Julian Barnes

O encontro com o escritor que gosta de experimentar com a forma e aprecia a idéia de informação nos romances
Julian Barnes: “O escritor não pode alterar o que está fazendo para consolar ou confortar”
01/06/2004

Os escritores ingleses têm várias paranóias.

A cadeira branca no meio da sala vazia. As janelas estão trancadas. As cortinas estão fechadas. Tira a camisa. Um vento fresco circula pelo apartamento. Levanta-se e vai até o quarto e puxa o lençol da cama desarrumada e rasga o pano em retalhos. Na tela do computador, pisca o e-mail de Sílvia Lemus.

(deu-se conta do que realmente acontece? Deu?)

Olha para o fogão. Abre a geladeira. Pega uma garrafa de suco de laranja. Bebe um longo gole. As panelas estão cobertas com restos de comida seca. Todas as suas panelas estão imundas. Todas as três.

(deu-se conta do que realmente acontece? Deu?)

Vai para o banheiro. Abre o armário e tira um vidro de soníferos. Destampa e olha para as pílulas azuis. Volta para a sala. Segura no espaldar da cadeira branca, vendo o monitor do computador. Piscam duas mensagens. Uma é de Sílvia; outra, de seu editor. Vai até a cozinha. Abre o forno e liga o gás. O cheiro atinge suas narinas causando espirros. Desliga o gás e enche um copo de água e o deixa sobre a mesa, ao lado do vidro de remédios. Puxa uma faca do meio da louça suja. Aproxima a lâmina imunda do rosto. Ao soltá-la, o metal trinca a louça branca de uma caneca.

Os escritores ingleses se pensam ignorados e não apreciados e olham para outros países onde a palavra escrita supostamente tem muito mais importância; isto é especialmente certo com os poetas, também, até certo ponto, com os romancistas.

Coloca a garrafa vazia sobre a mesa. Liga a água. Gira um pouco mais o registro da torneira. A água rebate na pilha de louça suja e respingos molham sua barriga. Empurra os pratos empilhados e deixa que tombem partindo dois deles. Dá um passo atrás e junta os retalhos e os coloca sob o feixe de água.

(falha aquilo que reproduz a cena. Aquilo que está em tua cabeça. Olha ao redor. Estas palavras são aquilo que está em tua cabeça. Neste momento, eu estou em tua cabeça. E você não é mais você. Sou eu. Teus pensamentos são meus pensamentos e você perdeu aquilo que te é mais precioso. Seu eu)

Está novamente sentado na sala, na cadeira branca, sentindo o vento fresco bater em seus pés. Levanta-se com os retalhos molhados nas mãos e ajoelha frente à porta e tapa a fresta. Levanta-se e tira a calça. Nada de vento nos pés e nas canelas. Mas há outros.

 Há várias lições que se deve aprender desde cedo para poder ser um escritor inglês. Uma delas é evitar o pecado da desilusão. Acredito que este é o pecado capital do escritor inglês: chegar ao final de sua carreira e sentir que o público leitor inglês não lhe dedicou a atenção que merece, que seus méritos não foram percebidos. Este é um pecado que se deve evitar.

Acabaram-se os retalhos. Vai até o quarto e senta frente ao computador. O e-mail de Sílvia demora a abrir. Pergunta novidades, se está bem, se gostou do material.

“Nascido em Leicester, Inglaterra, em 19 de janeiro de 1946, educou-se no City of London School e no Magdalen College, Oxford. Trabalhou como lexicógrafo do Dicionário Oxford de Inglês e depois foi ser jornalista, escrevendo para o suplemento literário do Times e contribuindo para a New Review. Depois escreveu para a revista New Statesman, para o Sunday Times, para a revista New Yorker. Tem olhos azuis, é magro, fala como um inglês educado e pensa antes de responder. Mora em Kent, Londres, com a mulher, a agente literária Pat Kavanagh.”

Responde que está bem. Agradece pela entrevista feita com Julian Barnes. Desculpa-se pela falta de tato, e novamente agradece o gesto de carinho para com um estranho. Na última frase conta que terá hoje a resposta do editor e que está ansioso. Recosta-se e lê o que acabou de escrever. Deleta tudo e apenas agradece pela entrevista. Ao lado do mouse, um tubo de cola branca. Um tubo de cola branca e uma pilha de papéis impressos. Mil folhas escritas e revisadas durantes mil noites.

(e isso te incomoda?)

Há uma tradição muito conservadora entre a crítica inglesa, que prefere a novela antiga, bem escrita, socialmente realista. Eu respeito esta tradição, mas não me interessa segui-la.

(não. Nunca te incomodou e não é agora que vai te incomodar. Eu em tua cabeça. Minhas palavras são teus pensamentos. Se eu digo que é isso, isso é aquilo que está vivo em ti. Tua carne, teus ossos, teu sangue, tuas amarras. Tudo o que eu digo está em ti. E o que mais dizer que não que você sou eu e mesmo assim continua junto a mim, distante de si)

Cola as folhas nos vãos das paredes, nas reentrâncias abertas, nos pequenos espaços ocos. O cigarro no canto da boca. Rimbaud beijando Verlaine. Sorri para a gravura e cola uma página sobre os lábios que se tocam.

Acredito que quando um artista inglês tem sucesso fora do país, isso geralmente provoca uma reação de suspeita na Inglaterra. É o caso, por exemplo, de Peter Greenaway, o cineasta, que tem muito êxito, especialmente na França, Suíça e Alemanha. Na Inglaterra isso se reflete na suspeita que seus filmes provocam nas pessoas. Não dizem: “não estamos seguros sobre o que pensamos a respeito dos filmes de Greenaway”. Dizem: “Peter Greenaway, não sabemos o que pensar dele. Tem êxito na Europa, portanto há algo de mal nele”. Esta é uma atitude da crítica que aparece com freqüência.

(Se acreditou em tudo, olha para a frente. Não tem medo de se perder de mim. Olha para a frente e me diga o que vê? Vamos, descreva em detalhes as partes do mundo que te foram reservadas neste momento. Esquece da segurança de meu mundo. Desapropria-te daquilo que sou eu e não você. Revele a mim aquilo que está à sua frente)

Sentado na cadeira branca, ao redor de si, as mil páginas cobrindo o apartamento. Na tela do computador, um novo e-mail de Sílvia. Levanta-se. Senta-se. Apóia as costas no espaldar da cadeira e coloca as mãos, com os dedos cruzados, sobre a cabeça. Suspira fundo e olha para as paredes cobertas com as folhas impressas. Estala o pescoço com um movimento lateral. Levanta-se e começa a ler as paredes.

Acredito que o romance sempre tem sido uma forma muito grande e generosa. Em uma consideração total, quando penso em romance quero que inclua o máximo possível em lugar de excluir. Diderot é romancista, Kundera é romancista e assim por diante. Às vezes, sobretudo na Inglaterra, me acusam de não ser um novelista real, em parte porque uso elementos de não ficção em minha ficção, e porque gosto de experimentar com a forma, gosto da idéia de informação nos romances. Deste modo, às vezes, me choco com a tradição crítica que diz que sabemos o que um romance é.

(ou prefere que eu adivinhe. Prefere que eu diga das árvores, da parede, das cores, do vento, da luz, da noite, dos óculos, das pálpebras, das vozes, do silêncio, das mortes, das maldades, do desespero, daquilo que você escapa para ser eu. Da insuportável necessidade de manter os olhos abertos e ainda assim deixar de viver aquilo que se revela teu mundo. E como é triste e ínfimo esse mundo teu. Me dá cataratas nos olhos vê-lo através de teus olhos. Que infeliz construção do destino é isso que tua vida escolheu como sendo tua vida. E o que falar dos demais sentidos? O que acontece nos teus ouvidos emporcalhados de vozes e sons e barulhos que revelam a pobre música de teus dias. O que falar dos perfumes, odores, fedores e cheiros que inflam tuas narinas e irritam os seios paranasais. O que dizer do sabor doce, azedo, amargo, ardido, salgado, insosso que recobre tua língua. O que esperar do frio morno, do calor morno, do morno imperceptível que cerca a pele de teu corpo frágil e sem viço. Me dá asco, nojo, conhecer do que foges para estar comigo. Eu em minhas palavras. Você)

Ri até perder o fôlego. E ao terminar a página, corre as quatro paredes da sala à procura da continuação. Iria para a cozinha não tivesse encontrado um trecho da entrevista feita por Sílvia.

Atualmente, quando me perguntam se é um romance ou não, eu lhes pergunto se gostaram. Este é o critério. Freqüentemente a questão dos gêneros é uma questão da crítica, mais do que dos leitores. Aos leitores, interessa se gostam ou não de teus livros. Lêem e ao final expressam sua reação. É, porém, a crítica que diz: “o que é este objeto? Eu o reconheço? Em que categoria o coloco?”

Volta a procurar a continuação do que estava lendo antes e o estava divertindo. Precisa subir na privada para conseguir distinguir as letras presas no vidro do banheiro. A luminosidade atrapalha. Tenta arrancar a folha, mas a cola secou e o papel se desfaz em pedaços. Mesmo esforçando-se não consegue separar as frases. Parece que

(um dia, no entremeio de duas noites, você se deu conta de que o sol corre de horizonte a horizonte. Deitado na grama do campo de desejos, descobriu à retina o arco dos teus sonhos. Sim, você pensou, mediocridade não é a única verdade. Se existe algo além, eu irei buscá-la, e farei de minha vida uma vida que vale a pena. Eu não serei apenas eu. Eu serei Beckett, Voltaire, Sócrates, Baudelaire, Machado, Faulkner, Rimbaud, Fante, Bérgson, Deleuze, Heidegger, Pound, Cummings, Eliott, Sartre, Dos Passos, Kerouac, Agostinho. E tomando o sonho pela realidade, descambou a ler o que encontrava pela frente. Na biblioteca pública passou a retirar os livros pela ordem das estantes. Todos os dias conferia se nada havia ficado para trás [um Dostoievski, eu lembro bem]. Nos dias sem sono, avançava uma Guerra e paz. Nas manhãs enlutadas, devorava Pantagruel. Nos momentos de modorra, vivia a delícia do Paraíso. E para limpar a língua e os dentes após as refeições, viajava para a América Beat, para os castelos de Dumas, para a glória de Stevenson. E pouco a pouco, alimentado pelas palavras que sempre valorizam outras palavras, encontrou no eu alheio, na mentira alheia, a certeza de que não precisa ser quem é. E assim decidiu nunca mais acordar e apenas)

Escrever ficção é um processo muito consciente, em muitos sentidos, mas há certos trechos os quais não é preciso estar muito consciente. Normalmente se está cabalmente consciente no momento de colocar as palavras na página e sabendo com exatidão que faz essa palavra em relação às outras palavras. O que está fazendo esse personagem no momento em que ele, ou ela, entra no quarto, etc. Sempre as perguntas lógicas.

(fácil falar, filho de uma megera existência. Independentemente de tua vontade, Shakespeare persiste com suas revelações. Na angústia de Hamlet, dita que nenhuma felicidade é eterna. Buda não mente ao dizer que o sofrimento é o estado natural do homem. Talvez Sade confunda felicidade com falicidade [um problema galês]. Quem irá realmente dizer que nesta vasta mansidão de teus atos há um segredo a ser revelado?)

Responde para Sílvia que gostou do material e que ele será impresso. Após remeter a mensagem, manda uma cópia da entrevista para o editor que já deveria ter respondido. Acrescenta algumas palavras elogiando o conteúdo. Aperta a tecla enter e imediatamente se arrepende. Não deveria mostrar-se ansioso [ele vai achar que faz pressão e isso pode irritá-lo]. Morde o lábio inferior. Corre para a sala e vai até a cozinha e abre a geladeira. Está vazia. Abre os armários e não acha um cigarro sequer. Suas costas encontram a parede e escorre até ficar sentado. O chão frio arde a pele das nádegas. Respira ofegante. Abraça os joelhos e olha para a luz da sala em formato de porta. Fecha os olhos.

Lembro de uma das famosas trocas de cartas de Flaubert e Georges Sand, no qual ela escreve para recordar-lhe o que é seu trabalho. Ela diz:“eu escrevo livros para o leitor e causo consolo; você escreve livros para o leitor e causa desolação”. Flaubert lhe responde: “Não posso trocar meus olhos”. Para mim este é um dos momentos supremos entre as respostas de escritores, dizer: “Não posso trocar meus olhos”. O escritor não pode alterar o que está fazendo para consolar ou confortar, só pode escrever o que vê, e não deve trocar seus olhos, por mais atrativo que seja ver com lentes de contatos.

Anoitece. Caminha nu pela casa sem sentir uma única corrente de ar.

(tua esperança está me mim, em minhas palavras. Nestes sons melopédicos e carentes de qualquer ritmo parelho. Vento trançando as cordas da cortina. Escapamentos torcendo as esquinas em voltas de labirinto. Sempre lugar nenhum. Sempre coisa alguma. Sempre tudo e nada. Apenas para que você possa abrir os olhos e velejar neste mar impresso em papel. Minhas palavras. Minhas palavras. Minhas palavras)

É bom sentir-se intimidado, porque escrever consiste em muito naquilo que no momento te parece originalidade e valentia, e arrojo e vaidade.

(estúpido! Você é muito estúpido. Um claudicante degenerado que perdeu a capacidade de discernir onde está teu instinto de morte e tua lupa de duas lentes. Passando os dedos sobre a tinta negra, pergunta a cada ponto se o que vem a seguir irá revelar a grande verdade. Acomodado na almofada, sobre sua almofada — nádegas murchas —, respira ofegante. Avança floresta adentro, incólume. Ataca demônios e tigres e sobrevive. Atira sua adaga contra o inimigo e o derrota. Pisa descalço sobre o asfalto quente e não reclama. Você é um grande herói. Um semideus impávido. Você é minhas palavras. Minhas palavras. Você sou eu falando comigo mesmo. Você é você falando consigo mesmo. Não desiste. Agora é tarde. Rasgada a cortina de tuas ilusões, o que te resta é saber que nenhum sonho tem a força de manter teu sono. Estúpido eu… Super-homem de merda!)

Da porta do quarto, olha para a tela do computador e, de pé, lê novamente a mensagem do editor. Abaixa a cabeça. Endireita as costas. Suas feições mudam de derrota para um ânimo cínico. Olha para o e-mail de Sílvia, piscando. Ri. Aperta o mouse e abre a mensagem. Lê o primeiro parágrafo. Lê o segundo, no qual Sílvia pergunta se o romance será publicado. Não lê a continuação da mensagem.

O escritor dá o melhor de si na máquina de escrever, e é provável que o que apareça ao leitor depois seja menos interessante. Quando está ante a máquina de escrever, o escritor está dando a expressão mais plena de si mesmo. É um momento íntimo essa relação entre leitor e escritor, ainda que não haja nada ali quando ele está em seu escritório com a máquina de escrever. Eu me dou conta dessa relação de intimidade, muitas vezes maior que a dos amantes. É um sussurro no ouvido, é estar sob a pele, dentro do crânio do leitor, e às vezes se obtém uma resposta, em forma de carta ou mediante um encontro direto com os leitores. Mas a sensação da pessoa que se vê, mas que está fora, e responde… não digo que o escritor deva imaginar o leitor, porque não acredito que seja possível, a menos que se esteja escrevendo um tipo determinado de ficção. Não acredito que se possa ter um escritor em particular na mira. Só se deve escrever o que interessa ao escritor, escrever o melhor que se possa, e assim esperar que se aproximem os leitores e que os leitores que gostem desse tipo de leitura.

O cheiro de gás o faz tossir nas horas mais impróprias. Mas logo passa.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho