Javier Marías

A conversa com o escritor que está interessado numa literatura que extrapole a simples narrativa
Javier Marías: “A literatura que mais admiro é a que permite a alguém reconhecer coisas que sabia, mas que não sabia que sabia”
01/01/2005

— No ha habido jamás un libro o una película necesarios, como existe ahora la manía de calificar a tantos.

(fuma e se contradiz e por vezes é inflexível)

Veleidades sobrevoam o céu catalão,

e nunca pensei em leitores concretos

escrevendo entre nuvens com sopros de poeira invulgar o quanto a dor própria é absurda e necessário é aprender a abrir os olhos e ver

à medida que se vai tornando veterano, e eu o sou, chega um momento em que se começa a apalpar, por assim dizer,

a verdade do que se apresenta e não fantasiar a verdade em nome de uma compaixão para consigo mesmo. Sim,

que tipo de leitores se tem e aí é onde se corre o risco de tentar escrever para eles

pequenos automóveis conversíveis

(aos 19 o primeiro livro Los dominios del lobo e hoje, aos 53)

aceleram ultrapassando bicicletas esqueléticas no injusto embate entre a fome de seus aros e a pujança de músculos europeus de grossas coxas e capacetes de polipropileno expandido e coloridos com cores lúbricas, ácidas, tormentosas para os olhos daqueles motoristas em seus automóveis conversíveis e rebaixados, de molas convertidas em finas tiras e pneus tão largos quanto os passeios nos quais caminho e me perco tentando localizar a direção certa para o meu dia, que começou tão tranqüilo e

a verdade é que até agora tenho procurado escrever para qualquer um e escrever o que me apetecia

cheio de promessas, seguindo a proposta de se hoje desejo conquistar algo grandioso, preciso desde cedo erguer as pálpebras, consciente do quão ardilosa e emaranhada é meu desejo e não vacilar para que ao final da tarde, no morrer do anoitecer, eu não precise ocultar a retina, envergonhado de mais uma vez ter falhado como tantas vezes falhei e ainda assim acordando

eu me considero uma pessoa comum e penso que as coisas que me interessam são as que interessam a muita gente

para sobreviver à vergonha de existir sem motivo e sem mapa, certo de que os anos defecam desgraças e apenas desgraças a aqueles que, feito adubo em terra calcinada, perdem propósito e finalmente confessa aos que os cercam que se vêm jovens, admitindo assim que envelheceram e não fizeram algo de valor.

— Mis últimas novelas tratan de cosas que en realidad están en la vida de todo el mundo.

Ao descer o meio-fio torço o tornozelo e depressa endireito o corpo e procuro não dar chance maior para que os estranhos de roupas vermelhas, portes empertigados, malas e valises e bolsas e cortes arrojados de paletós e casimiras e Versaces, Valentinos, Diors, Channels percebam-me incapaz de caminhar ao lado de belos semideuses como se isso já não fosse óbvio estando eu de calça jeans furreca e camisa amassada na gola e sapatos mal-engraxados, pois nunca o foram desde que saíram da caixa e sentiram a rigidez dos calos que infestam meus pés, pobres pés que não tiveram a chance de usufruir por mais que meses os confortos de um acelerador macio e bancos de couro e deste modo, quando cruzo as pernas, deixo ver a sola mal-ajambrada e como pode ser realmente,

há um tipo de filme ou de romance que conta uma coisa muito concreta ou a vida inteira de um personagem, e quando se acaba, se acaba toda

terminando de atravessar a rua, apóio uma das mãos na caixa largada sabe-se deus por quem e sinto uma brisa fria percorrer minha espinha e penso que há tantos atentados acontecendo, como se não bastassem os bascos agora os árabes parecem todos suspeitos,

mas há outras nas quais se cria um mundo romanesco, no qual o leitor, e por suposto o autor, se instala

pior ainda sendo este um país meio mouro, meio louco, meio descrente da herança deixada por Isabela e pela Companhia de Jesus que, quanto tempo faz que nos abandonou, Senhor?, filho do homem que deveria ser a prova de nossa divindade e ainda assim permite que eu seja a contrapartida de tanta potência realizada. Fico parado esperando que a bomba estoure, mas

(em sua casa, na praça da Vila de Madrid)

olho o relógio de pulso e vejo pássaros sobrevoando os telhados de um pequeno café e desisto de me desistir e sigo adiante apesar da brisa fria em minhas costas e a insuportável vontade de que aquela caixa realmente seja a caixa e que nela esteja o fim de meu destino e que nunca mais eu precise ser avisado de que o aluguel precisa ser pago, que a vida se alimenta de mim e que não vivo para viver mas para suprir meus credores e por isso estou aqui, caminhando sob este sol catalão e sendo humilhado a cada encontrão, desvio, pois

em meus romances sempre se contam processos mentais e reflexões

só eu desvio, o menor, mais fraco, mais insignificante e consciente dos homens deixa que os de verdadeiro valor façam seu caminho e realizem os objetivos propostos esta manhã, ou quem sabe ontem, e não fazem como o tolo que retorna de seu caminho e chuta uma caixa vazia para o meio do asfalto e provoca uma brusca freada de um pequeno automóvel e acaba na delegacia sendo questionado do porquê de tanto ódio, ímpeto ao vandalismo, psicologia barata retirada de episódios de seriados americanos e que, quando finda a tarde, me repete que perdi o horário do encontro com Javier Marías e preciso ligar novamente para fazer a entrevista, pois preciso pagar o aluguel e comprar um novo par de sapatos porque os que tenho nos pés deram a vida pela salvação de dezenas, centenas de homens, mulheres e crianças da Catalunha.

(cadê os aplausos?!)

— No sé, me encantaría ser un tipo de escritor, por los que tengo debilidad, de esos que no te importa nada lo que te cuentan y lo que quieres es que sigan, porque todo tiene interés. Es el caso de Proust.

Acordo mais cedo, três horas mais cedo, com o dia ainda por raiar e visto a mesma roupa do dia anterior e antes de calçar os sapatos preencho o fundo com pedaços de papelão e uma tira de couro que um dia foi a língua ferina de meu tênis aposentado e abro a porta e desço correndo quatro degraus por vez e mesmo sendo chamado fecho a porta gritando Estou com pressa e corro duas quadras para ter certeza de que o senhorio não me alcança — como poderia sendo o velho que é — e respiro fundo o ar da manhã e sorrio e cumprimento os trabalhadores, os verdadeiros, que levam bolsas e marmitas e conversam gesticulando de modo amplo e me fazem crer que posso ser como eles, sem me importar com minhas contradições pois sei que assim sendo, se me contradigo é sinal de que sou amplo, de que sou mais que a simples certeza e assim posso gritar e falar e xingar àqueles que seguem uma vida reta e direita, com um destino traçado e que na aurora de suas eternidades terão apenas o céu limpo e sonolento a esperá-los, motivados pela promessa do paraíso e, em verdade, tendo perdido todas as verdadeiras volúpias da vida, sentimentos maiores que a simples traição no casamento ou a facada nas costas do sócio da empresa ou o arrocho salarial aos empregados mas, prestem atenção pois este é um ponto importa, terão perdido as inseguranças e a maravilhosa sensação de nunca terem sabido realmente o que seria de suas vidas e, na corda bamba existencial terão pendido feito Ícaros atrelados à terra de uma era sem mitos, sem heróis, sem rebeldia maior que furtar uma fruta pois se tem fome e correr mais duas quadras e esconder-se em um beco repleto de automóveis estacionados e após quinze minutos sair belo e faceiro, mastigando o fruto de seu suor, saciando o estômago pela primeira vez desde o almoço no dia anterior.

— Si tú ves Don Quijote, en realidad Don Quijote muere al final de la segunda parte, pero nada muy determinante hubiera impedido que siguiera viviendo. Entonces, éste es un libro que podría no terminar hasta que yo me canse o me muera, o hasta que los lectores se cansen y nadie lo compre.

Leio as manchetes do jornal à procura de algum atentado,

atualmente há uma tendência muito forte de contar e nada mais que contar

algo catastrófico, uma carta de algum grupo endemoniado que se desculpa pelo fracasso de mais uma explosão, pelo esquecimento da instalação do engenho sanguinolento, e que anunciam que o responsável foi executado de forma sumária, apesar de seus pedidos de desculpas, escusas mil, intercaladas por falas que tentavam ressecar as possibilidades dos argumentos,

isto não quer dizer que contar me pareça pouco

esgotando o método dialético de ataque e defesa na mão dupla de uma personalidade angustiada e fideísta de sua causa, e que ainda assim teme morrer com a mancha da inépcia, maior inépcia pois se acrescenta ao seu anuviamento mental o que o levou ao oblivium profissional a ignorância de que para esgotar argumentos e contra-argumentos é necessário ir além do pensamento e flotar sobre as paragens da racionalidade em um campo elísio vazio mas repleto de talvez.

E quando me dou conta volto a caminhar tendo na mente as imagens de modelos seminuas a desfilar roupas que deveriam ser chamadas de não roupas

há romances que podem ser muito apaixonantes por terem muita ação e intriga, pelo que ocorre, porque fazem o leitor ficar muito curioso sobre o que vai acontecer, mas somente por isso os lêem, já que ao fechar o livro deles restam absolutamente nada

pois desvestem e eu rio de mim mesmo achando que meu pensamento é um pensamento original e que merece a risada aliviante e redentora daqueles que acham que sabem pois não sabem a extensão de suas ignorâncias feito cínicos que professam ações de um contador que conhece o preço de cada atitude moral e mesmo assim não dá valor a nenhuma delas, preferindo respeitar antes o patamar de seus espíritos que lhes diz que se parecem estar sob o mundo ignaro é porque o mundo é redondo e do correto ponto de vista estão no mais alto ponto.

— Nos han educado a saber ver en la ficción. En la realidad es como si nos costara más. Y si te fijaras, a veces verías a individuos de los que dirías: yo con éste no daría dos pasos. En ese sentido, el ver a la gente real como si fuera de ficción ayuda a entenderlos. Y a las cosas hay que darles vueltas.

Com minhas últimas notas compro um maço de cigarros e mesmo sem fumar faz anos acendo um cigarro no isqueiro de um adolescente bêbado e que ainda não foi para casa e me sinto um pouco espanhol apesar de não tê-lo sido jamais e sorrio com a fumaça escapando de entre os lábios, tomado pelo ímpeto bipolar que me diz que não há semideuses O caralho que o são porque se realmente o fossem, não se pintavam como se pintam, não passavam os dentes de pentes obreiros nos cabelos empastados de cremes pois o verdadeiro belo nada necessita que não seja a solidão do espelho, nunca a rua que começa a parecer repleta de homens e mulheres que sonham ser artistas, superando suas fealdades com o talento valorizado pela moda de hoje.

— Como lector, me interesan libros que, además de contarme una historia, me creen una determinada atmósfera, un cierto mundo que perdure, o reflexiones entreveradas, o situaciones que vayan más allá del puro narrar.

Duas horas e o sol já cobre o topo de pinheiros centenários e toco a campainha e peço pelo interfone ser atendido pois tenho uma entrevista e apesar de ter chegado meia-hora mais cedo peço novas desculpas se poderia entrar e, com toda a finesse e despreocupação, aceitar dividir o café da manhã do honorável escritor que ainda agora come seu presunto e toma goles de café colombiano e mastiga pedaços gordos de pão molhado em uma mistura de vinho com água trazida de minas perdidas nos Alpes espanhóis.

— La literatura que más admiro es la que permite reconocer cosas que uno sabía, pero que no sabía que sabía.

Não demora a porta é aberta e entro e subo meio lance de escadas e estou frente a uma porta com dois metros e quarenta e uma bela maçaneta e madeira de lei brasileira que ainda cheira forte e me faz lembrar o quanto o dinheiro se assemelha a merda, como ao amontoá-lo fede assustando aquelas almas piedosas e limpas, higienizadas por um deus serviçal que lava pés e ressuscita mortos mas que se recusa a ouvir minhas preces e me ajudar a tornar-me um fedido e emporcalhado capitalista desesperado na beira da piscina tentando livrar-me do cheiro que ao mesmo tempo que espanta atrai para meu colo dezenas de sílfides de biquíni e corpos de capas de revista e desfiles de moda e entro e espero em uma sala ampla, com três paredes recobertas de livros de lombadas coloridas e antigas e novas e uma parede na qual a janela coberta por um fino chiffon bambeia a claridade para que nada se perca e ainda assim o charme da luz sobreposta à treva do acúmulo de conhecimentos desbaste da mente de entrevistadores como eu a suspeita de que intelectuais podem ser intelectuais de fachada e não verdadeiros investigadores da produção humana e da humanização da produção divina porque,

— Hay escritores que te llevan a plantearte qué sentido tiene escribir una sola página si ya existen las suyas.

seja dito de uma vez enquanto tomo uma xícara do maravilhoso café colombiano, todo homem alimenta sonhos, não de amor ou de bondade, mas de perfeito egoísmo e prazer e, dentro da horda, não me nego como verdadeiro homem.

(o que me responde, filho do homem? Qual a tua herança ou ainda acredita que o silêncio é o ruído mais poderoso de todos?)

— Aprecio mucho el deslumbramiento que se produce ante ciertas frases o pensamientos, que te hacen decir esto es así, la vida es así, somos así, funcionamos así, esto yo lo conozco. Un deslumbramiento que te hace parar a reflexionar y que raramente llega si te limitas a contar.

Toca o telefone e Javier vai atendê-lo e me deixa sozinho numa ação imprecauta ainda mais que o presunto está pela metade e no meu afã corto de forma irregular e o pedaço que enche o espaço entre meus molares, de tão pantagruélico, me faz engasgar e tossir e as migalhas do porco espalham-se sobre torradas, pão, taças, xícaras, canecas, bules, garrafas, queijos, manteiga, toalha de algodão cru clareada com o auxílio de muita água sanitária e engomada com pó de osso pela empregada que me olha com olhar suspeito enquanto retira a louça e a comida que tenho certeza irá jogar no lixo e mais tarde quando for questionada dirá caluniosa que a culpa foi minha, miserável, te amaldiçôo para que todas as possibilidades de amor que se prometem no livro de teu destino redundem em nada antes mesmo que venham à luz e se algum viceja em teu peito que ele morra de todo, como deve ser o fim do verdadeiro amor e é.

Javier retorna e pede desculpas pois

— Siempre he tenido muy claro que no quiero convertirme en lo que se entiende por escritor profesional, aquel que debe sacar libros de forma continuada porque es lo que se presupone. He publicado una media de una novela cada tres años. Nunca he tenido prisa por escribir, ni me he forzado a hacerlo. No me preocupa quedarme seco. Si un día ocurre, no pasa nada. La escritura es importante para mí, a estas alturas de mi existencia me ha acompañado más años de los que no me ha acompañado, pero tampoco es mi vida.

desta vez é culpa sua que terá de se ausentar e encontrar com familiares que precisam de seu auxílio mas jura que marcará um novo encontro e eu aceito e aperto sua mão e olho sobre seu ombro para a bruxa de língua bífida e volto para a calçada, um quilo ou dois mais pesado, preocupado se minha nova condição não irá agravar a doença de meus sapatos e me condenar a pular a janela de meu quarto descalço e perigando ferir a pele nas lascas soltas da parede, nos cacos perdidos de outrora, nas lembranças de mim, no ideal do que poderia ser um dia e que acabou se perdendo em minha infinita miséria, em minha infindável capacidade de sabotar meus próprios desejos e anular vontades gloriosas.

— Entiendo perfectamente a autores como Salinger o Rulfo que un buen día dejaron la escritura.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho