invés da selva idealizada) Havia nuvens, mas a época das chuvas já era partida. Costa oriental da África é assim, sofre com as monções e as enchentes, deslizamentos, dor, muitas feridas abertas na terra que escorre com as águas dos rios, sei que você sabe, eu sei, então você deve saber, desculpe. Em certos momentos, o cansaço é maior do que eu posso descrever e então eu me margeio de falsidade pura, bem intencionada, contaminada com os valores que tive um dia e a doença levou. Você sabe, eu sei, então você sabe que o achacadiço, dizem, teve origem na alma, já estava antes. É. Passa o lenço e seca meu rosto, por favor, eu agradeço antes porque assim é mais difícil negar.

Do aeroporto fui direto para o hotel, não sem antes me livrar de um enxame de guias turísticos reclamando delírios, gritos, prazeres, espasmos, odores, servidões que há muito… Claro que eu queria conhecer a tal África selvagem, ver leões, hienas, leopardos, elefantes, girafas. Já os vi em zoológicos e circos, mas na natureza é diferente, não é? Expostos em palcos giratórios, espelhos, marcas de sol e sombra, luzes artificiais, músicas e babas… Foi o que pensei. De coração eu não queria continuar atolado em preconceitos vindos de documentários da Discovery Channel. Quando deixei o mundo e vim para o esquecido eu pensei estar sendo esquecido junto e tudo o que fizesse seria nada e nada repercutiria no mundo. Está vendo como sou estúpido?

Amanhecido, cruzei dois asfaltos e fechei os olhos. Mil sons vindo de mil bocas, lábios carnudos, dentes brancos mais brancos ainda em contraste. Devia ir ao escritório, mas tive sorte de encontrar uma brecha em sua atribulada vida de biólogo.

— A tardinha viajo. Volto em três dias.

Um almoço em um restaurante transversal: beiju e tilápia frita, banana assada e feijão, pimenta e cerveja de caldo grosso.

Te ver foi ver poucas qualidades, imagem de professor universitário, gente que ensina e que sempre duvidei ter coragem de viver o desespero da carne — quem sabe o gozo de uma boa trepada seja a única expectativa, ou um assalto.

— Comecei relativamente cedo. Tenho três filhos: um com 24, outro com 12 e uma com 13.

Primeiro foram os óculos que me deram lembranças de débil frouxidão, refletindo o sol impossível de se fugir, depois foi a barba que tão bem ocultava o rosto branco escurecido pelos pêlos e novamente embranquecido pelo grisalho, memória do que se realmente é: filho de portugueses.

— Sou moçambicano de primeira geração. Nasci aqui, nunca saí daqui, mas não posso invocar raízes porque os meus pais eram europeus. Mas na infância percebi que havia uma sabedoria e que o lado menos visível do mundo me fascinava.

(mesmo que desapareça das dores, de todas as dores, cada metade de mim já sofreu mais que vida inteira, então, dá no mesmo. De manhã o sol, de noite a lua, se isso te serve de consolo, de manhã o sol, de noite a chuva) (desengano é todo o caminho ao redor do mundo. Não adianta insistir, cada vez mais o tempo engrola o que poderia ter sido na vazante do futuro adiado. No fim é isso, dormir, morrer)

— Por outro lado, aquela língua que eu falava não era bastante para trazer esse lado. Isso perseguiu-me de maneira silenciosa. Não o sentia como um drama mas, quando passei da poesia para a prosa, para contar estórias, tive de me recorrer dos cruzamentos e da mestiçagem de que a língua portuguesa está a ser alvo aqui em Moçambique.

Satisfeito, aceito o chá.

— Eu venho da poesia. O meu primeiro livro, Raiz de orvalho, era um conjunto de poemas. Comecei, portanto, por escrever poesia e depois penso que nunca deixei de ser poeta no sentido de traduzir o sentido mágico da palavra e, ainda hoje, considero que estou escrevendo histórias de forma poética. Também creio que a poesia pode ajudar no trabalho de transgressão que eu quero fazer. Porque a realidade que eu quero revelar é uma realidade que só pode ser contada através de certo sentido mágico e de certa transgressão de fronteiras, entre o verso e a prosa, a escrita e a oralidade. E a poesia ajuda a fazer essa desmontagem.

Além das vidraças misturam-se peles e peles, negras e leopardos, os animais que procurei e escondiam-se deveras. O casal de namorados observando a avenida ser reconstruída. Boulevards. Olhos de pobreza colados no vidro e tudo sendo gravado enquanto

— Acredito que não criei nada novo. O que eu aprendi foi por mim próprio a chegar lá, porque eu era um jornalista e os modelos de conceber e fazer comunicação me preocupavam. Acreditava que era preciso questionar aquilo tudo e verifiquei que em Moçambique muitas vezes se contam notícias contando histórias. Eu pensei que provavelmente isso me ajudaria no momento em que eu estava a deixar de ser jornalista. Ao abandonar a atividade jornalística, estava consciente de que queria manter um certo laço com a oralidade, eu queria encontrar outros caminhos para a transmissão de informação em Moçambique.

enquanto bebo me perco no sabor. Penso

na cidade de Beira ainda vivem chineses mulatos? Filhos de Hong Kong e Macao, intercambiados acidentalmente antes do sonho americano. Não eu, não meu passado.

É difícil acreditar que tudo aconteceu tão rápido. Uma semana atrás eu sorria para as negras encantadas com meus cabelos e pele e olhos, hoje estou aqui. Não sinto pena de mim, fere meu orgulho, mas para você posso dizer que essas beberagens amargas cansam. Todos dizem que me fará forte, capaz de partir no próximo vôo, se é que haverá um próximo vôo. Não precisa virar o rosto, eu conheço meu estado e não me lamento, fere meu orgulho… fere meu orgulho

— A poesia é filosofia. É um modo diverso de explicar o mundo

qual a disposição do tempo se hoje me sinto ultimado e a maré das horas recua ao invés da morte para o suposto destino? Quantas vezes ainda aporto longe donde devia?

Termino o chá e pergunto qual o melhor parque para eu visitar, pelo menos durante quatro dias, até nosso próximo encontro.

Foi um garoto quem me deu o bilhete, sem que eu pedisse, é claro. Ele me entregou o bilhete e saiu correndo na direção dela. Foi uma visão. Por favor, me desculpe descrevê-la para você que a conhece tão bem. (aqui é a África, o país que está sendo morto devido ao abandono do mundo). Se não faço isso sinto-me mais estúpido ainda. Imaginá-la como sendo uma virgem núbil, uma Betsabah, ao invés da prostituta adolescente que realmente era é uma necessidade urgente. Estou morrendo, talvez, talvez não. Já falei que ela pediu dois dólares para subir até meu quarto? Dois dólares pelo seu corpo de virgem núbil. Se o gerente não a tivesse impedido, nada disso teria acontecido. Eu estaria em outra parte do mundo, lamentando a vida tediosa, esquecido de qualquer sonho lúbrico. Você acha? Será que ela planejou tudo desde o começo? Ela sempre quis nossa amizade? Não? Sim, claro, não somos amigos.

Depois não a vi mais, pelo menos até de noitinha. Foi depois que nossa entrevista acabou, eu voltei para o hotel para arrumar as malas, só que, é claro, nem cheguei a tocá-las. Na portaria no hotel lá estava o garoto, o mesmo garoto do bilhete, só que dessa vez não tinha bilhetes, apenas um piscar de olhos que me fez segui-lo. Eu sei que foi uma tolice sem tamanho seguir um garoto, durante a noite, pelas ruas de Maputo, que mesmo sendo a capital do país, as chuvas tinham terminado fazia pouco, deixando um saldo de miséria maior que o possível do possível. Independentemente de ser o centro da cidade, nos cantos dos prédios, nas dobras dos bueiros, nas vielas e vãos, a desgraça espreitava. Eu cheguei a sentir o cheiro, mas fiz de conta que era o garoto com ataques de flatulência e o continuei seguindo.

— Eventualmente é isso que eu chamo “brincriar”, quer dizer, criar brincando. Isso é… agora já não sei fazer de outra maneira. Não é um artifício literário, não é um exercício lingüístico, também. É uma espécie de fratura que quero introduzir na escrita para que ela deixe passar uma luz, uma outra maneira de ver a realidade. E isso só pode ser feito através dessa desarrumação, não só lingüística, mas também do próprio processo de construção da escrita e da narrativa.

Deve ter realmente durado dez minutos, se bem que na minha memória está cravada uma hora ou mais. Quem sabe um meio de minha mente fazer demorar o início de minha agonia, pelo menos da agonia de minha carne.

— Não tenho um método. Sou um bocado caótico, mas agora acabei um romance: parto sempre de uma sugestão e depois essa sugestão faz nascer personagens. São as personagens que pedem que haja uma história e essa história é interligada de maneira a criar um fio condutor.

Você acredita que foi doloroso, não acredita? Não quero, mas estou me repetindo, apenas para acrescentar que o prazer antes da dor, ou a promessa do prazer e o prazer em processo, culminando em dor, foi crueldade. Não culpo deus, deus não tem culpa de minha cupidez, era uma noite de luz cheia, e mesmo que as luzes dos postes estivessem apagadas, eu a veria me esperando na entrada daquele hotel barato, sinalizando com os dedos dois dólares enquanto eu lia paz e amor. Paz e amor, bem diante de seus olhos. Se pelo menos ela não fosse tão linda e eu não tivesse esquecido que o garoto do bilhete havia desaparecido…

Você me disse, olhando para os lados como se esperasse alguém

— Não existe nenhuma maneira de fixar o retrato, de enfocar a diversidade do país Moçambique, o importante é o cruzamento de diversas realidades. O que é curioso é que eu, tal como as gerações anteriores de escritores, somos mais velhos que o nosso próprio país: nós temos trinta, quarenta, cinqüenta anos e o nosso país tem apenas vinte e tantos anos. Isso implica um certo sentimento épico: estamos ajudando a dar um certo rosto a este país

É diferente a realidade, diferente de tudo. Nenhuma literatura, nenhum cinema, nenhuma arte pode contê-la, você sabe, eu sei, então porque continuar tentando? Nos últimos anos, a criação virou predicado da ciência, a arte, a arte é diversão, meio para alguns adentrarem o místico mundo das linguagens herméticas, dos códigos, dos segredos que deformam uns poucos em supostos escolhidos. (Fernando Monteiro, meu amigo, você sabe disso e mesmo assim não esmorece, inventando teu verbo na medida do mundo que se revigora dentro de ti).

Subi os dois lances de escada apalpando a parede falha — tantos buracos de baratas quanto tinta descascada. No rádio da portaria uma canção de Gilberto Gil: “Realce, quanto mais purpurina melhor”. Levantando poeira apesar dos passos cuidadosos, lembro quando purpurina provocava outros efeitos.

— Os moçambicanos estão operando sobre a língua portuguesa uma mudança muito livre e descomplexada. Esta reapropriação cria um outro problema: o português ocupou uma posição hegemônica, que poderá conduzir à extinção de certas línguas nativas. Não existe em Moçambique um princípio estabelecido do ponto de vista institucional e conceptual que permita que estas línguas diferentes convivam e se entreajudem. Por exemplo, a utilização do gerúndio, alguma coisa se está fazendo no sentido da percepção de uma dinâmica. As construções da forma passiva eu fui batido, eu fui dado

Engraçado, não, apertando as ancas, deixando marcas de meus dedos, minhas unhas, entendo a forma passiva mesmo estando errado: rememorando escravos sujeitos, sempre possíveis objetos. Se soubesse antes, teria dado mais sabor à nossa conversa, e você não teria ido tão cedo, e eu não teria encontrado a garota, e não teria ficado aqui uma semana inteira, trancado entre quatro paredes, observando o mundo da janela de uma quarto imundo.

— Onde está você? A polícia te procura.

— Desculpe. Podemos nos encontrar hoje?

— Sua voz está estranha.

— Podemos nos encontrar agora? No hotel?

Deitado à sua espera, cerco-me da certeza de que ela não poderá entrar. Se uma vez foi barrada, será novamente. Estou seguro. Mesmo assim palpita meu coração

— Quem é?

— O que foi acontecido a ti?

Foi inesperado, como sempre é inesperada qualquer agressão. Tomei dois goles de cerveja e deitei e adormeci, como adormeci várias vezes nestes últimos dias. Sonhei com felinos dentes de sabre perseguindo elos perdidos de minha humanidade. Nos gritos e corpos trêmulos reconheci o medo e me compadeci e senti as dores dos dentes penetrando o viés de carne sob as costelas. Acordei úmido e ao apalpar-me descobri não ser suor.

— Um médico.

— Sim, por favor, mas antes me conta um pouco mais desta vida, de sua vida. caso eu morra, gostaria de morto sonhar com o que planejei sem alcançar.

— Estudei dois anos de medicina, deixe-me ver tua ferida.

— E então?

— Foi ela mesma quem te feriu?

Tantos quilômetros, tantos mares, tanto céu. Aqui é noite, madrugada realmente. Abre a janela e se acomoda, respira e sente o odor quebrado de tudo o que foi vivido.

— Não. Primeiro me diz.

— Não vejo a escrita como uma carreira e vejo mal que alguém faça isso, além de não entender como isso pode ser pensado desta forma. Se alguém concebe a sua própria escrita como um trampolim para uma carreira acho que ele merece este obstáculo. Eu posso fazer carreira de profissões de domínios técnicos, mas na escrita há uma espécie de relação de namoro que escapa a uma carreira. Infelizmente todos estes sistemas que tomaram conta da escrita, como o de produção de livros, de mercado, exigem que o escritor tenha esta idéia do sucesso, que é medido a partir do número de fãs, do número de livros que se vende. Seria hipócrita da minha parte dizer que eu também não ambiciono este reconhecimento, mas estamos falando da escrita. Ela não pode ter esta ambição, é outra coisa. Agora me diz, porque ela…

— Ciúmes. O garoto sentiu ciúmes.

Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra
Mia Couto
Companhia das Letras
262 págs.
Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho