J. M. Coetzee

A conversa com o sul-africano ganhador do Nobel de Literatura de 2003
Coetzee: “Eu não penso que o romance é o mais efetivo caminho para intervir no processo diário da vida política”
01/11/2003

Eu penso que a África do Sul nos últimos 40 anos tem sido um local onde as pessoas têm vivido duras realidades e débitos morais.

Com as chuvas, várias pontes ficaram interditadas e apenas as passarelas permitem que pedestres cruzem os rios. Os aeroportos ainda estão com os vôos parados e milhares de pessoas acomodam-se pelos cantos do grande barracão, esperando que medidas sejam tomadas pelas autoridades. Olhar o horizonte e o tom escuro das nuvens não alimenta esperanças. Um casal de pombos observa a janela de vidro sem incomodar-se com as crianças e adultos a comentar de modo irônico suas presenças. Nem a chegada do grupo de jovens vestidos como roqueiros de Seattle faz diferença. Os pombos não levantam vôo, saem caminhando pelo saguão, obrigando as pessoas a abrirem caminho. Uma senhora de cabelos presos com um lenço xadrez fala que com um tempo daqueles nem os pássaros se arriscam a voar.

Foi o roqueiro de cabelos pintados de vermelho.

— As bicicletas estão largadas no hall de entrada. A gente as pega e atravessa o parque e chega na rodovia e em meia hora e se hospeda em algum hotel confortável. Eu não vou passar mais uma noite feito bicho, dormindo amontoado.

Se o trovão não tivesse estourado tão dramático e os pombos levantado vôo e pousado na grande trave que sustenta o teto, provavelmente mais pessoas teriam aderido à idéia. De todo modo, sete cruzaram a porta de saída empurrando bicicletas. Quem ficou atrás da porta transparente olhou como se fosse uma grande tolice. A chuva ter dado trégua ajudou a manter alto o ânimo daqueles que decidiram se aventurar.

Eu não penso que o romance é o mais efetivo caminho para intervir no processo diário da vida política. Escrever um romance leva muito tempo. Publicar um romance leva muito tempo. Romances são escritos por tão poucas pessoas. Eles não têm aquele tipo de envolvimento direto com a realidade política que os jornais têm.

Um grande pé de eucalipto, cuja circunferência do tronco media não menos que três metros, amassou seis carros do estacionamento. Os alarmes de dois ainda soavam, mostrando que o acidente acontecera havia pouco tempo. Seis ciclistas olharam para o estrago, um não deu atenção. O Audi dividido em dois, com o motor exposto feito vísceras esfaceladas e o óleo e gasolina derramada ao redor da vaga de estacionamento, foi pouco para esse homem de cabelos brancos e pedaladas seguras.

(o filho de um fazendeiro pastor de ovelhas, James Maxwell Coetzee nasceu em Cape Town em 1940, mas deixou a África do Sul por uma década após os disparos em Sharpeville, em 1960, quando a polícia atirou em manifestantes e matou 70 pessoas. Ele trabalhou por pouco tempo na Inglaterra como programador da IBM e em 1969 recebeu o Phd da Universidade do Texas em literatura. Sua primeira novela — Dusklands — apareceu em 1974.)

Uma família de cachorros — cadela e cinco filhotes — transformou em abrigo o teto arrancado da banca de jornais Com os ciclistas dobrando a esquina, os cachorrinhos correram ver quem se aproximava. Os rabinhos balançavam e eles ganiam anunciando suas presenças famintas. O rosnado da mãe impediu-os de saírem na chuva. Joana, a única mulher do grupo, desceu da bicicleta para ver como estavam. James Maxwell fez o mesmo. A cadela tinha a pata quebrada e a ponta branca do fêmur brilhou na penumbra quando o raio espocou no céu. Joana perguntou a James se ele a ajudaria a apanhar a cadela e levá-la para ser atendida e ficou sem resposta. James abriu sua bolsa e puxou uma embalagem de isopor com dois salgados recheados de queijo branco e dividiu-os e os deu para os filhotes e para a cadela reservou o pedaço maior.

Nossa história é daquelas em que repentinamente um povo ordinário é confrontado com decisões superiores de um modo que povos ordinários não são usualmente confrontados.

Cinco minutos após saírem do aeroporto, a chuva recomeçou e foi preciso parar, pois o vento desequilibrava mesmo o mais experiente dos ciclistas. Apertados sob a marquise de um barracão de depósitos de cargas viram a enxurrada passar carregando três latões de lixo e muitos sacos plásticos. Pela janela quebrada do barracão entrava chuva e ninguém parecia perceber apesar do assovio oco. Joana catou um cobertor velho de uma pilha de sarrafos de madeira e usou-o para embrulhar melhor os cachorrinhos antes de colocá-los de volta à caixa plástica presa à traseira de sua bicicleta. Albert, um dos roqueiros, perguntou se não seria possível reduzir a fratura da cadela usando um pedaço de madeira e os cordões dos sapatos.

— Eu não posso olhar para essa perna que me dá vontade de vomitar.

James Maxwell tirou um lenço azul de sua bolsa e cobriu o osso exposto. A cadela solta um ganido quando o tecido toca a ferida escurecida pelo sangue seco e, com cuidadosas lambidas, limpa o pus que aumenta o fedor de carne pútrida. Albert sai para a chuva e vomita uma boa quantidade de bílis. Quando nada mais resta em seu estômago, de sua boca escapam ruídos forçados. Na parede do depósito há uma estrela de Davi ao redor da qual picharam porcos empalados. A chuva continua e o vento amaina.

— Quem não tem coragem de olhar para si mesmo procura defeitos no alheio. Defeitos no alheio para esquecer os próprios defeitos e a covardia.

Enquanto pedalam, as rodas levantam cortinas de água. Nas janelas das casas sem luz, crianças observam o grupo. Algumas correm chamar seus pais que não acreditam que possa haver seres tão estúpidos. Uma menina morena acena e decepciona-se, pois ninguém percebe, e quando percebem estão fora de seu campo de visão. Na placa que oculta o afastar das bicicletas a propaganda de uma fazenda chamada Paraíso Perdido. Um dos roqueiros grita questionando se tomaram a decisão correta. E antes que haja resposta, Phillip responde:

— A vida é curta demais para ficar esperando que alguém venha nos salvar.

E Phillip sorri crédulo em sua própria afirmação e tira com um gesto heróico o capuz que protege seus longos cabelos e deixa que a chuva os encharque. No horizonte, a escuridão aumenta e raios cortam a paisagem antecipando os altos trovões. Como na antevéspera do grande dilúvio o grupo de ciclistas segue em busca da salvação. Arrependido de ter se desprotegido e deixado que a água penetrasse dentro de sua blusa e trouxesse o frio para sua pele cansada, Phillip cobre novamente os cabelos e pedala com mais força. James Maxwell não se incomoda com o novo ritmo. A cadela tira a cabeça para fora da caixa e procura o motivo do aumento do balanço. Uma gota de chuva acerta seu olho direito e ela volta para a escuridão de sob a coberta. O único filhote que a acompanha tenta mamar nas tetas vazias.

— Acho que vou voltar — Albert repete.

Com o aumento da chuva, a enxurrada cobre o asfalto e as bicicletas passam para as calçadas. Os galhos quebrados, lixo e pedras soltas obrigam o grupo a seguir empurrando suas conduções. Jonas, com seus cabelos vermelhos ocultos dentro da blusa, vai à frente sem olhar para trás, não dando a saber se está arrependido ou se evita mudar a posição da cabeça para evitar alguma lufada repentina de vento que possa carregar seus óculos já nublados. Joana vai logo atrás de James Maxwell falando sozinha, já que não obtém contrapartida a nenhuma de suas perguntas ou comentários.

— Eu acho que sei quem é você. Você é daquelas pessoas solitárias, que vivem para o trabalho. Provavelmente casou e separou e teve um casal de filhos e o seu filho homem morreu em um acidente aos 23 anos. Pelo seu modo apático de olhar é professor e pelo seu silêncio deve temer expressar-se de modo obscuro. Seu pai devia ser funcionário público e largou o emprego por divergências ideológicas. Isso deve ter marcado toda a sua vida, ouvir falar dessa integridade paterna e reconhecer sua correição.

Um carro passa vazio e bate contra um poste derrubando-o cruzado no asfalto. Os fios de luz estendem-se sem faíscas ou reclames e continuam a mover-se após muitos minutos passados; tantas vezes são atingidos por gordas gotas de chuva. O dono do automóvel passa correndo e pergunta aos ciclistas se viram seu carro vermelho e ao saber do acidente cala-se e dá meia volta e anda como se nada mais fizesse sentido. De repente pára e revira os bolsos da jaqueta marrom e tira a carteira e arranca o documento do carro e o joga para o alto e deixa que caia na enxurrada. Phillip pergunta se não será preciso usar o documento para o seguro ou algo assim. O homem olha com raiva como se soubesse todas as conseqüências de seu ato e desse modo seu ato nada mais fosse que um fato passado sem mistérios ocultos. Ao sentar-se no meio-fio a água escura bate em seus pés e canelas e bunda e restos de papel acumulam-se na barreira humana.

— Você é do tipo que ganha prêmios. Se fosse escritor, seria o único escritor vivo a ganhar duas vezes o Booker Prize e o Nobel. Mas pelo seu jeito casmurro jamais iria recebê-los. Do mesmo modo que não fala com jornalistas, você não freqüenta badalações. O mundo é seu escritório e seu único exercício é pedalar sua bicicleta. Faz alguns anos mudou-se de Cape Town para Adelaide, na Austrália. Isso não impediu que mantivesse o hábito de fazer residências em Universidades, como a de Chicago. Trabalha todos os dias, sete dias por semana, como um monge em sua cela, temendo ser ofuscado por pregações de outras crenças, sabendo que todas as crenças exceto a sua apenas repercutem falsidade. O homem nada mais é que desesperança, e por isso precisa mentir do modo mais consistente para não ser obrigado a morrer.

Ao chegarem na estrada principal, encontram dois automóveis acidentados e vazios. Joana dá pela falta de um dos filhotes. Ela tira a coberta velha de sobre a caixa e conta duas vezes os cachorrinhos. Olha para o grupo e ninguém sabe dizer o que aconteceu. Tira o gorro que protege sua cabeça e limpa a testa e olha para trás e corre para o meio do asfalto e dá alguns passos na direção de onde vieram e parece quase correr, mas não corre, volta a juntar-se ao grupo e puxa as pontas do cobertor para dentro da caixa de um modo que os filhotes não possam escapar. Um billboard anuncia que no mês das chuvas a Fazenda Paraíso Perdido oferece condições para que os problemas do mundo sejam esquecidos e psicólogos e massoterapeutas garantem momentos de relaxamento físico e espiritual. Um homem com a testa sangrando permanece apoiado a uma pilastra de cimento e ferro e evita olhar para aqueles que passam.

Uma fila de automóveis e caminhões espera pacientemente a estrada ser liberada. A passagem do grupo de ciclistas chama a atenção de passageiros e motoristas e muitos abrem suas janelas e acenam e buzinam como se quisessem ir juntos. James Maxwell vai à frente escolhendo as passagens mais amplas, evitando acidentes com retrovisores. Uma família de cinco pessoas —marido, mulher e dois filhos e avó — caminha pelo acostamento. A velha vai carregada nos braços do filho e seus braços escorrem ao lado do corpo e a nora segue atrás segurando nas mãos das crianças de sete e cinco anos. Albert pára e pergunta se é possível ajudar e cala-se ao perceber que no rosto do homem molhado de chuva as lágrimas não se confundem com as gotas que caem do céu. Largando a bicicleta tira a velha dos braços do filho e o deixa ser amparado pela esposa. O corpo morto não pesa e mesmo a umidade crescente não torna a tarefa mais custosa.

Dois policiais impedem os automóveis de seguirem adiante. Com as motos estacionadas no começo da curva bloqueiam o asfalto e explicam a situação:

— O rio está ameaçando derrubar a ponte. Nem automóveis, nem pedestres podem passar.

Joana aproxima-se e diz que é uma emergência, e mostra os filhotes e pede que James Maxwell faça o mesmo e mostre a perna da cadela. James levanta o cobertor e a cadela está com o corpo rígido e o filhote continua tentando mamar nas tetas frias. Joana se cala e empurra a bicicleta até a cobertura de um posto de gasolina. Ao lado da bomba de combustível senta e chora. Pouco depois chega Albert carregando a mulher velha e morta. Seus cabelos molhados cobrem o rosto pálido e é preciso que um dos guardas repita três vezes que ele deve deixá-la na mesa do restaurante. O filho nada diz enquanto sua mulher o abraça e os filhos aproximam-se da avó e tocam o vestido amarelo com grandes flores vermelhas e observam como a água escorre das pontas do tecido pespontado até o chão imundo.

James Maxwell deixa a bicicleta apoiada na parede do restaurante e vai sob a chuva até a beira do rio. As águas barrentas carregam troncos, restos de casas, roupas, lixo, tudo o que estava fixado e deixou de estar. O grupo de ciclistas aproxima-se.

Eu recebi a notícia em um telefonema de Estocolmo às 6 da manhã. Foi uma completa surpresa — eu nem ao menos sabia que o anúncio ainda estava pendente.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho