Günter Grass

A conversa com o escritor que transforma esboços, desenhos e figuras em ficção
Günter Grass: “Os escritores fazem respiração artificial nas orelhas dos leitores”
01/02/2004

— É necessário retroceder para avançar, como os caranguejos.

O café está esfriando. O café está esfriando e ainda assim sinto seu cheiro. Um cheiro amargo e sem doçura alguma. Günter Grass está dando autógrafos para a garçonete e um cliente.

— Não pensa em escrever suas memórias, como Gabriel García Márquez?

— Não. Não quero me dedicar a um gênero literário em que desde o começo é preciso mentir.

A maneira como seu bigode grisalho move-se acompanhando as palavras gentis me faz rir.

— Uma relação de intercâmbio estável e contínua entre a palavra e o traço caracterizam minha criatividade. A primeira instância deste tipo de convivência é minha poesia. Acreditaria em mim se eu dissesse que muitos de meus poemas têm origem em pinturas e desenhos? Muitas vezes transcrevi o primeiro rascunho de um poema em pinturas que, mais tarde, gradualmente, adaptaram suas formas às palavras. Daí em diante, a poesia e a pintura se reforçaram e se enriqueceram mutuamente, e convivem lado a lado com meus livros de poemas. Também aconteceu o contrário: muitas vezes comecei com palavras e logo as palavras se fundiram com minhas pinturas.

Mas eu não rio. Não tenho motivos.

— Esta aliança de palavras e arte também é visível em minha prosa, em romances como A ratazana e Um campo vasto, em memórias como Meu século. Quando escrevo, o manuscrito não se limita às palavras. Rompo o fluxo com esboços, desenhos, figuras. De fato, visualizo a constelação de fatos e personagens em meus romances com essas imagens. Esses esboços e pinturas, com o tempo, libertam-se das páginas borradas de palavras. Depois de trabalhosas intervenções, convertem-se em litografias, aquarelas, pinturas e, em alguns casos, até esculturas. De modo que a relação entre artista e escritor funciona em dois níveis: em primeiro lugar, no nível da interdependência e do enriquecimento mútuo e, a seguir, no nível da autonomia artística.

Sentado em uma cadeira desconfortável no café Van Gogh, em Amsterdã, o que sinto é dor de cabeça. Desde ontem estou com enxaqueca e isso me tira o bom humor. Nem sei por que vim. Devia ter ficado no quarto, assistindo televisão e comendo balas. Não que eu goste de doces, mas

Tom e Jerry nada dizem e mesmo assim eu entendo

também não gosto de televisão.

Pantera cor-de-rosa e o Inspetor são mudos. Carlitos perdeu a língua por obscenidades. Buster Keaton teve a dele decepada por um trator-esteira.

— Os escritores fazem respiração artificial nas orelhas dos leitores, ajudando-os a sobreviver.

O dia amanheceu nublado. Durante o inverno as correntes do mar do Norte são mais irascíveis. Se bem que ainda não vi neve. Apenas o frio. Frio úmido que me faz doer os ossos. Imagino que quando estiver velho serei daqueles que muito reclamam. Que se recusam a sair do quarto, pois uma corrente de ar rebelde pode estar à minha espera,

Pantera cor-de-rosa e o Inspetor são mudos quanto ao relacionamento

pronto a ativar uma velha cicatriz, um doloroso reumatismo, ou apenas alimentar a gripe que está incubada em meu peito.

Pneumococos

Naturalmente vestirei ceroulas. Vermelhas, como as do Super-Pateta. Dos personagens de Disney sempre foi o meu preferido. A estupidez conjugada com o azar e a boa índole.

A virulência é fruto do raciocínio. Pessoas de pouca inteligência desconhecem a verdadeira maldade, Mancha-Negra.

Quando criança procurava em meu quintal o pé de superamendoim. Nunca achei. Durante a adolescência, por vezes, acreditava ter encontrado o produto transubstanciado.

Maconha, cocaína, LSD, cogumelos, poção mágica …

Gostava de deitar em parques, praças, locais vazios e desaparecer de mim. Sempre conseguia. Mesmo tomando Melhoral infantil eu conseguia sumir de mim. Mas nunca encontrei meu alter ego.

Super-Pateta, o miserável.

Voar, apenas sentado em um desconfortável avião. Muitos.

Aerolínhas patopolense tem o prazer de anunciar

Aeroflot, apesar de russa, a companhia tinha bancos espaçosos. Não ligando para o som de peças soltando, era bom. Tão bom como o trem que me trouxe de Lisboa. Eu estou feliz.

— Quando era jovem me deram uma máquina de escrever Olivetti, que era a melhor do momento, e eu sigo sendo fiel a ela. Escrevo com quatro dedos e cometo muitas falhas, mas para mim seria impossível escrever com computador, é limpo demais, enganoso. É um processo lento, artificialmente lento.

Conhecer Günter Grass sempre foi um sonho. (Primeiro assistia ao O tambor, depois li o livro). Algo como encontrar o Gilberto, o sobrinho inteligente do Pateta. Nas revistas, os moleques são mais inteligentes que os adultos. As crianças são as consumidoras das revistas. Elas querem ser os heróis. E os velhos, quando são inteligentes, são mesquinhos, tolos, gananciosos, ladrões, oportunistas, carregando nas penas todos os vícios possíveis (exceto os libidinosos). Agora apesar de Günter,

— Não conheço as considerações da Academia de Estocolmo, mas a verdade é que não se pode compreender meu trabalho separando-o de meu compromisso político. Talvez por isso a Academia sueca tenha citado expressamente os aspectos políticos de minha obra. É justo que assim seja.

estou querendo levantar e ir embora. Desaparecer nas ruas de Amsterdã e me descobrir confortável em mim. (Um dia foi isso que eu quis da literatura). Sem a sombra das árvores — todas nuas — sentir o sol cálido que vagueia além das nuvens. Suspirar a saudade do que sei ali estar, mas não alcanço.

Eu sei…, Clarabela já não é minha, nunca foi

A Garçonete sorri

— Considero esse homem um perigo, uma ameaça para a paz mundial. Me lembra um desses personagens de obras históricas de Shakespeare, cuja única ambição talvez seja ficar diante de seu pai, o velho e defunto rei, e dizer: “Veja, completei tua tarefa.” Está decidido a levar a primeira guerra do Golfo à seu término lançando outras. Bush filho está inspirado por razões privadas e familiares; animam-no compulsões hereditárias. Os interesses econômicos da família Bush também estão desempenhando um papel. A família está implicada profundamente no negócio de petróleo. Interesses políticos e aspirações empresariais, portanto, entrelaçam-se finalmente em seu grito de guerra contra o Iraque.

e vai atender outro freguês, que têm as mãos trêmulas e os olhos injetados. Ela sorri enquanto passa as grandes mãos de Valquíria pela nuca pelada.

É o pai, hoje, o pai de outro que conta, Huguinho, Zezinho e Luisinho.

E curva-se expondo as ancas e beija a boca sem dentes por longos dez segundos contados nos pulsares das veias de minha cabeça. Sozinho sem pai nem mãe. Disso eu entendo bem, bem mais que gostaria. Durante minha vida, várias vezes senti o mesmo. A dor latejando em minhas têmporas, dizendo ali estar como um castigo. Um cruel castigo, sem moral, um presente de meu corpo abandonado em nome de algumas idéias. E nenhuma original. Nenhuma que eu pudesse contar com orgulho, afirmando ali estar minha iluminação, meu satori, meu insight, aquilo que me tornaria único em meu tempo e apesar de jamais reconhecido pelo grande público, satisfeito.

A pobreza não é nada perto da certeza de ter vivido uma vida medíocre, Pato Donald.

Sim, o velho acende o cigarro de haxixe e prende o ar mantendo o peito inflado e um sorriso nos lábios, esperando o retorno da garçonete. Ela, que recostada no balcão espera que o bartender lhe passe a cerveja, sabe que o velho a observa, e por isso se dá ao luxo de manter-se imóvel, sem reação, como uma estátua de madame Tussot que deveria caminhar não fosse o coração de cera.

Eu sei, o amor foi verdade, um dia. Hoje apenas as vacas e os frangos. Os patos me esqueceram, vovó Donalda.

E logo o sorriso transforma-se em nirvana, um estado de profunda alienação que faz do velho um anjo comedido, que gargalha de si para si, e nunca se perde das horas, pois não tarda a garçonete irá largar o batente e acompanha-lo até o pequeno apartamento e esquentar a água e dar-lhe banho e contar como foi seu dia apesar de terem estado juntos e rirem que ele não lembra tanta foi a maconha e o haxixe e a cerveja e a morfina e as anfetaminas e a heroína.

Heroína, todas elas.

Se a vida fosse literatura, seria assim, e não o copo caindo e espatifando-se e a garçonete deixando de rir e o bartender saindo de detrás do balcão e Zé Carioca, você lembra? dedos em riste, gritos e mãos no colarinho e mesas e cadeiras tombando e o velho sendo jogado na rua. E Günter permanece atento ao outro lado da casa, a uma parede pintada com motivos psicodélicos. Janis Joplin e Jimi Hendrix valsando enamorados em uma floresta de Cannabis.

Onde está o Super-Pateta que não salva os fracos e oprimidos?

Com tudo mais calmo, não em silêncio, pois ainda toca alto Jerry Garcia e o Gratefull Dead, ergo os braços e peço o cardápio e sigo as linhas cuidando para que Günter não perceba em que página estou. Mentindo que vou ao banheiro,

— Eu nunca disse eu sou um escritor político. Eu sou confrontado com diversas realidades, e essas realidades são, mais ou menos, misturadas com política, ou resultado de política. Se você tem uma história acontecendo na Alemanha, a princípio você pode pensar que se trata de uma história particular, mas você está conectado, e muito, com os acontecimentos da Alemanha do passado. Não apenas do passado, mas a reação do presente ao passado. Eu sou um ser político, é claro, como um cidadão vivendo em seu país, eu espero aprender alguma coisa.

vou ao banheiro e sento na privada com os cotovelos apoiados nas coxas e as palmas das mãos sustentando meu queixo. (Até os 20 anos fazia isso sempre). Do bolso traseiro da calça tiro uma folha de papel sulfite dobrada em quatro e leio algumas anotações. Minha bíblia em rabiscos coloridos. Feitos enquanto esperava o táxi, engordada enquanto acompanhava o canal, corrigidos enquanto acenava para os barcos, lacerada mais e mais nos tombos que caí sem motivo. E Günter me ajudou a levantar. Perguntou se eu estava bem e pareceu reconhecer meu rosto, ou meus olhos injetados, ou minhas mãos trêmulas, meus joelhos moles, meu sorriso surpreso. (Um café é tudo o que eu preciso). Olho para os pés descalços. É estranho caminhar prestando atenção nos próprios pés, nos dedos, no modo como todo meu peso desaba sobre aquelas pequenas articulações e ainda assim caminho, piso o asfalto, formigas tentam fugir — não de mim, do calor que transforma o restolho de petróleo em uma chapa quente. Olho para os pés. Aqueles pequenos corpos vão acumulando-se na pele da sola tornando a sensação da pisada algo mais incômodo. Parece que caminho sobre galhos de minúsculas árvores ressequidas Mas não são árvores, nem secas, são corpos móveis que apesar de divididos continuam a estertorar. Olho para os pés descalços, indo para a calçada. Milhares de cadáveres me acompanham. O vento bate em minhas costas sem que por isso também esteja em minhas pernas. Não entendo porque ainda assim as formigas voam. Apesar de não haver vento abaixo de meus quadris, as formigas saltam do chão como se fossem grilos, e flutuam no ar feito gaivotas. Antes de meus dedos sentirem o cimento da calçada, estou cercado de outros corpos. Corpos negros. Olho para meus pés descalços e protejo meus olhos com as mãos espalmadas. Várias formigas pousam entre meus cabelos e lutam para escapar da teia sem rainha. Um jovem leão não me dá valor o bastante, que eu mereça um olhar seu. Parece que estou caindo em um precipício infinito. O inferno deve ser assim. A eterna queda, consciente. O inferno não pode ser esta vida. Uma eterna queda, coberta pela fantasia de coexistir. O inferno não se esconde sob máscaras agradáveis.

— Uma vez mais eu abro A ratazana no quinto capítulo, no qual o rato de laboratório, representando milhões de outros animais de laboratório usados para pesquisa, vence o prêmio Nobel, e eu sou lembrado quão poucos prêmios têm sido dados para projetos que buscam banir do mundo esse horror da humanidade: a fome.

Günter sabe porque está interessado no leão.

— Os cidadãos são passivos, e isso permite que aqueles que dominam o mundo façam o que querem com eles.

Toda a sua atenção está no leão. O que sou eu perto daquele belo animal. Mesmo velho e preso em uma pequena ilha artificial, cercado por um fosso de concreto, ainda guarda o que perdi com a idade (que coisa estúpida de se dizer: algo que perdi com a idade. Isto eu perdi com a idade. A vergonha na cara) e não tenho coragem de recuperar. E é isso que interessa a Günter. É isso que permanece vivo naqueles que se tornam grandes. Jamais se entregam, (continuo estúpido. Daqui a pouco vou citar Paulo Coelho, falar em senda pessoal, algo que está destinado apenas a mim e que ninguém, nem nada poderá me roubar) jamais esquecem que a vida pode ser uma eterna ascendente. Mesmo que o corpo decline, a pele seque, os músculos tornem-se frágeis, ainda se pode construir para além (nem eu agüento mais. Vou tomar café. Deixa que o computador continue com este texto. Não acho bacana enganar meus leitores, mas é preciso. Antes de me entregar à pieguice me escondo na tecnologia) deste banheiro decadente, coberto de cinzas, cheirando à maconha e perdido entre seringas. Como Chet Baker, meu amigo, sem encontrar a chave nos bolsos decide escalar as paredes. Caindo da janela do apartamento, grita o nome da garçonete implorando alívio. E alguém o ouve e o salva. No último instante o carrega para longe. Longe de tudo e de todos. Para o paraíso no qual resistem todos eles. Jerry Garcia, Billie Hollyday, Janis, Jimi, Dexter Gordon, Elis, Charles, todos os viciados em superamendoim. Mas não tenho a mesma sorte. Acordo no hospital sem ter ao menos anotado o telefone de Günter. Tudo bem.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho