Encontrando Tom Wolfe

O mago do new journalism diz que o romance americano está morrendo, não por obsolescência, mas de anorexia
Tom Wolfe, autor de “Ficar ou não ficar”
01/12/2002

Tom Wolfe mora em um apartamento de doze cômodos, no décimo quarto andar de um edifício em Manhattan Upper East Side. Ele usa uma máquina de escrever manual Underwood. Em 1978, casou-se com Sheila Berger. Em 1980, nasceu Alexandra e, em 1985, veio à luz Tommy. Os filhos são os responsáveis pela residência estar conectada à Internet.

Uauuuuuu! Não existe nada como entrar feito um Exocet desgovernado na Universidade de Columbia, NY. Ainda mais se você estiver carregado com um tradicional hot dog nova-iorquino com todos os opcionais permitidos.

– Ooooooooooooopaaaaaaaaaaaa!

É uma lei natural não redigida pelos ghostwriters do Senhor. Todos, e quando digo todos me refiro realmente a todos!, não importa se é presidente, senador, republicano ou democrata, reitor, faxineira ou um calouro estúpido, todos!, ao verem você, Exocet desgovernado carregado com um poderoso hot dog nova-iorquino, pulam para o lado e:

– sai da frente!

colam seus fundilhos nas paredes. Pois eles sabem muito bem que é líquido e certo que se você os abalroar, não estando nus em pêlo, suas roupas estarão condenadas para todo o sempre ao limbo dos finais de semana no jardim, quando são vestidas aquelas peças velhas, manchadas e imprestáveis que não podem ser vistas por ninguém mais, fora o gramado a ser aparado e as rosas em flor. E não importa se são de algodão, cânhamo, nylon, parca, cashmere inglesa, tafetá turco, seda chinesa. Qualquer tipo de trama, seja fibra natural ou artificial, sucumbe aos indecifráveis corantes, acidulantes, conservantes, estimulantes, aromatizantes existentes na mistura explosiva dos hot dogs nova-iorquinos.

– Sai da frente que estou atrasado!

É soberbo!, tendo em mãos esse passe mágico, reconhecível a distância tanto pela forma quanto pela cor e pelo cheiro, você se torna o senhor do universo acadêmico na mais prestigiada instituição de ensino da capital do mundo.

– Uuuuuuuuuuuuuuuaaaaaaaaaaauuuuuu!

Em 1963, a revista Esquire publicou um artigo falando dos jovens sulistas que gostavam de incrementar seus automóveis. Tom Wolfe foi o autor desse artigo que é considerado o marco inicial do New Journalism.

Apesar de não querer chegar atrasado à palestra de Tom Wolfe, tive que parar junto às escadarias de Columbia e comprar um hot dog. Estou faminto. Cheguei em Gotham City faz duas horas e vou continuar viagem daqui a quatro. Eu deveria estar de pança cheia, mas dormi grande parte do vôo e perdi as refeições.

(- Eu tento escrever dez páginas por dia. Com espaçamento triplo, ou seja, de mil e duzentas a mil e quinhentas palavras. Acho um bom número para se impor.)

Enquanto o gordo bigodudo monta meu sanduíche, eu planejo apreciar a ambrosia de Wall Street na última fila do grande salão, sem causar espalhafato. Não tem por que ser diferente, afinal, é apenas pão e salchicha e um recheio e molho misterioso, não um lamento estético, cultural e político que precise ser justificado.

– Espera só um pouco que meu garoto está chegando com as capriciosas.

– Pode ser sem.

– Não, sem as capriciosas não fica bom.

– Estou atrasado.

– Não se preocupe. Marco já está chegando.

(- Bloqueio de escritor é algo a se temer, aquele medo de que você não pode fazer o que você disse que faria. Mas há um outro tipo de bloqueio de escritor: a descoberta que você iniciou algo que não vale o esforço. Isto é um tipo diferente de bloqueio, quando você se dá conta que aquilo não vale o tempo que você gastou.)

Seguindo sob cornijas, colunas, falsos capitéis, molduras oitocentistas envolvendo rostos de antigos reitores deslumbrados com o patético orgulho americano, chego ao saguão anterior, aquele que conduz ao grande salão, o local onde deve acontecer a comunhão lítero-erótica. Sim, pois neste país onde o culto à pessoa pública extrapolou os limites dos RPs, chegando finalmente a estabelecer-se como

(- universidades tomaram a função das igrejas como o lugar onde os valores são criados e estabelecidos)

nada mais normal que o crítico papal, o senhor dos anéis, o rei da cocada preta seja o velho Tom Wolfe, um aristocrata formado em Washington e Universidade Lee, com doutorado em Yale, nascido no exato momento em que a América moderna estava sofrendo as dores do fim de uma época e firmando seu novo estatuto de existência: a Grande Depressão.

(- O conceito de “Espírito da Época”, ou Zeitgeist foi cunhado pelo filósofo alemão Hegel. Isto foi levado muito a sério no século dezenove. A idéia básica é que cada época tem um tom moral que influência a vida de todas as pessoas que vivem no período, não importa a pessoa querer ser influenciada ou não.)

Saber que o velho Tom nasceu em 1931, escarrado do rombo deixado pelo crack da bolsa de Chicago, ajuda, e muito, a compreender seu jeito dândi de se vestir e de se portar. Ele é daqueles caras que ainda cultivam a velha escola do “vista-se bem e conquiste o mundo”. Vê-lo caminhar entre meros mortais, trajando um terno azul celeste, de golas bicudas estilo 1970, tão cool que os botões tremem com a mera possibilidade que se percam os vincos da calça; com seus sapatos bicolores, daqueles que os velhos malandros gostam de engraxar milhares de vezes no mesmo dia; empunhando uma bengala de madeira de lei brasileira, ornada com uma bela cabeça de cavalo em prata de lei; e tendo sua cabeça coroada com um chapéu Panamá, forma especial, que não esconde os finos cabelos quase translúcidos de tão amarelos, ah!, é um espetáculo e tanto. Na hora fica claro que estamos diante do “homem”, alguém que pode estar na merda absoluta e ainda assim erguer o dedo mindinho reclamando que o líquido quente que lhe serviram está frio demais.

(- Há esses dois velhos pilares de ossos, Norman Mailer e John Updike. Updike gastou nove páginas na New Yorker, Mailer gastou onze ou doze na New York Review of Books, para tentar dizer que (Um homem por inteiro) não é literatura. Updike disse que não é literatura, é entretenimento. Mailer disse que não é literatura, é um best seller.

Eles acham que a literatura é algo esotérico, quase uma coisa religiosa que necessita que vivamos em monastérios, e o best seller é algo estúpido e que os escritores comerciais estão fora do monastério. A qualidade é posta em pequenos e polidos romances, preferindo refugar a levar seriamente um livro como Cold Mountain, de Charles Frazier. Qual o problema com Cold Mountain? Popularidade! Ele vende livros demais.)

Desviando de saudáveis jovens americanos de suéteres de cashmere e jaquetas bordadas com grandes Cs, contornando agrupamentos de loiras voluptuosas, armadas de seios tamanho 42 (nunca menores!), todos eles, machos e fêmeas discutindo o novo feminismo e falando de Susan Sontag e outras mulheres inteligentes como se fossem vizinhas de bairro

– Susan? As últimas fotos deixaram ela com cara de intelectual alemã judia. Tipo a velha Hannah. Pra falar a verdade eu adoro a Oprah e seu populismo universitário povão.

Uauuuuu! Populismo universitário povão? Uma expressão cheia de… ginga, que poderia ter saído dos finos lábios do velho Tom. Ouvir algo assim me dá a certeza de que o público já deve estar se acotovelando para conseguir um espaço no grande salão, que apesar do nome, não é tão grande assim, podendo agregar algo em torno de oitocentos e sessenta fiéis.

Porém….

(- Meu interesse real está em expor o status, o que faz as pessoas reunirem-se em grupos por elas mesmas, ranquearem-se por elas mesmas. E isso não é sobre tentar passar para o próximo nível. Muitas pessoas passam a vida tentando manter um certo status. Muitos não têm o menor desejo de ascender, querem apenas ficar onde estão. Quando eu escrevi Os eleitos, eu estava observando o sistema dos pilotos, a psicologia, como eles ranqueavam-se no mundo que eles criaram – voar. Isso é mais meu amor do que sujeição, não uma preocupação concernente ao Zeitgeist. Mas, se você mergulhar nisso não pode descartar o Zeitgeist.)

De repente, meu ímpeto, minha fome, meu desejo in hilo tempore de beber diretamente na origem, ouvir o criador segredar qualquer fofoca de sua alcova literária sofre um baque. Ao dobrar a esquina que deveria me conduzir aos pés do púlpito maior, sou surpreendido pelo vazio, pelo silêncio sepulcral característico de tantas universidades. Parado sobre o mármore da inteligência nova-iorquina, passo da euforia para a decepção e novamente busco me animar

(- O New Journalism era alguma coisa razoavelmente nova quando eu comecei. Casualmente, todos os movimentos rotulados como novo são atacados. Eles morrem muito rapidamente.)

e revertendo a batalha, justifico que o vazio e o silêncio é porque todos os admiradores e sedentos por conhecer o novo hiper-pop-radical-ponto de vista do velho Tom já entraram e estão com suas bundas balofas espalhadas sobre as cadeiras de couro lustrado da orgulhosa Universidade de Columbia.

(- O que era novo era a utilização de técnicas de jornalismo que tinham sido previamente utilizadas apenas na ficção. Hoje, as técnicas são muito bem conhecidas por quem escreve para jornais e por aqueles que trabalham em revistas. Pode-se escolher. Vamos dizer, Rolling Stone, ou se quiser, qualquer outra revista que tenha coisa boa escrita em suas páginas, e você encontrará exemplos. Eu acho que é uma boa coisa.).

mas seria melhor se o velho Tom ainda não tivesse começado a falar. Eu poderia passar despercebido apesar de ter em mãos um supercaracterístico hot dog made in NY; agora, com certeza, serei sacrificado à Calyope por minha ousadia em interromper o deus do New Journalism.

(- Para mim, o grande prazer de escrever é a descoberta. Eu comecei como jornalista. Eu ainda amo a aventura de sair e reportar as coisas. Eu não sei por que. Quando escrevi A fogueira das vaidades eu me portei como um repórter nos locais que não conhecia — o sul do Bronx, Wall Street e o sistema judiciário. Aquilo foi excitante. Muitos escritores são levados a escrever sobre o que eles conhecem. Não há nada de errado nisso, mas é realmente limitador colocar esse tipo de fronteira ao redor do que se está escrevendo.)

Para não me torturar ainda mais com suposições bestas e atrasar ainda mais minha chegada, começo a correr na direção da grande porta de carvalho. Para não me atrapalhar, seguro o hot dog na mão esquerda e, com a direita, balanço compassadamente no melhor estilo Carl Lewis. Desse modo, enquanto respingos do molho ácido ficam sobre o piso centenário, os metros vão sendo vencidos e antes que eu diga Pindamonhangaba estou estatelado no chão de mármore europeu, nariz colado na fuça do velho Tom.

– É culpa do filho do vendedor de hot dog que atrasou quinze minutos!, sou rápido em dizer.

(- Há alguns anos, em uma conferência, um estudante me perguntou por que eu escrevo. Eu nunca havia me feito essa questão em toda a minha vida. Eu comecei a fazer livres associações. Aí passei pelo catecismo presbiteriano por alguma razão. A primeira questão é quem criou o céu e a terra? A resposta é Deus. A segunda questão é por que Ele fez isso. É interessante. A resposta é “para sua própria glória”. Então eu usei aquilo na minha resposta. Esta foi provavelmente a mais honesta resposta de todas.)

Uma coisa é preciso admitir, a Universidade de Columbia mantém a dignidade mesmo nos momentos de maior constrangimento. Basta dar uma olhada em seus magníficos banheiros cujos pisos dariam vergonha ao velho Nabucodonosor e seus jardins suspensos da Babilônia; às pias volumosas, coroadas por torneiras que resplandecem o latão escovado até brilhar feito ouro; às paredes forradas de alto a baixo com a mais nobre cerâmica vitrificada; oras, em um local de tamanha classe, com certeza não há vergonha alguma em ficar de cuecas esperando que tragam outra muda de roupas enquanto as suas estão sendo encaminhadas à melhor lavanderia chinesa de Gotham City . Claro que não, qualquer ser humano normal admitiria isso.

Qualquer ser humano normal, menos o velho Tom. Ele, o deus iconoclasta pós-moderno, o demiurgo do New Journalism, o papa da meritocracia classe A, em vez de aceitar minhas humildes desculpas,

– li quase todos os seus livros e gostaria de fazer algumas perguntas

preferiu se trancar em um dos reservados e ficar sentado sobre os confortáveis tronos de louça branca inglesa. Por mais que eu tentasse, implorasse, ajoelhasse, suplicasse, o velho Tom se manteve irredutível até que, meia hora depois, quando ouviu um sotaque conhecido, mais um garrancho de pronúncia que fala propriamente dita, o velho Tom baixou a guarda.

(- A moda dita que as novelas da segunda metade do século 20 devem ser estudos psicológicos melhores do que os grandes estudos da sociedade, que a novela realista é passado. Isto, em minha opinião é como se um engenheiro dissesse: “você sabe, eu estou cansado da eletricidade…” Quando o novelista disser que não pode admitir a vida, está feito, o romance começou a morrer, está chegando à fase terminal. Eu poderia dizer que é inevitável, a menos que nós escrevamos aquilo que eu chamo de documentário ou novela jornalística… )

O chinês, tão velho quanto aquele que mostram as ilustrações como sendo Lao Tsé sobre o búfalo, bateu na porta apenas uma vez e avisou que deixaria o terno azul celeste pendurado no trinco. Presto! Bastou esse som mágico para que o velho Tom abandonasse seu Álamo e, na mais infame das cuecas samba-canção de padronagem cenourinha, ressurgisse, não feito o deus iconoclasta pós-moderno, o demiurgo do New Journalism, o papa da meritocracia classe A, mas um simples magrelo intelectual indignado marchando seus sapatos italianos de mil e duzentos dólares. Após um olhar de soslaio que me fez sentir revirar os intestinos, pegou o terno e fechou-se novamente.

(- Estou trabalhando em um romance sobre a educação americana contemporânea. O assunto soa estúpido, mas eu acho que há um tipo de irresponsabilidade nesse campo que pode ser engraçado escrever a respeito.)

Vinte minutos depois, novamente Galahad em sua armadura divina, o velho Tom voltou para o grande salão, onde nenhum dos que vieram beber de suas sábias e irônicas palavras havia arredado o pé.

– O romance americano está morrendo, não por obsolência, mas de anorexia. Ele precisa… comida… ele precisa de romancistas com energia e verve para tratar a vida americana do mesmo modo que seus cineastas fazem, isso quer dizer, com devoradora curiosidade e urgência para sair entre seus duzentos e setenta milhões de almas e falar com eles e olhar em seus olhos.

Eu, acostumado a ficar sem as benesses do tratamento pop star literário, me conformo com a roupa ainda úmida e manchada com o molho ácido do hot dog nova-iorquino e me acomodo na última cadeira da última fila, recurvado o mais que posso para não ser visto e vergonhosamente expulso da presença dele, do velho Tom cueca samba-canção.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho