Kazuo Ishiguro

A conversa com o escritor que acredita que o romancista não precisa ser muito descritivo
Ishiguro: “Sou muito impressionável quando eu leio”
01/05/2004

Quando estou fazendo um tour promocional, dou muitas entrevistas, mas quando estou em casa, provavelmente eu dou uma média de três entrevistas por semana. Esse processo, obviamente, toma muito do tempo da escrita. Durante dez anos, quando você poderia ter escrito três livros, você escreveu dois.

Coelhos. Raposas e coelhos. Beagles, coelhos e raposas. Cercas vivas, beagles, coelhos e raposas. Asfalto de mão única, cercas vivas, beagles, coelhos e raposas. Grama verde, asfalto de mão única, cercas vivas, beagles, coelhos e raposas. Cavalos e cavaleiros, grama verde, asfalto de mão única, cercas vivas, beagles, coelhos e raposas.

(parece música de criança brincando com a capacidade de ficar falando com uma única inspiração)

Piso no freio e paro o automóvel. Ishiguro abre um dos olhos. Os cavaleiros passam. A trombeta soa. Engato a primeira e paro novamente. Um dos cachorros ficou para trás. Ele senta no asfalto e lambe o rabo. Manobro e desvio. Pelo retrovisor vejo que o cachorro continua na mesma, aproveitando o sol da manhã. Uma raposa vermelha chega para fazer companhia. Ambos lambem o rabo do cachorro. Acelero e o vento desmancha meus cabelos. Ishiguro abre um dos olhos. Ergo o vidro.

— Pode deixar.

Abaixo o vidro. Não vejo mais o cachorro, muito menos a raposa. Penso que talvez fosse uma cadela e a raposa um raposo.

(Kazuo Ishiguro mora em Londres, com sua esposa Lorna e sua filha Naomi)

Pergunto se posso ligar o rádio. Meu companheiro de viagem dorme. Belle e Sebastian. Mudo de estação. Um anúncio de calcinhas. Uma canção de Rob Willians. Um telefonema para a casa de uma velhinha perguntando se ela gostou da noite de amor. Madonna. Beyonce. O novo filme de Spielberg. Eminem. Paro e dou carona para uma garota. Ela agradece. Pergunto de onde veio.

— Mica.

Veste calça jeans, camiseta e uma jaqueta de couro de cobra que não deve proteger do vento fresco.

(tudo pelo estilo)

Eu penso que escrever no mundo atual, de algum modo, é estar atento ao que existe na cabeça das pessoas. Algumas vezes desvelando, algumas vezes manipulando o que existe ali e ao redor. Eu não penso que hoje seja necessário operar como romancistas Vitorianos, ainda mais em termos de descrição de locais e cenas.

Ishiguro ronca no banco de trás. Sua cabeça está caída sobre o ombro direito. Uma das mãos descansa entre as coxas. A outra coça a barriga.

— Não gosto do Eminem.

Digo que pode mudar de estação. Belle e Sebastian. Ishiguro muda de posição.

Sendo romancista, você não precisa ser muito descritivo. Você pode apenas, com umas poucas palavras-chaves, evocar certas imagens. Em certos trechos você pode fertilizar a área com estereótipos e imagens estereotipadas e você as justapõe de diferentes modos. Eu penso que essa seja a grande diferença de escrever hoje e escrever no século 19, quando você provavelmente tinha que descrever uma porção de coisas.

Não sendo necessário, evito entrar nas cidades. Paro em restaurantes de beira de estrada. O Green Deer serve um bom cozido. A cerveja é honesta. O atendimento é correto. Gastamos uma hora inteira com a refeição, mais 20 minutos com higiene bucal, xixi e outros detalhes para o bom funcionamento da estrutura fisiológica. Mica atravessa a rua e entra em uma farmácia. Vai ao banheiro e volta ajeitando os cabelos Channel. Desculpa-se por ter demorado. Abotôo o primeiro botão da camisa e limpo a testa com o guardanapo.

Meus romances usualmente terminam em parcial acomodação da parte do narrador, principalmente quanto às coisas dolorosas que ele ou ela tiveram que aceitar, que ele ou ela não aceitavam no início. Mas usualmente há ainda um elemento de desapontamento ou de algo deixado para trás, apenas pelo fato de sobreviver.

Ligo o motor. A gasolina está acabando. Pergunto a um senhor de barba grisalha onde encontro um posto. Ele me indica um, meia milha adiante. Agradeço e tomo a estrada. Mica não consegue encaixar o cinto de segurança. Ishiguro voltou a dormir. Na beira do asfalto uma raposa vermelha espera para atravessar. Deve ser para chegar ao outro lado, penso e rio. Mica pergunta o motivo. Digo que não é nada.

— Pode falar. Eu gosto de piadas.

Explico que rio por causa de uma piada sobre galinhas. Mica ri. Eu rio. Ishiguro continua dormindo. Cramberries. Just my imagination.

Para mim, um dos paradoxos, que eu me pergunto de tempos em tempos, é que os autores que eu realmente gosto, eu não acho que tenham me influenciado, de nenhum modo que eu possa perceber. Dostoievski é um dos meus grandes favoritos, mas é estranho pensar nele como influência. Eu sei que muitas pessoas acreditam que sou influenciado por autores como Henry James e Jane Austen. Mas nenhum deles eu aprecio, realmente.

Preciso do mapa para saber se tomo a direita ou a esquerda na encruzilhada. Mica me ajuda a segurar a folha aberta. Sozinho seria difícil lutar contra o vento. Do alto, um falcão peregrino também procura um caminho para seguir. Com as asas abertas, circunda nossas cabeças. Demora a entender que o norte é para cima. Abre o círculo e mergulha. Abate um pombo distraído. Mica está chocada.

— Pombos mantêm seus parceiros por toda a vida.

Pergunto o que acontece se um deles morre.

— O parceiro espera.

Mica não sabe quanto tempo vive um pombo doméstico.

Eu tenho sido influenciado por coisa que acontecem de eu ler ou pensar: isto é realmente bom. E eu adoto e isso permanece em minha escrita. Um exemplo é Proust. Eu li apenas o primeiro volume de Proust. Eu não fui além de Combray, ou Caminho de Swan. Eu apenas fui pouco além do início de Combray, e para ser honesto, eu achei Combray muito estúpido. Foi por isso que não fui além. Mas a abertura, o prefácio, que tem algo como 60 páginas, e eu li entre meu primeiro e segundo romance, e eu penso que teve um grande impacto sobre mim.

No posto de gasolina, Ishiguro compra um exemplar do Sun. Mica bebe uma Coca. Eu pago o combustível. Anoto o valor em uma caderneta de bolso e pergunto se falta muito para chegarmos. O atendente tira o boné e coça a cabeça. Seus cabelos vermelhos estão desgrenhados.

— Hoje, eu queria dormir o dia inteiro.

Entramos no carro. Um falcão espera para atravessar o asfalto. Não, espera para chegar até o meio do asfalto e comer os restos de um coelho atropelado. Do outro lado, uma raposa espera. Mica diz que não é um coelho.

— É uma galinha.

Ishiguro voltou a dormir. Eu tenho certeza de que é um coelho amarelo. E o preto na cabeça era sua cartola. Mica pergunta se pode me confessar algo.

— Meus pais morreram este ano. Eu precisava sair de casa.

Naquele momento, foi uma verdadeira revelação. Foi uma revelação que você não precisa montar uma cena sólida seguida de outra cena sólida, como no teatro — que foi o que eu mais ou menos fiz em meu primeiro romance. De fato, você pode seguir o fluir da mente, particularmente quando está rememorando, e você pode ter apenas fragmentos da cena que encaixam em fragmentos de outro momento separado por 30 anos, e então você pode recuar para outra cena, e você tem uma cena longa, e então você pode escapar pela tangente, antes de finalizar com algum assunto além. Este tipo de caminho fluído de jogar com a narrativa, não apenas indo de A para B em seu trabalho, permite todo o tempo aquele tom que permite que texturas surjam dessa técnica. Eu achei uma tremenda revelação, então eu a adotei e isso foi um ponto realmente importante em minha vida de escritor.

Minhas mãos adormeceram. Eu continuo ao volante. Demorei para aprender a dirigir do lado direito. Troco mais vezes de marcha para estimular a circulação. Duas vezes cruzamos com ovelhas e pastores. Três vezes atravessamos pontes sobre estradas de ferro. Não sei quantas vezes cruzamos rios e riachos. Comento com Mica que a paisagem me dá sono.

— Não é a paisagem, mas os filmes ingleses.

Digo que não entendo o que quer dizer.

— Os filmes ingleses são muito chatos. Aí a gente associa a chatice dos filmes com a paisagem. Na verdade, os campos ingleses são bonitos. Olha o horizonte.

Está nublando. Uma enorme nuvem escura assoma-se, avançando em nossa direção. Acelero sem perceber que acelero. Mica pergunta por que acelero. Digo que não gosto de dirigir na chuva. E acrescento que não tem nada a ver com filmes americanos. Ela ri. Eu acelero. Ishiguro olha para o outro lado, onde o sol brilha e os campos estão verdejantes.

Quando estou escrevendo, eu não gosto de ler romances. Eu leio não ficção. Eu não gosto de ler novelas porque acho infeccioso, em nível de estilo e algumas vezes em termos de tema e atmosfera. De certo modo sou muito impressionável quando eu leio.

A chuva começa fraca. Logo os pingos nos atingem consistentes. E aumenta a intensidade até que preciso parar. Estaciono fora do asfalto. Ishiguro divide o jornal entre todos. Lemos em silêncio. Os vidros turvam com nossa respiração. Abro um pequeno vão na janela. Fecho novamente. Mica tira da bolsa balas de morango. Ishiguro recusa. Dobra a folha de jornal e tira os sapatos. Pergunta se sei onde estamos. Minto. Mica ri. Eu mastigo a bala. Ishiguro olha o relógio. Diz que em meia hora seu compromisso estará perdido. A chuva se intensifica com a queda de granizos. Ishiguro pede que um de nós procure uma estação que nos diga se vai demorar para o tempo melhorar. Ishiguro pede que eu pare. U2. Elevation.

Até os 24 anos, eu queria ser compositor. Enviei canções para todos os lados, e depois de anos de rejeição, eu mudei de compositor para escritor de contos. Quando comecei a escrever histórias, elas foram publicadas imediatamente. É isso. Você faz o que a vida te leva a fazer.

O sol está se pondo quando ligo o motor. A primeira ponte que atravessamos confirma que a chuva foi intensa. O riacho transbordou e suas margens alargaram até a beira do asfalto. O carro derrapa em uma curva e saímos da estrada por alguns momentos. De volta ao asfalto, peço outra bala. Ishiguro cantarola uma de suas canções. Mica pergunta se estou cansado.

— Achei que a gente fosse morrer.

Ishiguro sorri. Sugere que estacionemos em um restaurante de beira de estrada. Pergunto se não vamos perder o horário de entrada no hotel. Ishiguro diz não ter importância. Mica diz que assistiu ao filme Vestígios do dia, mas não leu o livro. Diz ter conversado com o pai a respeito. Gostou de Anthony Hopkins no papel de mordomo. Diz que a resignação dos personagens é dolorosa. Ishiguro sorri. Eu permaneço para verificar se o carro sofreu alguma avaria.

Eu me senti muito feliz com o filme. Inicialmente eu tive aquele clássico sentimento de mal-entendido do autor vendo seu trabalho transformado em filme. No meio da exibição, percebi que a porta de um dos quartos estava no lugar errado. Pensei: não, você fez o quarto todo errado. Comece novamente. Percebi que as entrelinhas de um livro são diferentes para cada leitor. Porque, é claro, eu não tinha descrito nada daquilo.

Comemos bife com batatas cozidas e tomamos cerveja. Na hora de pagarmos a conta, Ishiguro insiste em cobrir a nossa parte. Mica agradece enquanto eu vou ao banheiro. Estou mijando no momento em que Ishiguro entra. Ele pára ao meu lado e diz que nasceu em 1954 e que veio do Japão com cinco anos de idade. Conta que no início as pessoas estranharam o fato de um japonês escrever sobre ingleses, na língua inglesa, desejando fazer parte da cena literária. Pela primeira vez, pergunta de onde vim. Digo que sou brasileiro. Ele sorri.

— Você é como eu.

Lavo as mãos e digo que aceitei ser seu motorista porque um amigo de sua editora me indicou. Ishiguro diz que já sabia. Eu fico enrubescido, adivinhando que ele sabe mais de mim do que imaginei.

Seco as mãos e espero Ishiguro lavar o rosto. Um homem gordo e careca dá a descarga. Ajeita as calças e nos encara. Está bêbado e talvez pense ser alucinação dois orientais no banheiro de um restaurante, no interior da Inglaterra. Ele não vê o gavião pousado na janela. Eu não pergunto da galinha que sai do mesmo reservado em que estava. Ishiguro fecha a porta, seguido por mim. Mica está à mesa, terminando sua cerveja. Ela gargalha com algo dito pela raposa vermelha e pelo coelho de cartola.

Há alguma coisa pungente nesta realização: reconhecer que a vida de um indivíduo é muito curta, e se você a bagunça, é provavelmente assim que vai ficar. Mas descontando isso, é possível encontrar algum conforto no fato de que as próximas gerações se beneficiarão de nossos erros. Isso é um tipo de pungência que se equilibra com o sentimento de derrota e que ainda assim não nos faz desistir de encontrar razões para sentir algum tipo de otimismo. Aquele é o detalhe de que gosto no final das contas. Como escritor, penso que é algo tristemente patético, mas também tem nobreza, digo esta capacidade para encontrar esperança quando tudo está perdido. Eu quero dizer, é fantástico como pessoas encontram coragem nas piores situações.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho