Encontrando Vargas Llosa

Escritor peruano “fala”, e muito, sobre a importância da literatura em nossas vidas
Mario Vargas Llosa procura abarcar em suas narrativas o máximo possível de assuntos.
01/07/2002

O saguão do hotel Oriente, em Lisboa, não é nada luxuoso, pelo contrário. A má administração e a incapacidade de velhos lisboetas de se permitirem gastos com decoração transformaram o que um dia foi um local freqüentado pelos abastados transmontanos em um repositório de turistas pés-rapados.

Estou terminando meu café da manhã, uma xícara de chá, quando Marcel bate em meu ombro. Trocamos um abraço.

— Senti saudades suas, amigo.

Marcel pergunta o porquê da miséria de minha refeição.

— Regime, brinco. Quer me acompanhar?

— Ah, eu preciso de algo mais consistente.

Na mercearia Continental, outro repositório de tempos literários antigos, ele toma copos de café com leite, acompanhado de broinhas de manteiga. Entre um pedido e outro, faz grande cerimônia ao sacar do bolso de seu casaco amarelo uma cópia do jornal El Pais.

— Veja no que se transforma o velho mundo.

Leio rapidamente a matéria anunciando, em tons fúnebres, que 50% da população espanhola não compra nem ao menos um livro por ano. Ele ri.

— E tu reclamas do Brasil… neste mundico miserável, eu, um amante ardoroso da literatura, só não perdi minha mulher porque, apesar de ela odiar os livros, adora meu dinheiro.

E, enquanto lhe é servida a torta de atum, me garante:

— Mario vai gostar de você. Ele ainda lembra como Cortázar foi generoso ao ajudá-lo quando ainda era um aspirante a novelista. Só evite falar de política.

— Para mim, as novelas são representações da vida em seu conjunto; quer dizer, abarcam uma gama de experiências e não podem se concentrar no puramente político sem parecerem falsas e carentes de vida.

O táxi segue lento por ruas insoladas de passado e futuro. Roncando, meu estômago segue invejando a voracidade com que Marcel come as broinhas reservadas para Llosa. Abro os vidros espantando um pouco do cheiro delicioso. Ajudaria minha angústia Marcel não recitar seus poemas de boca cheia.

— Oh, Lisboa querida! Terra de ardores juvenis, quem diria? Direis: será realmente plena tua pujança? Cala a boca, jactância. Se fosses reis, Sebastião serias, porém, sendo incrédulo, apenas espera que o Mercado Comum Europeu lhe dê crédito. O que achas?

No tempo de meu silêncio, o motorista aplaude exultante. Dou graças. Apesar de perder a última broinha para o condutor, pelo menos não preciso dizer exatamente o que penso desse poema sabe-se-lá-deus-o-quê.

— Cultivei a poesia quando jovem e, para minha vergonha, cheguei a publicá-las. Mas deixei de escrevê-las quando me dei conta do que disse Borges: “em poesia só se admite a excelência”.

Marcel atrasa ainda mais nosso caminho pedindo ao motorista que contorne a prefeitura e tome a rua direita.

— Faz muitos anos que não escrevo contos. Não descarto fazê-los novamente no futuro. É um gênero que me agrada muito. É tão intenso e concentrado quanto a poesia.

Deixamos o táxi próximo ao mercado público

(— Preciso comprar um presente para Mario.)

e seguimos a pé.

— Escrevo sentado… escrevo primeiro à mão a primeira versão de todas as coisas que escrevo… bom, salvo os artigos, textos muito breves que faço diretamente no computador. Mas, qualquer coisa de mais fôlego sempre escrevo primeiro à mão, em cadernos, e logo vou passando ao computador, o que me ajuda muito a corrigir. E refaço, rescrevo muito, e fazer isso no computador ajuda muito… mas a primeira versão é sempre… para mim é manuscrita, porque eu me acostumei a escrever assim e esse ritmo, que é o ritmo da mão, na realidade, é o que me convém como escritor.

— Que tal se eu levasse um charuto?, digo ao passarmos em frente a uma bela tabacaria.

Marcel balança a cabeça como a afastar de si moscas insistentes.

— Não é boa idéia. Mario não fuma e, se bebe, bebe pouco. Nunca se interessou por esses vícios. É um esportista que se exercita todos os dias. Se bem que, aos 65 anos, acho uma temeridade.

Estranho, só agora noto como a barriga de Marcel está protuberante e molenga. Isso explica seu passo gingado, que antes servia para disfarçar uma pequena diferença de comprimento entre a perna direita e a esquerda, e, hoje, ajuda a movimentar tamanhas banhas.

— Tenho a obrigação moral de cuidar de todos os meus personagens. E a todos dou o tratamento mais objetivo possível. É muito importante para não cair na caricatura, na literatura de propaganda. Nisso eu sou flaubertiano. O escritor deve ser, em uma novela, como deus no universo: estar em todas as partes e não ser visível em nenhuma. Para que uma novela convença o leitor, este não deve sentir que os personagens estão sendo movidos por fios, que um autor os manipula para promover determinadas idéias. Eu tenho minhas idéias e as defendo em meus artigos e ensaios, mas, ao escrever uma novela faço um esforço de despersonalização da história, porque depende disso para que uma novela tenha vida própria.

— Patrícia, a esposa. Ela é quem agenda as viagens, faz os contatos, cuida das finanças, administra as casas em Barcelona e em Lima. Ela permite que Mario viva para a literatura. Estão casados há mais de trinta anos.

— A paixão é exclusivista, não admite ser compartilhada. Quando se vive o ponto nevrálgico da paixão, não creio que alguém esteja em boa disposição para criar. Há uma frase que é um pouco grosseira em uma carta de Flaubert a um amigo seu, quando escrevia Madame Bovary. Seu amigo lhe pede conselhos, e ele lhe diz: olhe, cuidado com as mulheres, com o sexo; tens que concentrar tua paixão no que fazes; em todo caso, elas tiram de você o seu tinteiro. Isso porque a literatura é uma paixão. Não resulta apenas do conhecimento, do domínio de uma técnica; sai do ventre, sai do interior dos instintos. É como o amor. Por detrás de uma criação existe essa paixão vivida em todos os níveis.

Conseguimos um outro táxi sem dificuldade. Sendo o motorista novo na praça, Marcel vai a seu lado dando as indicações do caminho. Sinto-me culpado por ficar satisfeito com tamanha comodidade.

— Estamos atrasados, mas fica calmo. Minha esposa está com Mário, isso o impede de fugir de nosso compromisso.

— Não posso dizer qual, mas vivi uma paixão amorosa em que cheguei a sentir, pela única vez em minha vida, que a vida não tinha sentido. Estive disposto a fazer imbecilidades: uma, suicidar-me, e outra, alistar-me na Legião Estrangeira. Cheguei a passar em frente ao escritório de inscrição. De todo modo, é um tema que reservo para minha velhice, quando já não tenha tanta imaginação e tenha que viver de minhas lembranças. Essa é a vantagem dos escritores, quando a imaginação se apaga, temos a memória, que é uma arca repleta de tesouros os quais podemos recorrer no momento preciso.

Ao contornar a rua da matriz, Marcel pede aos gritos que o carro pare. Feito isso, desce desajeitado e, de um vendedor ambulante, compra cocadas e paçocas e balas de goma. Volta para seu banco feliz como uma criança. Eu mordo a língua.

— A literatura trabalha com muito mais liberdade sem essa limitação que é o respeito à verdade histórica. A verdade da literatura é de outra índole. Tolstói escreveu Guerra e paz e foi desrespeitoso com a verdade sobre as guerras napoleônicas, sobre a personalidade dos generais e, mesmo assim, escreveu uma obra mestra absoluta, que nos diz mais sobre a guerra e o poder, sobre como reverbera na mulher e no homem as atrocidades das conquistas. Esse é o poder da literatura, e seu tema é um pretexto para falar da condição humana.

Após Marcel pagar a corrida e repetir três vezes que Mario Vargas Llosa o espera, vamos até o luxuoso saguão do hotel. O atendente nos informa que, junto com uma senhora conhecida sua,

— o senhor Vargas Llosa saiu faz alguns minutos, mas avisou que não demora. Se quiserem, os senhores podem esperar junto ao bar.

Marcel vira-se para mim e, dois tons mais altos que seu normal, faz todo o saguão saber que Vargas Llosa devia tê-lo esperado e que, mesmo assim, apenas por Mario ser quem é, faremos a gentileza de aguardar.

— André Malraux foi minha grande leitura durante a adolescência e a juventude. Toda sua obra eu li e reli com paixão e deslumbramento e creio que me ajudaram muito a descobrir o tipo de escritor que eu queria ser. Um escritor mais voltado sobre a ação que sobre a reflexão, um escritor interessado em uma problemática do tipo histórico e social e que, apesar de ser claro e preciso, um escritor que dissimula seus narradores detrás de uma aparente objetividade, que dá a seus escritos a aparência, a face da total autonomia. Foi sob sua influência que escrevi o livro de contos Los jefes.

Marcel me puxa pelo braço, apressado por me apresentar às muitas delícias do cardápio do bar. Diz ser uma pena eu comer tão pouco e me recusar a dividir os pecados da gula, mas faz a ressalva que eu estou certo e, ele, errado. Sorrio amarelo ovo.

— Faulkner me ensinou como todas as histórias podem ser as melhores e as piores do mundo, segundo as palavras que se encarnam, segundo a maneira como o autor organiza os tempos, os efeitos, as causas; a perspectiva desde a qual se conta a história. Como a forma pode dar profundidade, ambigüidade, sutileza ou, ao contrário, banalizar, idiotizar os temas, aos personagens. A importância da forma é algo que descobri lendo Faulkner. Com suas novelas me dei conta de como o tempo pode ser o espaço e a ação pode mover-se de trás para a frente. E também o alento épico, que eu descobri em suas novelas e que me permitiram reconhecer uma predisposição minha. É um autor que admiro, e cada vez me convenço mais de que é, no século 20, o equivalente aos mestres do século 19, de um Balzac, ou de um Dickens, ou de um Flaubert, que são, por sua vez, os grandes equivalentes dos mestres clássicos como Cervantes. Estes são os que competiram com a realidade de igual para igual. Hoje, os escritores têm medo de competir com a realidade de igual para igual. Lhes parece uma coisa muito pretensiosa, preferem a obra perfeita, de tom menor. É a literatura light, da qual não sou muito partidário.

Tendo dificuldades para ajeitar-se confortavelmente na banqueta tripé, Marcel sugere que sentemos próximos à piscina. Ele vai na frente levando em uma das mãos um frapê de morango e, na outra, um brioche de camarão. Já não ligo para mais nada, meu estômago sucumbiu à letargia.

— Na hora de escrever minha primeira novela, La ciudad y los perros, o autor mais importante para mim foi Sartre. Eu li com fervor seus contos, suas novelas e, sobretudo, seus ensaios, nos quais disseminava sua idéia de literatura como um compromisso do escritor com seu tempo, com os problemas de sua sociedade, a literatura como uma obrigação ao mesmo tempo estética e moral, sua convicção de que a literatura não era gratuita, de que por meio dela podíamos ter alguma influência na História. Ele escreveu em sua revista editada no pós-guerra de 1945, na Les temps moderns: “As palavras são atos. Através da escritura pode-se participar da vida. Escrever não é um exercício gratuito, não é uma ginástica intelectual — não! —, é uma ação que desencadeia efeitos históricos, que tem reverberações sobre todas as manifestações da vida, por tanto é uma atividade profunda, essencialmente social. E já que é assim, nós temos a obrigação, no momento em que sentamos frente à página em branco e tomamos uma pena, de ser responsáveis, de saber que aquele ato que iniciamos, traçar umas linhas, desenrolar um pensamento, irá ter conseqüências e que essas conseqüências vão recair sobre nós desde o ponto de vista moral e desde o ponto de vista social e, já que é assim, nós temos a obrigação de nos comprometermos”. Isso, para mim, ficou gravado, deu-nos, a muitos jovens de minha geração, uma idéia de literatura que hoje em dia está completamente anacrônica no mundo.

Marcel pede ao garçom uma caixa de bombons ao licor antes de desabar sobre a cadeira. Eu me ocupo em vigiar o saguão, aguardando Vargas Llosa não mais como um grande novelista e sim como meu salvador.

— Cada vez me convenço mais de que a literatura não é só um entretenimento e um prazer supremo, mas uma atividade imprescindível para que tenhamos uma rica vida interior, para desenvolver um espirito crítico, para que não nos mantenhamos passivos frente à realidade, para que estejamos conscientes de que o mundo está repleto de deficiências, que aquilo que vivemos não pode coibir nossas expectativas. Por isso, uma de minhas batalhas é tratar de convencer o maior número possível de pessoas de que é preciso defender a literatura, porque disso depende o mundo do futuro para que seja um mundo rico em sensibilidade, e ainda assim, livre. A literatura é uma garantia de liberdade porque não pode ser manipulada como pode ser toda a atividade das mídias.

É um mistério cabalístico a capacidade de Marcel falar e comer os bombons ao mesmo tempo. Continuar a ouvi-lo recitar seus poemas de pé quebrado me causa a mesma sensação de vê-lo se lambuzar com esses doces marrons. Combato o enjôo apreciando as garotas da piscina.

— Os seres humanos têm uma arma maravilhosa para se defender das frustrações, dos reveses contínuos que nos infringe a vida, que é a imaginação. Este é um recurso que nos permite transcender nossa circunstância pequenina e nos convertermos em reis, em deuses, habitar um domínio que se adeqüe inteiramente a nossos caprichos, para construir uma realidade melhor do que aquela em que vivemos todos os dias. Esse é o tema profundo de uma novela que tem um contexto muito mais sério que sua aparência superficial. Citando Hölderlin: o homem é um deus quando sonha e um mendigo quando pensa.

Mal Vargas Llosa se acomoda, avisa que espera um telefonema e, a depender de acertos, pode ser obrigado a nos deixar às pressas. Aproveitando a deixa, a esposa de Marcel o intima a ir à loja de conveniência do hotel. Eu não consigo segurar o sorriso ao vê-los se afastar e, diante da curiosidade de meu interlocutor, desabafo minhas desventuras.

— O começo de toda novela é uma luta contra a insegurança, em busca de uma confiança que só chego a ter quando tenho terminado o primeiro rascunho. Então, já me sinto seguro e trabalho com mais entusiasmo. Há um verso muito bonito de Kavafis dedicado a Ítaca. Ele diz: Empreende a viagem a Ítaca, mas demora-te o mais que possas, faças muitas escalas, tendo sempre presente tua ilha, a que estais buscando. Ao final, diga, cheguei a Ítaca, e o que vais descobrir? Que a verdadeira Ítaca era a viagem. É um poema maravilhoso para descrever o que é escrever. Ao final, quando o livro está ali, o maravilhoso terão sido os meses, anos, construindo, retirando essa história do nada, modelando os personagens. Esse é o grande prêmio, sempre o é.

Súbito, Marcel retorna. Está felicíssimo por ter conseguido livrar-se da esposa. Porém, para sua decepção, junto com o pedido de Llosa, o garçom avisa que seu agente deixou o recado de que devem se encontrar com urgência. Mesmo sob protestos, eu aceito a carona. Terminamos a conversa em um pequeno restaurante onde como o melhor bacalhau com batatas de minha vida.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho