Martin Amis

A conversa com o escritor que considera sensual escrever ficção à mão
Martin Amis: “É fácil ser niilista. Difícil é escrever bem sobre felicidade”
01/04/2004

As pessoas tendem a achar que a crise da meia-idade é um clichê,

Abre lentamente a porta do escritório. O pai está frente à janela.

alguma coisa que acontece a estúpidos que não têm personalidade para atravessar a meia-idade.

Os dedos das mãos cruzados às costas enquanto raios do sol matutino recortam sua figura. O casaco de outono,

Eu discordo.

com várias linhas soltas, os livros espalhados pelas paredes, tijolos imóveis gastos pelo vento dactiliano. A cena sofre um colapso com o tremor dos ombros e o abaixar do queixo. E quando a imobilidade retorna, é tarde demais.

Eu penso que isso é intrínseco e que uma porção de qualidades vêm à tona. Eu sinto os efeitos de algumas dessas qualidades, no bom sentido, e que a crise da meia-idade agora é passado. E eu estou melhor adaptado à idéia da morte do que estava alguns aos atrás. A vida parece mais clara.

O tempo passou.

Encurtada, mas mais clara.

O caminhão dos correios passou.

Comédia, sob meu ponto de vista, hoje precisa ter tudo. É como se os outros gêneros tivessem entrado em colapso. Nós estamos no caminho de encontrar coisas muito estranhas na comédia atual, coisas que normalmente não teriam muito a ver com comédia.

Senta-se à mesa e espera o jantar ser servido.

— Não leia à mesa.

O pai olha o corredor que dá na sala e dali para a rua. Seus olhos são bolas de vidro umedecidas mais e mais com o afundar do dedo indicador na cavidade nasal. Ninguém liga para o pequeno ponto escuro arrastado e arremessado sobre o ombro esquerdo. Menos ainda para o fato de o movimento fazer pequenas plumas flutuarem sobre a mesa, contornando cabeças. Uma delas pousa entre os fios de cabelo do pai e permanece ali, biruta psicótica sem rumo a seguir.

— Já disse para não ler à mesa.

Duas pequenas moscas descem do teto para conferir o que é aquilo. A menor é fêmea, e está faminta. A maior, o macho, também está faminta, mas não de comida. Enquanto a menor desvia da pena e vai na direção do prato de peixes, a maior insiste em tentar montá-la em pleno vôo. É rechaçada dezenas de vezes.

— Ainda mais esse tipo de livro.

Junto ao prato, a maior não desiste apesar do forte e lamentável odor de peixe queimado. A menor segue lambendo a pequena lasca de rabo de peixe, sem incomodar-se com o volumoso pênis de seu insistente companheiro. Para insetos cujas vidas mal ultrapassam 24 horas, os segundos ali perdidos significam anos de namoro sem qualquer intercurso carnal. Situação que se torna ainda mais terrível quando, sem mais nem menos, o maior desiste, recolhendo o dantesco órgão genital e a menor, apesar de ainda faminta, pára não entendendo a desistência e, com suas asas sibilantes, vira-se na direção tomada pelo seu amante ocasional e, na incomplacência feronômica, alça vôo e pousa ao lado do extenuado companheiro que, com um largo sorriso, dá por terminada a tarefa de uma vida: legar herdeiros no corpo imóvel do ranho de nariz.

— É isso que te ensinam na escola?

— É.

— Você parece cansado. Teve aula de educação física?

— Mais ou menos.

O vapor de duas batatas cozidas invade suas narinas. O vapor do peixe frito — carcaças escuras manchadas de óleo queimado — invade suas narinas. Além da parede esverdeada, apenas o rosto do pai. Ele poderia deixar de olhar a porta lateral enquanto mastiga.

Dar atenção aos movimentos ocres de suas mãos. Perceber as migalhas sobre a tolha. Mas prefere continuar seguindo o não-movimento no corredor. Fantasmas competindo pelo prêmio dado no cemitério verticalizado. Lagartos centenários discursando perante o juízo final. Vermes bêbados no estômago do Pastor. O som de risadas que ensurdecem o astronauta. Uma parede coberta de solas de mamute. Um milhão de vespas atacando um defunto infante. O toque da campainha desligada por engano.

— É bom fazer exercícios.

Meu pai, você sabe, era comunista e então virou alguém de direita e extremamente anticomunista. Um de seus grandes amigos era Robert Conquest. Ele é um poeta e historiador. Ainda vive. Muito, muito bem de saúde. E ele sobreviveu a meu pai. Hoje ele tornou-se meu amigo, numa bela continuidade.

(Kingsley Amis morreu em 1995. Martin Amis, seu filho, tomou o lugar de Eric Jacobs, como biógrafo. O motivo? Queria alguém mais qualificado para a tarefa de falar da vida do romancista que foi seu pai. Ou seja, ele mesmo)

As vitrines das lojas estão generosas com a primavera. Mulheres estátuas cobertas de azul anil e pétalas de sempre-vivas; moscas gigantes pulverizando pólen sobre rosas douradas. Muitas flores e cores contrastando com a pressa e desassossego dos passantes: turistas jamaicanos, marroquinos, gregos, sul-americanos. Gente de todas as partes do mundo prontas para usufruir daquilo que fez os Beatles grandes, os Rolling Stones grandes, Twigy grande, Vivienne Westwood grande. A boa e velha palidez londrina.

Filhos de escritores são normalmente bons para um ou dois livros, e está feito.

A camisa de Martin está com a gola amassada. A calça é a mesma de ontem. A barba está por fazer. Caminha seguindo os vãos da calçada e desviando de marcas secas de cocô de cachorro. E no momento em que me distraio,

— caramba

Martin desaparece atrás dos seios oblíquos de uma italiana que se recusa a me dar licença para passar. Se bem que tenho dúvidas se realmente me esforço. Seios oblíquos é mais que uma figura de linguagem.

Existe a curiosidade sobre o livro número um, que diminui para o livro número dois, e então, eles se calam. Este tem sido o modelo. Mas eu ainda estou ativo. Algumas pessoas acham que eu herdei toda uma seqüência de genes de escritor.

Lá está a pomba sobre a caixa postal. No bico um pequeno galho seco. A seu lado, Martin faz papel de Noé, procurando seu monte Ararat, a torre do Big Ben. Dez para as dez da manhã. O relógio em seu pulso confirma o velho Ben. Dez para as dez da manhã. Ainda temos muito tempo e a água de nossos assuntos ainda não baixou completamente.

Se alguém está encrencado com seu primeiro livro, o único conselho que eu posso dar é:

Paro e encaro os leões do museu Britânico. Há anos investigam o nada. Passar a mão no sentido dos pêlos faz com que sorriam. Martin, não. O pai acaricia seus cabelos e chama para que levante e troque de roupa.

— Tem certeza de que suas cuecas estão limpas?

Chove, o que não os impede de sair à rua e tomar o táxi. As gotas escorrem sobre o vidro formando trilhas. Seus dedos deslizam pela superfície translúcida deixando marcas de gordura. Agradece a chuva que encobrirá qualquer marca em suas roupas íntimas.

apenas chegue ao fim, então se preocupe. Primeiro termine o que começou. Então você saberá o que você tem à frente. Não se preocupe com pequenas decisões ao longo do caminho.

Seu pai pede que não se apóie no vidro. Não se apóie no vidro apesar de as marcas de gordura não serem visíveis do interior da livraria. Não seja impertinente. Não seja impertinente mesmo com a mulher de botas pretas que pede que não atrapalhe a fila. Não seja impertinente com o velho de costeletas que aponta a banqueta junto à estante de livros infantis, onde nenhuma lombada tem seu sobrenome, onde apenas crianças encontram o que fazer.

Há algo sensual em escrever ficção [à mão], com uma fina linha pintada. É algo que você pode perceber em suas encruzilhadas e que com um computador teria apagado. Quando você ultrapassa a encruzilhada, aquela palavra ainda está ali, e talvez ela seja a palavra certa. Eu uso um bocado de flechas e gosto de fazer anotações no lado esquerdo da página com as coisas que eu gostaria de ver em cena, deste modo, escrever à mão parece correto para a ficção.

Martin nem ao mesmo olha para o almirante Nelson, ao invés disso, deixa de encarar a velha loja de livros e corre cumprimentar sua segunda esposa, Isabel Fonseca. Acompanham-na as filhas menores Clio — a musa da história — e Fernanda. Não ouço o que dizem. Prefiro tocar o pilar que sustenta a estátua. Gosto realmente desses monumentos grandiosos. A celebração de feitos heróicos. O indivíduo ímpar representando a força e o poder de um único homem. “Vaidade, tudo vaidade”, acho que foi Píndaro quem disse. Vaidade que, subitamente, desaparece sob a ofuscante luz do indivíduo vencedor — hehehe. Meu sorriso desaparece quando o enorme cocô desaba na manga de minha jaqueta. Isabel e as filhas afastam-se. Martin pergunta se quero passar em algum pub para me limpar.

(A agente literária Pat Kavanagh, esposa do ex-amigo Julian Barnes, colocou Amis sob fogo cerrado desde que foi trocada por Andrew “the Jackal” Wylie, responsável pelo pagamento de um grande adiantamento pelo livro A informação. Na mesma época, Amis também trocou Antonia Philips, sua esposa durante 11 anos, por Isabel Fonseca, com que casou e vive me Londres)

Costumeiramente, eu escrevo sobre extremos de fortuna e talento. Há normalmente dois personagens: um que tem tudo, um que tem nada. E uma porção de selvagens disparidades entre duas pessoas.

Está deitado na cama, com os pés cobertos. Lê as últimas páginas e as últimas linhas e sente o coração acelerado. Não tira os olhos da tinta seca. Parar é impossível. Se interromper a corrida dos olhos, adeus tempo revivido. Adeus, personagens. Melhor o coração disparado, as mãos trêmulas, o suor nas costas, a ansiedade, a tortura. E quando resta nada além da folha amarelada, relembra as costas do pai sentado frente à máquina de escrever. Adormece sem interrompê-lo e durante o sonho é quem está escrevendo a história que não pode ser interrompida pelo pai, pois quem teria coragem de romper o maravilhoso ciclo vital que distende a existência do pai em existência do filho. Pela manhã acorda sentindo as ceroulas úmidas. O peso do livro aberto sobre suas virilhas fez mais que dar cultura às suas bolas.

Algumas vezes eu penso que é fácil ir para a escuridão, fácil ser niilista. O que é difícil é escrever bem sobre felicidade. Não são muitas as pessoas capazes. Talvez Tolstói, talvez os primeiros D. H. Lawrence.

De saída para a escola, fecha o portão e olha para a janela do escritório. Lá está o pai, assistindo à ventura da rua vazia. Todos os dias iguais. Nuvens escuras no céu, ventos do mar do norte. Capotes pretos, sacolas de fios de nylon, sapatos fechados calçando grossas meias de lã. Pulgas descrevendo trajetos tortuosos entre os tecidos embolorados. Acena, mas alguém chama a atenção do pai. Ao retornar à janela, o pai segura seu lençol azul, olhando a grande mancha em seu centro. Foi bom esconder a cueca no fundo do cesto de roupas sujas.

É claro que é um desafio maior do que escrever sobre a escuridão. Escrever sobre a luz é muito difícil. Tem sido dito que a felicidade é uma escrita branca. Ela não aparece na página.

Garotos que estudam na mesma sala vão pela outra calçada. Logo se encontrarão para falar de alguma notícia ouvida no rádio, dos quadrinhos lidos nos jornais, de alguma foto de atriz de cinema ou se alguma das garotas já está namorando. Flint é o recordista da escola em número de punhetas na hora do intervalo. Se tivesse se esforçado mais, teria ido além das onze. Há dias em que falta ânimo até mesmo para pensar em garotas. Por sorte trouxe um livro novo para ler. Quem sabe assim consegue inspiração para se superar e mesmo o treino na madrugada não atrapalhe seu desempenho.

Quando você está de férias e escreve uma carta para os amigos, ninguém quer uma carta que fale da boa comida e da água morna e das acomodações confortáveis. Querem ouvir sobre passaportes perdidos e outras erros e mal-entendidos. Se você é um escritor cômico, como eu normalmente sou, você quer as coisas dando errado. É disso que trata a comédia.

Terminamos a conversa pouco depois das duas da tarde.

A sensação de poder é maior ao escrever ficção do que sobre personagens históricas, como minhas primas, meu pai. Escrever um romance é próximo do poder divino porque você controla tudo e você está completamente fora daquilo tudo. Com memórias, ou um texto jornalístico, há o constrangimento de outras pessoas, o sentimento de outras pessoas, e a narrativa do que aconteceu. Você é constrangido pela maldita verdade. Então isso é menos livre, mas eu posso escrever mil e duzentas palavras em poucas horas. Eu não poderia escrever ficção nesse mesmo ritmo. É como um coro, uma vez que você está no processo, você acha maravilhoso, e tira satisfação do coro bem-feito. Mas não é nem perto da excitação de escrever ficção.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho