Gato e rato

Companhia das Letra relança "Maus", de Art Spiegelman, primeira história em quadrinhos a ganhar um Pulitzer, em 1992
01/07/2005

(Ok.)

Creio que um escritor norte-americano de ficção científica, Theodore Sturgeon, disse que 97% de tudo o que se escreve são uma porcaria, mas os 3% restantes talvez sejam arte. É provável que uma pequena porcentagem da produção total seja interessante para mim e para os demais.

Esse pensamento passa pela sua e pela minha cabeça, caro leitor. E não discrimino a esquizofrenia que o aflige antes de concordar. Em determinados momentos você é Fernando Monteiro, um garboso autor de romances, morador de nossa Veneza brasileira; em outros é Ana Letícia, jornalista e recém-casada, coberta de descalabros e sonâmbula de preocupação para com a fidelidade de sua cara-metade; em dias de sol pode ser Fausto Wolff, irado escritor que, sabendo-se irado e temido, gasta suas tardes engendrando a caipirinha perfeita; em noites de lua cheia apresenta-se como Marta Suplicy, sexóloga envolvida com frígidos eleitores, de votos semi-eretos, inseguros mas capazes de propiciar o gozo eleitoral de candidatos promíscuos; e tantos outros poderiam ser citados que logo perder-me-ia em próclises, mesóclises e ênclises emocionais. Por isso, ajustado que estamos quanto à normalidade de quem me lê, continuo a lançar tinta sobre papel, pixels sobre a tela.

(Ok. Vamos a você, Art Spiegelman, e sobre como pela primeira vez um quadrinista ganhou um Pulitzer, no caso, o de 1992. E aqui está a pergunta: como isso aconteceu? Em que ponto da história da crítica literária passamos a aceitar o casamento de palavras e figuras como sendo literatura de alto nível?)

Acomodado em outro local que não a cadeira da cozinha, Wilson calça os sapatos de couro marrom e levanta-se disposto a caminhar até o Soho nova-iorquino. O esforço de amarrar os cadarços causa ataques apopléticos nos músculos de suas coxas, que ele massageia com a ponta dos dedos, escrevendo no jeans um título de romance não acabado.

— A perfeição não existe.

— Não?

(Pode ser uma solução radical dos planos narrativos. Se assim for, tudo bem. Seguimos ao paroxismo os conselhos de Gertrude Stein ao jovem Hemingway. Mais que jornalísticos e telegráficos, tornamo-nos literatos de palavras e imagens. O sonho concretista!)

Estamos interessados em demonstrar que as histórias em quadrinhos podem ser uma forma de arte forte e pessoal. Não nos interessa dedicarmo-nos a fazer um entretenimento fácil que alguém leia uma vez e depois esqueça para sempre; queremos histórias que sejam como uma bofetada na cara, ou melhor, como uma trombada.

Dezessete vezes Wilson gira a chave e gira de volta e abre a porta e fecha a porta e gira a chave e gira de volta e abre a porta e fecha a porta, até que completa o número mágico e então se põe a caminhar. Metro a metro, passo a passo, cruza com cabeças cobertas de cabelos e costas forradas de pele e pernas enfeitadas de pêlos e pés delimitados por dedos e calcâneos e plexos a dividir seios pontudos, caídos, relaxados, vertidos, sombreados ou a fazer sombra a barrigas protuberantes, côncavas, convexas, oblíquas, largas, afinadas, convencidas, afamadas, solitárias, como solitários estão os escrotos e os lábios vaginais amassados entre coxas grossas e finas, brancas, pálidas, morenas, mulatas, negras, lambidas e chupadas e sujas de gordura acumuladas e secas tal qual o ar que, ao respirar fundo, Wilson faz provocar a renite e um conseqüente espirro que chama a atenção e como resposta tem a contrariedades de gente que nunca viu.

(Juro a vocês que é pura sorte.)

No livro Maus os judeus estão representados como ratos, os nazis como gatos, os polacos como porcos e os americanos como cachorros.

Apesar dos reclames, Wilson deixa para trás a podridão de sua vida interior. Milhões de germes e vírus e bactérias e tantos outros seres vivos, como vivo está você, leitor, a pensar de que vale continuar a leitura deste texto se ninguém ainda morreu, ou pelo menos nenhuma indicação foi dada a respeito. Negando o empresário de Truman Capote, afirmo a vocês, Rogérios Pereiras, que repetições constantes trazem a sensação de familiaridade. E bem-feitas, em menos de um capítulo transformam um personagem de tinta e papel em alguém próximo, querido, amado, odiado, a ponto de fazer verter lágrimas de olhos duros como os de Paulo Polzonoff ou fazer nascer sorrisos em rostos esculpidos como os de Rubem Fonseca.

— Que horas são, por favor?

— Sete e meia. Se você correr, consegue pegar o metrô. Se bem que não sei se é uma opção segura. Veja o que anda acontecendo pelo mundo. Não bastassem os incêndios, colisões, descarrilamentos, suicídios, falta de energia, flatulências, desodorantes de má qualidade, disenterias, agora temos o terrorismo.

— Não sei se tenho mais medo de um atentado suicida ou de saber que viverei eternamente com medo.

— Me parece mais uma frase de efeito do que algo que tire seu sono, meu rapaz. Viver com medo? Faz me rir. Estou casado desde meus vinte e três anos. Tenho dois filhos e um deles tem síndrome de Down. Odeio eufemismos tipo crianças especiais. Melvin não é especial, nem para bem, nem para o mal. Ele é apenas Melvin, meu filho. Acredite em mim, viver com medo é a realidade, não uma possibilidade que se escolha.

Maus é baseado em entrevistas que mantive com meu pai, um judeu polaco como minha mãe. Ambos viveram na Europa de Hitler, Auschwitz, Dachau e depois da guerra vieram para a América. É a história de meu pai e de minha mãe, e da boa e má relação que tive com eles.

Na esquina da 34, um bull terrier morde o pára-lamas de um fusca. Com os dentes brancos aperta a peça de metal como se ali estivesse o osso sagrado, o canil da aliança, a coleira dourada. Wilson atravessa a rua de cabeça baixa e corpo arcado de anoitecer enquanto o cachorro segue sua sina furibunda até que uma bola vermelha voa por sobre o muro da casa vitoriana e toca o meio-fio. Meio imersa pela água salobra de uma chuva dois dias caída, move-se sobre o eixo como um planeta abandonado. Flutuando ao léu, reflete a luz do poste, a girar até que os dentes, de uma bocada, atravessam a crosta e transformam-na em algo vazio, não mais uma bola. Um joguete talvez divertido, pelo menos para o pára-lamas do fusca a afastar-se na direção contrária à de Wilson e de seus conflitos existenciais, e seus também, leitor, que realmente não pode optar por seguir o casal de 17 e 21 anos, cheios de malas e planos, a fugir de famílias incapazes de entender o que é o amor, o absoluto supremo, a grande divindade, a terra da remissão.

— Você me ama?

Se trata de minha vida. É a história de minha vida. Foi muito difícil trabalhar em Maus, tomou muito de mim; por vezes precisei tirar férias. Era importante que não ficasse melodramática. Os desenhos estão a serviço da história.

— Você me ama?

Wilson apaga o cigarro na ponta torcida do corrimão e desce as escadas acompanhando a multidão. Um guarda de olhos vermelhos boceja, como se o bocejo fosse a inspiração para o autor bocejar em um pensamento tosco e renitente: vale a pena a literatura? Sim, leitor, não apenas você, Marçal Aquino e Fábio Campana têm o direito de se colocar na posição de deuses do futuro e do passado. O autor, como o grande cartógrafo desta página do Rascunho, precisa definir o destino de Wilson.

(Ok, Art, seu livro À sombra das torres ausentes não se compara a Maus, mas é interessante. Não porque recebeu críticas pesadas daqueles compatriotas seus que julgam serem as crises e tragédias desculpas para uma monumental ação benevolente. Como se fosse possível compensar a tristeza com a compaixão. Maniqueísmos estúpidos, enfim. Quer dizer, talvez fosse melhor dizer que a premiação de Maus aconteceu tanto pela sua qualidade como pela falta de peças literárias de peso naquele malfadado 1992. Isso resolveria muita controvérsia desnecessária.)

Maus foi publicado em forma de livro por uma grande editora de Nova York (que também publica os livros de Joyce), como se se tratasse de um trabalho importante de ficção. Não é usual nos Estados Unidos que tiras cômicas sejam editadas em forma de livros, nem para crianças, nem para gente de determinado culto, nem para aqueles que têm interesses mais amplos.

Um tanto desiludido, um tanto cansado, adianto que Wilson decidiu morrer saltando nos trilhos do metrô. Caso se salve da eletrocução, espera ser atropelado pelas rodas de metal, deixando para o caixão ossos esmagados, carne triturada e dois olhos arregalados em um rosto cheio de arrependimentos. Para melhorar a caracterização do momento, digamos que a idéia brotou quando conversava com o homem de cabelos ralos e bengala de madeira. Ao encarar aqueles olhos de tons azulados, viu a si mesmo envelhecido, sem filhos, sem mulher, sem família, e pior, sem obra de valor, sentado na mesma casa, bebendo o mesmo uísque, em frente à tevê desligada, sabendo-se fracassado por ter trocado o pára-lamas do primeiro amor pela Terra esvaziada de forma e sentido e valor.

As histórias em quadrinhos são um meio e esse meio pode ser usado para realizar propaganda, ou para vender algo, ou com fins pornográficos. E também pode ser usado artisticamente, do mesmo modo que é factível que os três primeiros caminhos conduzam à arte.

Me diga, Raduam Nassar, me responda com sinceridade e firmeza. Você vai permitir que Wilson siga até a cabine de bilhetes, tire do bolso a carteira um tanto estropiada e pague a passagem para o trem que jamais tomará? Não seria melhor que fosse ele no fusca, aos 21 anos, com a mão da namorada entre suas coxas, rindo da ladainha de pais assustados, clamando a desgraça por vir, a velhice cheia de medo, dois filhos, um deles com síndrome de Down?

— Pode guardar o troco.

— Não posso. É contra as regras da empresa.

Conys, Coelhos, Tezzas, nesta pergunta besta está a desculpa para que um homem indeciso escape da morte e continue uma existência sem grandes possibilidades. Ou sem nenhuma, deveria dizer. Daqui a mil anos, Wilson terá como herdeiro um outro Wilson, que seguindo o padrão de seus antepassados, teve uma existência tosca e sem brilho, com o único detalhe de ter mantido a linhagem por meio de um casal de filhos, sendo um deles portador de síndrome de Down. A esposa, em noites de sopa e pão torrado, conta a aventura maior de sua vida, ter fugido com o marido para uma terra distante, longe da hipocrisia paterna, de pessoas tristes e miseráveis que não compreendiam a grandeza do amor de dois jovens. E entre lágrimas secas, ela repete que a mediocridade cotidiana da vida transformou a terra idílica em planície entediada e murcha. Mas acrescenta que apesar de todas as desgraças comuns a todas as vidas, foi suportável continuar graças à lembrança do breve inspiro de amor. Amor que morreu bruscamente, entre uma troca de fraldas e uma noite de prazer incompleto.

Quadrinhos são uma forma de arte narrativa. Uma forma que combina duas outras formas de expressão: palavras e figuras. Como outros meios, tem “valor neutro”. Há muitas novelas e pinturas péssimas, e zilhões de péssimos quadrinhos. Mas nas mãos de alguém que sabe como usar o meio, grandes coisas acontecem. Bons quadrinhos causam marcas que duram para sempre.

(Ser ilustrador-colaborador da revista The New Yorker ajudou a tornar Maus o que é. Se bem que você, Art, tem um passado. Como a história de quatro páginas, escrita me 1972, narrando o suicídio de sua mãe. Ou a revista Raw, principal veículo de divulgação de quadrinhos de vanguarda, da qual foi editor ao lado de sua mulher, Fançoise Mouly. Como ela está? Para um homem nascido em 1948, em Estocolmo, muito aconteceu. Ainda mais concentrado em uma narração que oculta os momentos de cansaço, melancolia, fraqueza.)

Cruzando a roleta, amigos da ABL, temos Wilson com o coração disparado, contendo as lágrimas que, ironia das ironias, nunca quiseram vir em momentos de verdadeira tristeza. Temos Wilson tomando consciência de que a morte de amigos e parentes, os desacertos sociais, profissionais, amorosos, as infelicidades pelas quais passou em sua vida pobre, nenhuma delas realmente o comoveu. Temos Wilson prestes a morrer-se, pronto a apagar a existência do todo escrito, assumindo o vazio do papel.

— Que horas são?

— Sete e quarenta e quatro. Mais um minuto chega o trem.

Então, o que será dele?

Maus
Art Spiegelman
Companhia das Letras
296 pags.
Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho