Encontrando Philip Roth

Um acidente, o dentista e o encontro com o homem que faz da literatura quase toda a sua vida
Philip Roth: um dos escritores mais proeminentes da literatura mundial.
01/04/2003

o problema é começar, não terminar. Quando você começa alguma coisa nova, é tudo tão cru e sem forma e sem foco, e essa experiência e muito contrastante com os últimos seis meses de finalização de um livro, quando todas as coisas que você toca tornam-se exatas. É adorável quando todas as coisas começam a aparecer juntas, e todas as coisas que você lê, ou que você faz ou ouve ou diz parecem algo que vieram diretamente daquilo que foi feito no dia anterior. Mas, para ir além daquilo que é cru no início, há um momento em que tudo o que você faz está errado, e isso não é prazeroso. Meu modo é escrever seis meses de lixo — lixo heterossexual normalmente — e então começar a limpar, filtrando uma centena de páginas ou aquilo que eu não posso sustentar, para então encontrar dez páginas ou aquilo que sobreviver, e então tentar descobrir para onde aquilo está indo e tentar dar-lhe vida — e então seguir adiante

Todos os dias ligo para as agências de viagem procurando um vôo para o Kuwait. Não importa a cidade, qualquer uma serve, tudo o que eu quero é ir, ir para lá, para onde a guerra está a poucos quilômetros, onde as sirenes soam e eu, de contrabando, poderei mergulhar além de mim. Não, eu não quero morrer ou ver mortos; muito menos experenciar os fogos cruzando o céu; ser heróico ou reconhecer minha covardia; o que eu preciso é me sentir vivo, apenas isso. Não dá mais para olhar a mesa vazia, conter a ânsia de voltar a escrever algo que nunca chega ao fim. Eu não sou Nathan Zuckerman.

apesar de sua alta exposição nas novelas, ele foi um grande defensor de sua solitude. Não porque ele particularmente goste ou valorize a solitude, mas porque seguir a anarquia emocional e a auto-exposição foram possíveis a ele apenas em isolamento

depois que admiti meu fracasso, todas manhãs acordo e lavo o rosto, escovo os dentes, visto uma roupa qualquer. Antes de fazer o café, olho pela janela e vejo os telhados parisienses

— onde está o glamour, o romance, a aventura?

desistindo prematuramente de uma visita aos museus, uma ida ao cinema, a compra de um livro, uma estada em um café ou restaurante. Sem o computador, seriam esses meus programas. Mas, diferentemente de quando cheguei, hoje não leio o cenário como aquilo que irá garantir uma vida inspirada. Mesmo no velho mundo, a capa que recobre meus dissabores continua sendo minha pele, o que sustenta meus músculos ainda são meus ossos. O máximo que me permito é ligar o rádio e deixar que músicas aleatórias preencham o espaço infinito entre as paredes do meu quarto e o concreto que recobre o chão da cozinha.

(apesar de tudo, continuo um estúpido afeito a literatices)

eu não acho que sou o único que age desse modo nesses casos. Eu acho que o temperamento da maioria dos escritores é mergulhar na solitude e na exclusão. De outro modo eles não poderiam tolerar a profissão. Eles não se atreveriam à falta de ação do trabalho

Enquanto bebo devagar o café sem açúcar, tento esquecer as palavras impressas, deixar que baixe à cova o trabalho de meses, personagens, enredos, voltas e revoltas, para que meus sentidos possam vagar para além,

toda a minha audácia deriva de máscaras. O melhor de minha vivacidade, coragem, originalidade e estilo apenas surge de imposições artísticas. Eu poderia ter me tornado tanto um ator quanto um romancista

cobrindo o calor que passa da xícara para meus dedos como idéias vagas, suspiros e a tola impressão de que preciso ser forte.

— Como cancelaram todos os vôos para a região? Chirac não é contra a guerra? Então o que tem a ver? Se somos contra, devemos manter o estado de normalidade! Senão estamos nos entregando aos desespero geral!

Desligo o telefone e volto para o quarto e abro as cortinas. O sol está no céu, pessoas estão nas calçadas, carros no asfalto, pombas circundam o prédio comercial que bloqueia minha visão da Torre Eifell. Coloco um CD no aparelho de som,

Chorei, chorei, até ficar com dó de mim

calço os sapatos,

Cantei, cantei, como é cruel cantar assim

abotôo a camisa,

nunca mais vais voltar, vais voltar

desligo o som e saio para a rua. Quem sabe pessoalmente sou melhor atendido nas agências de viagem! Quem sabe encontro um muçulmano que esteja indo em vôo fretado para a região do conflito! Quem sabe ele não sinta pena de meu estado miserável, a barba por fazer, as roupas amassadas, os dedos trêmulos! Como vício que se preza, não é fácil abandonar todo e qualquer sonho de literatura, para dar espaço a que alguma outra profissão aflore em mim, permitindo que eu viva longe de qualquer apreciação, qualquer imortalidade não senciente, que um outro tipo de satisfação possa

o ator veste a máscara para a performance pública, o escritor põe a máscara sozinho em seu quarto. Ele põe a máscara de Humbert Humbert, a máscara de Rabbit Angstrom, a máscara de Stingo, ou Herzog ou Holden Caulfield. Sem a máscara ele vive, como qualquer um, primariamente sendo “o que é”. Como um mascarado, ele é geralmente mais curioso sobre “o que poderia ter sido” e “o que poderia ser”

não me machuco com gravidade. Não fosse o gosto de sangue em minha boca estaria em perfeito estado. Não vi o carro, nem mesmo atentei à rua, tudo o que acontecia ao meu redor era secundário ao que estava povoando meus pensamentos. E mesmo caído, não me resigno à realidade, continuo preso ao vício de mim mesmo, o que faz contrastar minha aparente calma com o desespero do motorista, que insiste em me levar até o hospital.

Olhando pela janela, vejo o deserto imenso, não o das metáforas, mas aquele que me persegue nas páginas, o verdadeiro deserto.

era 1957, quando a The New Yorker publicou minha história Defender of the Faith. Eu tinha 24 anos, e ser publicado pela The New Yorker era realmente excitante. Eu estava morando na parte baixa de Lower East Side. Era uma terça, e eu fiquei andando do lado de fora da banca de revistas da 14th Street esperando a chegada da revista. Finalmente ali estava ela, e eu a peguei e levei para meu apartamento. As primeiras horas eu fiquei apenas olhado para ela. Então eu a li, e cheguei ao final onde estava o meu nome. Então eu voltei para o começo e li novamente. Então eu cheguei novamente ao meu nome. Esse foi meu dia

Após a verificação de meu seguro saúde, uma enfermeira lava minha boca e um jovem médico analisa detidamente meu estado. Às apalpadelas, verifica o tônus de meu peito, costas, cuidando para que em local algum haja rigidez maior ou menor que as previstas. Finalmente, após deixar que eu me vista, pede que eu abra a boca, descobrindo o único trauma visível: um dente quebrado. De volta à recepção, recebo um cartão com o endereço do dentista.

o dia seguinte eu atendi a um telefonema de meu editor na The New Yorker, com ele dizendo que a história tinha provocado uma tremenda resposta — primeiro telefonemas indignados, então, um dia ou dois depois, cartas furiosas. E a coisa continuou. Medicina forte para um escritor de 24 anos de idade

A secretária me atende sem erguer os olhos, continuando a ler um capítulo de Casei com um comunista.

— Está adiantado.

Não há cadeiras vagas, por isso sento na mesinha de centro. Uma senhora de cabelos ralos e dentadura frouxa resmunga algo para sua vizinha, o que causa nenhuma reação. A jovem de cabelos vermelhos continua a folhear Pastoral americana

(o que acontece?)

parando apenas para ajeitar os óculos e, disfarçadamente, encarar meu perfil recurvado. Acho que ela sorri quando pego o A marca da humana de sob a pilha de revistas. Era ele ou semanários com fotos de Sadan, Bush e dezenas de rostos parisienses desprovidos de qualquer anúncio de alegria e satisfação.

(eu deveria anotar tudo, seria uma boa história, a guerra acontecendo no deserto exterior enquanto a falta de conflito faz expandir o deserto interior…)

em 1981, após a morte de minha mãe, eu terminei de ler Coelho está rico, de Updike. Ele sabe tanto sobre golfe, sobre pornografia, sobre garotos, sobre a América. Eu não sei coisa alguma sobre coisa alguma. Seu herói é um vendedor da Toyota. Updike sabe tudo sobre ser um vendedor da Toyota. Em New England eu vivo no campo e não sei nem mesmo o nome das árvores. Quase desisti de escrever

(complexo de abstinência)

Com a demora em ser atendido, a adrenalina desaparece de meu sangue, filtrado e excluído de mim nos litros de urina que vão se acumulando em minhas bexigas. Chega o momento que preciso mexer as pernas, apertar as coxas, respirar mais fundo para que o diafragma pressione as vísceras. Mas nada adianta.

— No corredor, à esquerda.

Vou com o livro sob o braço, e quando volto, a recepcionista me dirige um olhar de reprovação por eu ter levado o volume ser pedir, mas antes que diga qualquer coisa, pergunto se demora para eu ser atendido, que minha boca me incomoda, que toda vez que a língua roça a fratura tenho ganas de gritar.

— Todas essas pessoas estão na frente do senhor. E todos são pacientes emergenciais.

Em um ataque de bom humor, finjo que estou prestes a desmaiar. Amolecendo os joelhos, apoio as mãos sobre o balcão e faço que vou cair, mas desisto diante da apatia geral,

— Fui atropelado e acho que ainda não me recuperei

sem sorrisos, apatia geral

vejo a ficção como um chamado religioso. No dia do enterro de minha mãe, enquanto as coisas aconteciam, eu tomava notas

quase euforia sob os olhos murmurantes que acompanham, disfarçados pelas páginas dos muitos livros, a entrada de um novo paciente, nascido em 19 de março de 1933, em Newark. Ele cruza a extensão da sala de espera vestindo camisa cáqui, de mangas compridas, calça de veludo cinza e jaqueta bege. Na mão direita carrega uma sacola de compras, da Sacks. Ao vê-lo, a recepcionista fecha imediatamente o livro e se abre em sorrisos. Tomando o cuidado para que o novo paciente veja o que lê, ela explica que o dentista o está esperando e que não tem problema algum o atraso, algo normal levando-se em conta os confrontos de rua e passeatas em protesto contra a guerra.

— Tem certeza?

(eu não aceito)

Súbito, sou assomado por uma dor assombrosa, que me faz gemer ruidosamente enquanto chego até o balcão. Trançando a língua nos dentes, sem reconhecer o esperado,

— Eu ão aen’to ais… eiso er at’en’i’o.

coloco-me ao seu lado, revelando em meu rosto o mais assombroso dos estertores.

— M’e aud’a!

Perdendo a calma, a recepcionista levanta-se e me diz, furiosa:

— Eu já disse que há outras pessoas na frente e…

— O que aconteceu com ele?

— Nada! Foi atropelado e acha que por isso…

O olhar de susto e irritação faz com que a jovem recepcionista interrompa sua fala e volte a sentar-se e, com um tom de voz mais baixo

— O caso dele não é tão grave. Ele está fazendo isso só para ser atendido antes.

— E eu só estou aqui para lustrar uma obturação. Ele entra comigo e o doutor decide se é grave ou não.

uns poucos meses antes do livro ser lançado, eu comecei a ter a impressão de que algo estava errado. Eu não tinha apenas escrito um livro, como eu pensava, mas eu tinha me tornado alguém que tinha tomado uma posição a respeito de algo. O que eu fiz foi aquilo que, na imaginação popular, e na mídia, Roth e Portnoy podiam ser fundidos em uma mesma pessoa

Em uma cena patética, eu vou ajudado pelo homem de setenta anos, enquanto todos os outros que esperam, assim como a recepcionista, vêem aumentar o sentimento de frustração por não terem se adiantado e pedido os autógrafos tão esperados.

quando o Complexo de Portnoy foi publicado, em 1969, foi difícil para mim entender o que estava realmente acontecendo. Eu não tinha nenhuma experiência anterior do que seria ser famoso. Por outro lado, eu estava muito excitado pelos comentários feitos ao livro. Haviam convites para entrevistas comigo, para artigos sobre mim, e eu estava apreciando tudo isso

Com uma rápida troca de palavras meu benfeitor convence o dentista a me atender, e, sem que eles se dignem a me dar atenção maior que o socorro profissional, entabulam amistosa troca de cumprimentos, que culmina em uma troca de piscadelas, que revela porque no teor da conversa que acontece enquanto sou mantido mudo, boca escancarada pelo aparelho que me impede de mexer um milímetro sequer meu maxilar.

— David, você pensa sobre a morte?

— Nathan, por alguma razão, a morte me alivia. Ela nunca falha.

— Você não pode sentir alívio por isso.

— Eu não deveria ser assim…

— Ainda que eu tenha certeza do inferno final… O holocausto nuclear está bem no nosso caminho.

— E isso alivia minha alma escura.

Zuckerman pergunta abruptamente.

— O que é sua alma escura?

— Meu senso de que é verdade que todas as coisas estão fadadas à destruição e não há nada que possamos fazer a respeito.

— Há um demônio, não há?

David cai na risada.

— Agora eu estou me tornando inteiramente escuro.

— Eu sinto muito.

E esquecendo de minha presença.

— Você consegue escrever quando está em um estado de escuridão?

— Consigo.

— Eu não. Eu preciso trabalhar em um estado de vivida luminescência.

Ao deixar o consultório, mal interrompo a conversa que, após fechada a porta, continua no mesmo tom. Eu, por meu lado, esqueço a idéia de viajar e caminho até a beira do Sena e, em um daqueles muitos cafés preparados especialmente para agradar turistas, sento e peço um café turco. Enquanto bebo, como alguns biscoitos e reinicio a leitura de A marca da humana. Por alguma daquelas razões obtusas, paro de ler logo que termino o primeiro parágrafo e, em vez de secar a xícara, pago a conta e vou na direção do centro da cidade, procurar em alguma daquelas lojas próximas ao Boulevard Saint German um bom processador de texto, algo novo, capaz de substituir satisfatoriamente o computador que vendi para levantar dinheiro para minha viagem.

você sabe, quando você é seu próprio digitador, você não se preocupa com o que as pessoas vão pensar. “Meu Deus, aquele personagem pode ser Roth. Que besteira!” Você tem outras coisas com que se preocupar, do que se distrair com o que você está fazendo, que é tentar escrever ficção convincente

sem me perturbar pelas milhares de pessoas que me circulam sem me ver, quase enlouqueço de ansiedade, apenas supondo o que as primeiras linhas irão originar assim que eu esteja de volta ao meu apartamento, com as janelas abertas, ladeado por uma boa bebida, de volta à realidade que me existe, dando conta que as verdades se referem não às tolas palavras ditas informalmente, mas àquilo que está escrito, rescrito, tantas vezes relido que míngua em volume até perder o sentido de existência, e mesmo assim persistem sendo a razão de tudo. Se deixo o mundo invadir meu mundo, nada mais me resta.

geralmente, nos primeiros meses após terminar um livro, eu descubro que tudo aquilo com o que eu comecei é realmente apenas meu velho e falecido amigo voltando para o cobertor em sua cova. É desagradavelmente difícil cortar os laços e abandonar um caminho no qual as coisas são facilmente percebíveis, um caminho que apresenta coisas que deram muito trabalho para serem estabelecidas em primeiro lugar. Mas eu encontro um jeito se eu apenas me mantenho indo, mais seis ou sete meses, eu deixarei em algum lugar os fantasmas dos restos e estarei pronto para escrever algo novo

(apesar de tudo, estou longe de ser um santo oriental).

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho