Estou em um cinema na Sicília, que mais parece um monumento ao neo-realismo italiano: paredes recobertas de veludo bordô, luminárias rococós compostas de hastes de sete pontas retorcidas para parecerem ramagens velhas, um imenso cristal centrando a sala, poltronas de banquetas fixas, quadros com imagens de Nossa Senhora e seu filho. Entrei para ver Cidade de Deus, não por ufanismo ou curiosidade, apenas porque era isso ou um bar aberto ao calor siciliano.
Mal escolho a poltrona entre duas disponíveis — F18 e G18 —,
— aqui também está quente
vejo vindo, aos trancos e barrancos, importunando toda a fila da frente, um homem gordo e careca, carregado de pipocas, refrigerantes, pacotes de doces. Dando ver apenas sua enorme costa e bunda, ele se deixa cair na poltrona à minha frente, criando uma barreira intransponível aos fotogramas. No momento em que as luzes se apagam, eu ainda estou tentando encontrar brechas na parede de carne e gordura, mas é impossível.
— Sem filme, e vendo esse homem comer….
Levanto e saio pisando sapatos, machucando dedos, saltando coxas estendidas, até alcançar o corredor. Feito um etíope caçador, estico o pescoço e cerro os olhos procurando outro lugar vago, porém, com a casa lotada, a certeza do meu fracasso me faz desistir quase de imediato. Assim, sem cogitar perder o ingresso e incapaz de aceitar uma cadeira mais ao fundo, atrás de uma pilastra incômoda, sento ali mesmo, em um degrau da escadaria, aproveitando para mastigar as pipocas que ficaram incrustadas no canto da cadeira à minha direita.
— Meu deus, o que o senhor está fazendo?
Um rapaz gordo e careca, vestindo uniforme vermelho com galhardões dourados, bate em meu ombro e me aponta uma placa branca grafada com letras vermelhas, pendurada ao lado do extintor de incêndio. Digo que estou sem lugar, ao que o rapaz me aponta a cadeira atrás de um homem gordo e careca. Reclamo que ali é impossível ficar
— shhhhhhhhhhhhhhh!
sendo então convidado a ir para fora da sala de exibição e, após devolvido o dinheiro do ingresso, ouço que devo me retirar do local.
Minha teoria é que não há diferença entre o Sunday New York Times e o Pravda dos velhos tempos. O Sunday New York Times poderia realmente ter 600 ou 700 páginas, se fossem impressas todas as manchetes prontas. Mas, mesmo que não, uma semana não é o bastante para se ler um número do Sunday New York Times. Então, realmente, o fato é que a maioria das matérias são irrelevantes ou imateriais, porque você não pode lê-las todas. Então qual é a diferença entre o Pravda, que não dá nenhuma notícia, e o New York Times que dá demais?
Sob o sol Siciliano, sentindo a transpiração escorrer por sob a roupa,
(estou vestindo calça de brim creme, camiseta de algodão Hering, sandália franciscana — na qual o calor e o suor ajudam a formar um forte chulé)
olho o relógio
— duas e meia da tarde,
só para confirmar que ainda é cedo para chegar no Vitor Emanuel, hotel em que Umberto Eco está hospedado e onde estive pela manhã, apenas para descobrir que nossa entrevista foi transferida para a tarde, devido a compromissos sociais. Nada extraordinário ou ofensivo não fosse o gerente, um homem gordo e careca, calçando luvas brancas sobrando nos dedos mindinhos, ter a pachorra de pedir que um dos seguranças me acompanhasse até a rua.
— Nós insistimos — ele sorri apontando a porta para a qual o segurança, um troglodita com nariz grego, muito alto, gordo e careca, já segue marchando solene.
O que é a estranha e única propriedade de um ser humano? Saber que é mortal… isso é uma importante parte do saber, senão a mais excitante. E eu penso que apenas porque nós somos os únicos que sabem que temos que morrer, nós somos os únicos que podem reagir por meio de risadas. Nesse sentido, se Deus existe, ele não tem necessidade de rir. Mas, talvez, ele poderia sorrir…
Lembro o que se passou e sinto ganas de ir embora, seguir para a estação ferroviária e tomar o primeiro trem para lugar algum
(Porto, certamente, de onde poderia partir para longe, do mesmo modo que outros fizeram antes de mim)
(quem sabe conhecer as paisagens e casarões descritos por Lampedusa, ver se realmente são como aqueles que Lucchino Viscontti mostrou no filme O leopardo)
Sem poder ficar parado,
(há uma óbvia distinção entre quando eu escrevo ensaios para a comunidade universitária e quando eu escrevo outros trabalhos. Eu quero explorar ao máximo o ponto base de minha teoria de texto: escrever é produzir um modelo ou leitor ideal)
atrapalhando o tráfego, e ainda indeciso se realmente vou ao encontro de Eco, atravesso o asfalto e entro no bar que faz poucos minutos reneguei. Peço uma Coca e sento em uma das mesas próximas à porta,
(então eu não posso escrever pensando: eu estou escrevendo, neste momento, para viúvas, ou para soldados, sendo que eu provavelmente escrevo para ambos. Eu quero produzir um leitor com a habilidade de reagir, eu quero transformá-los para que eles venham a ser os leitores certos, daquele texto, sejam eles soldados, viúvas, taxistas, ou filósofos)
de onde posso ver o movimento na rua. Gosto principalmente daqueles casais desconectados da modernidade, homens de camisas desabotoadas até o meio do peito, acompanhados de mulheres de rostos intensos, jovens enlutadas que parecem ter perdido os maridos e amantes na noite anterior. Sem eles
(eu penso que há apenas dois tipos de escritores escrevendo para um público preexistente: redatores publicitários, obviamente: eu quero vender alguma coisa para viúvas e soldados; e os cozinheiros de best sellers: eu quero escrever para pessoas que lêem na praia ou visando estímulo sexual ou consolo sentimental. Nestes casos são pessoas objetivando alvos específicos)
faltaria algo ao ambiente exótico de Palermo, cidade que exibe orgulhosa sua diversidade de palácios barrocos e art noveau, além de prédios que lembram a passagem de árabes e normandos.
Abro um jornal. Um cachorro deita sob os pés da mesa em que estou e, sem cerimonias, adormece emitindo um ronco baixinho. Sua presença, a princípio não me incomoda, porém, quando começo a ouvir o zumbido, algo como o bater de asas de abelhas, ou moscas varejeiras, coloco a culpa no infeliz,
(um novelista de histórias clássicas sabia que eles tinham um alvo preciso, e sabia muito bem que havia regras. Agora, também, é irônico, acontece o mesmo com os chamados pós-modernistas.)
fecho o jornal, termino a Coca e me levanto. No mesmo momento o garçom, um homem careca e gordo, vestido com terno preto e gravata vermelha, aproxima-se para saber se não quero mais alguma coisa.
— Não entendo de onde vieram tantas moscas.
Pago e aproveito para perguntar se há alguma livraria por perto, o que o obriga a sorrir comiserado com minha inépcia. Enquanto equilibra a garrafa e o copo vazios na bandeja de frisos prateados, aponta a pequena loja ao lado do cinema.
Supondo que eu represente uma dualidade, e eu sei que ironicamente eu trabalho sobre o modelos dos duelos de capa e espada, então eu quero um leitor que entenda minha referência plein d’oeil, meus modelos prévios de literatura ou terreno, e o lado irônico disso. Mas, ao mesmo tempo, eu entendo que aquele pode ser um leitor completamente primitivo que leva essa dualidade como se ele ou ela lessem isso pela primeira vez. E nesse ponto eu digo: Ok! Eu não estou escrevendo para vocês, mas sejam meus convidados!
A livraria, para meu grande alívio, tem o ambiente climatizado. Fechada a porta de vidro fumê, o mundo lá fora desaparece, engolido pelo conforto moderno. Sem mais transpirar, puxo uma banqueta para junto de uma das cestas de promoção
(eu poderia dizer que há um novo público que está mais e mais preparado para ler histórias complexas e apreciá-las. Provavelmente, e eu não estou falando de mim mesmo, mas de vários escritores contemporâneos,)
e começo a folhear alguns títulos. É tranquilizador que o zumbido tenha parado de me perseguir, se bem que o cheiro de minhas sandálias chama a atenção de dois outros fregueses, um gordo careca e outro careca e gordo, ambos vestindo summers brancos, muito bem adequados ao clima lá fora.
(e provavelmente há os editores que acreditam que os leitores são basicamente estúpidos e apreciam leitura fácil. Mas eles não querem isso. Eles querem muito mais que isso. Eles querem experiências desafiadoras)
(não fosse minha timidez, diria a eles que a dieta mediterrânea é um embuste, que deviam tentar a dieta de Beverly Hills, ou, quem sabe)
Eu lembro quando aquela grande mulher, Helen Wolf, de Helen and Kurt Wolf Books, encontrou-me em Nova Iorque para publicar O nome da rosa, ela lia em perfeito italiano, e ela me disse:
Controlando minhas tentações, puxo O nome da rosa. Folheio algumas páginas e fecho o livro sem ter lambido os dedos uma única vez.
“Eu gostei deste livro, mas você sabe, neste país no qual ninguém sequer viu uma catedral gótica — alguns nova-iorquinos, algumas pessoas de San Francisco, ok, e talvez algumas pessoas mais preparadas, mas no meio-oeste — então eu acho que um livro como este nós podemos fazer 3.000 cópias. Você aceita que nós façamos 3.000 cópias?” Eu disse:
Me chama a atenção um outro título: O pêndulo de Foucault. No entanto, como o primeiro,
(“Ok, faça isso.” E foram vendidos um milhão e meio ou dois. E as mais desafiadoras cartas vieram de leitores que eram do meio-oeste. Pessoas que foram desafiadas, e entraram em contato com novas questões, que estavam excitadas por uma experiência que de alguma maneira foi exótica, porque obviamente estava falando de um mundo que não era o deles. Então eles não queriam o Reader’s Digest. Ou então, ok,)
desisto depressa, preferindo seguir para A ilha do dia anterior, até chegar a Baudolino. Nesse meio tempo,
(Reader’s Digest nos seis dias da semana, mas no sétimo dia, no dia sabático, eles querem algo que os leve adiante. Isso significa que existe uma nova geração de leitores que não são necessariamente trabalhadores intelectuais mas querem respeito)
descubro o porquê do silêncio: as moscas, como que entorpecidas pelo ar condicionado, jazem adormecidas ao meu redor. Para vê-las melhor, aproximo o rosto e,
(sabe-se lá o que me faz fazer isso)
cantarolo baixinho uma ária de Don Giovanni. Paro quando o vendedor, um gordo careca, vestido com camisa branca e calça de microfibra preta me cutuca o ombro, pedindo silêncio.
(Verdi, sempre; Puccini, às vezes; Mozart, jamais!)
Ele me aponta uma placa na parede, ao lado da estante de auto-ajuda e outras habilidades manuais, acima do pôster 2×2 da biografia não-autorizada de Cicciolina, escrita por Jeff Koons. Peço desculpas e, encerrando meu concerto, deixo a livraria.
A atividade acadêmica me ajudou a ter instrumentos para entender atualidades; a atenção contínua aos eventos do dia a dia ajudaram-me a ter matéria para reflexão em meu trabalho acadêmico. A história da novela é outra coisa, mas, igualmente, eu não sinto uma divisão em minha personalidade. Eu sinto que o que eu faço no lado esquerdo ajuda o que eu faço do lado direito.
Na portaria do hotel, sou avisado logo na entrada, pelo porteiro gordo e careca, que o senhor Umberto Eco telefonou avisando que não vai poder vir ao nosso encontro. Sua esposa alemã está indisposta.
— Não, o senhor não pode usar nosso telefone pois nossas linhas estão passando por dificuldades. Que tal o senhor tentar do telefone público?
Mesmo vendo o gerente o tempo todo pendurado no fone da recepção, aceito a mentira e me vou, sem saber se a culpa é de Eco ou… Decepcionado com a enorme perda de tempo, volto ao bar e sento na mesma cadeira. O garçom gordo e careca pára de espirrar inseticida pela casa e aproxima-se querendo saber o que desejo. Pergunto se tem algo para comer. Ele me aponta a placa na parede, ao lado da estante de cristais. Peço um sanduíche de pastrami, sabendo que com este gasto terei que partir hoje mesmo, pois não terei dinheiro para passar a noite na cidade,
(Umberto Eco, tendo vendido mais de vinte milhões de cópias de seus livros, morando em um belo castelo medieval, poderia perfeitamente pagar um jantar)
a não ser que durma em alguma praça, o que não estou disposto.
Enquanto mastigo o bom e apimentado pastrami siciliano, volto a observar os habitantes locais. O sol ainda não dá mostras de querer baixar no horizonte, mesmo assim o dia de trabalho parece estar encerrado. Diversos homens engravatados passam pela calçada, conversando animadamente, interrompendo suas falas apenas para quebrar os pescoços, feito surikates africanos, à passagem de alguma beldade. E são muitas, dezenas, centenas, milhares, vestindo elegantes vestidos de seda, calças de algodão marroquino, meias tão finas que se confundem os poros verdadeiros e artificiais. Uma delas, especialmente generosa, passa por mim e sorri;
(jovem viúva enlutada, buscando um novo amante)
e seguindo o fluxo do entardecer, olha duas vezes para trás,
(devo?)
rindo cada vez que me vê, até que finalmente dá a volta e se aproxima
— desculpe, você está doente? Você parece muito magro
me deixando abestalhado, sanduíche entre os dentes, sem saber o que fazer com meu constrangimento. Por graças, sou salvo por um outro passante, dessa vez um homem gordo e careca, pequeno na verdade, que parou na frente do bar para ler o letreiro do cinema. Com modos pensativos, aponta e lê e relê diversas vezes o título até que, finalmente, tira uma caderneta de sua pasta e faz uma anotação.
— Signore Eco?
Um dia, como é normal, terminando minhas aulas às 19 horas, junto com meu assistente e alguns estudantes, nós fomos conversar em um bar até as 20 horas e então eu fui para casa com alguns deles me seguindo e conversando. Nós cruzamos a Piazza Verdi em Bologna, onde está o teatro de Ópera. Não sei dizer exatamente o que era, mas estava havendo uma importante estréia. Bem, nós cruzamos a praça e eu fui para casa fazer algo, ou assistir televisão, ou para foder — eu não sei o que era. No dia seguinte, a chamada do jornal era: “Umberto Eco não foi à estréia!” O que não deveria ser uma novidade já que eu nunca vou a essas coisas. Então, isso não era algo para o jornal, mas, provavelmente, eles não tinham nada melhor para falar, então minha ausência tornou-se um algo significativo. Bem, quando chegamos a esse ponto não se pode fazer coisa alguma, mas apenas tentar deixar de prestar atenção nesse tipo de incidente.
Diferentemente do que imaginei, Umberto é gentil e divertido, daqueles intelectuais que gostam de falar de sexo e mulheres literárias. Nascido em 1932, em Alessandria, hoje mora em Bologna, onde vive com sua esposa. Apenas em 1978, começou a escrever ficção de modo sério. Naquele ano, teve a idéia de O nome da rosa, que iria deixá-lo famoso.
— Não sei por quê, aqui consigo passear sem ser reconhecido. Em outras cidades, somente na privacidade posso encontrar meus amigos.
Conversamos por horas
— eu tenho muitas idéias, o que significa ter nenhuma
comemos e bebemos
(lá se vai minha passagem. Vinte milhões de cópias…)
chegando mesmo a gargalhar quando conto sobre o gerente do hotel.
(sorri ao ajeitar os óculos que divide seu rosto cheio, aproveitando para ajeitar também os poucos fios que se rebelam sobre sua testa e careca, mais amplas que o normal por suas características obesas)
Quase oito da noite, como gentileza inesperada, após ter pago a conta inteira do bar,
— você ainda parece faminto
Umberto me leva até seu hotel, insistindo para que eu conheça seu excelente restaurante. Jantamos filé de linguado à moda veneziana, ou seja, temperado apenas com sal kosher e tomates selvagens. Para acompanhar, um bom vinho branco produzido ali mesmo na ilha.
— Eu confesso: há livros que eu amo muito, e eu não os li inteiro. Isto acontece. Quando O nome da rosa foi lançado, tão difícil e cheio de expressões latinas, e ainda assim teve sucesso, começou a lenda de que esse era um livro não lido. Eu estou satisfeito.
No momento das despedidas, Umberto me dá um pacote de biscoitos e um par de chinelas do hotel, como pedido de desculpas pelo incidente, garantindo que irá reclamar com o gerente, pessoalmente, tanto de sua grossura para com um amigo como da quantidade absurda de moscas que tomaram o restaurante logo após nossa chegada.