Encontrando Mishima

Yukio Mishima dedicou sua vida à arte de desvendar o espírito japonês
Yukio Mishima, autor de “Cores proibidas”
01/04/2002

Tomei um vôo, sem escalas, até a cidade luz. Desci no Aeroporto Charles De Gaulle às 8 da manhã, debaixo de chuva.

Durante a viagem, revisei minhas anotações. Em 25 de novembro de 1970, às 11 horas, acompanhado de quatro componentes de sua milícia particular, a Sociedade Protetora (Tate no Kai), o escritor, teatrólogo, três vezes indicado ao prêmio Nobel, Yukio Mishima, 45 anos, chega em visita ao Quartel-general Ichigaya, do Exército do Leste. Após tomar como refém o General Kanetoshi Mashita, faz um discurso frente às tropas pedindo o retorno das tradições guerreiras do Japão. Suas palavras são recebidas com escárnio. Sem mais, com o grito de

— Longa vida à sua majestade, o Imperador

entra no escritório e comete seppuku. Masakatsu Morita tenta por três vezes decepar sua cabeça. Nervoso, falha criando um enorme constrangimento.

O saguão do aeroporto está agitado. Painéis com o rosto de Yukio Mishima e de atores de Butoh anunciam a exposição fotográfica de Eiko Hosoe. Perdido no escarcéu de imagens e viajantes, pergunto a um negro vestido com trajes marroquinos qual o meio mais rápido de chegar ao Centro Georges Pompidou. N’Gabu Nadour sorri

(— Kimitaka Hiraoka? Brinca com o nome verdadeiro de Mishima)

e, durante a carona, me confessa sua paixão pela artes marciais e, principalmente, pelo escritor.

— Ele nasceu em 1925, em família nobre. Seu primeiro texto foi publicado aos sete anos. A partir de então, ano a ano, produziu e editou em revistas escolares poemas, contos, ensaios, novelas. Aos 16 anos, adotou o pseudônimo. Aos 20 anos, recebeu o primeiro cachê. Em 1947, formou-se em direito pela Universidade de Tóquio, indo trabalhar, por pouco tempo, no ministério das finanças. Lá, é aconselhado a dedicar-se à literatura. Criou 40 novelas, 18 peças de teatro, 20 volumes de contos e muitos ensaios.

Como bom fã, Nadour leu a tetralogia O mar da fertilidade, além de Confissões de uma máscara, O marinheiro que perdeu as graças do mar, O pavilhão do templo dourado, Neve da primavera, Cores proibidas, Sol e aço, os contos de Morte em pleno verão, e mesmo suas Cinco peças modernas de teatro Noh.

— Ele lançou seu primeiro romance, Confissões de uma máscara, aos 23 anos. Kawabata Yasunari, que ganhou o Nobel em 1968, dizia que quem devia ter ganhado era Mishima. Eu acho que Cores proibidas fala da relação deles. Um jovem dominado por um escritor velho.

O sinal vermelho nos faz parar ao lado de um imenso outdoor onde Mishima, com o torso nu, empunha uma espada. Antes do sinal abrir, Nadour comenta com seriedade:

— Eu queria estar lá.

Enquanto a polícia do exército aguarda junto à porta, no pátio, os soldados tentam escalar as paredes aumentando ainda mais o nervosismo. Vários comentam a obsessão de Mishima pelo suicídio, assim como a relação que fazia entre sexo e morte. A história mais citada é o conto Patriotismo, sobre um casal que se mata após o sexo, isso durante o ferver do incidente de 1936.

— Ainda há tempo,

o general grita disfarçando seu temor egoísta. Furo Koga, dos quatro acompanhantes, o espadachim mais bem preparado, sabe que é mentira. No entanto, entende que é preciso dar um fim à agonia de seu líder. Com firmeza, abre os dedos de Morita e pega a espada. Mal há tempo para Mishima piscar em agradecimento, sua cabeça rola sobre o tapete vermelho indo parar junto aos pés da escrivaninha. Envergonhado, Morita tenta rasgar o ventre mas o corte é raso demais.

— Que importa?,

uma vez mais, Furo escorre a lâmina através de carnes, nervos e ossos.

Um minuto…

ainda lívido de furor, acompanhado de dois companheiros sobreviventes (Masayoshi Koga e Masahiro Ogawa), deixa a sala rumo à prisão. Em 27 de abril de 1972, são condenados a quatro anos de reclusão.

Às 10 horas, Nadour estaciona o carro e vamos correndo sob chuva torrencial até o belo edifício. Meu companheiro me esquece, ansioso que está por entrar no auditório; eu, mais pudico, aproveito minha mochila e vou ao banheiro trocar a roupa molhada.

Uso uma luminária como cabide. Seminu, esvazio a bexiga antes de me vestir novamente. De hábito, estou de olhos fechados nas últimas gotas e não dou atenção ao som da porta se fechando. Somente ao me virar, encontro aquele japonês de porte elegante e olhar surpreso

(— Você me faz lembrar alguém.)

afundado dentro de um paletó mal cortado.

— Mishima?

— Não. Hijikata Tatsumi sensei.

É ele, Furo Koga.

Tóquio, 1959, total escuridão. Estão presentes integrantes da Associação de Dança Artística Japonesa, muitos curiosos e uma figura de destaque: o escritor, de 34 anos, Yukio Mishima. Ele não gosta da sombra que o cobre. É impossível saberem que está elegantemente vestido com uma camisa preta, de gola rolê e terno justo que destaca os músculos inchados nas sessões de musculação. Se não foi para ser visto,

(— Tanto sua beleza perfeita quanto sua infelicidade.)

para que veio? Mais do que assistir a uma peça de dança baseada em sua obra publicada em capítulos entre 1951 e 1953, Cores proibidas (Kinjiki), quer comparar seu corpo aos daqueles que vivem de exibir os seus

— A vida humana é muito breve e eu viverei para sempre.

No palco, os corpos movimenta-se lentos, pesados. O garoto de 16 anos, Yoshito Ono, prende uma galinha entre as coxas como se estivesse fazendo sexo. Os minutos passam, a galinha é estrangulada e o homem mais velho, 31 anos, Tatsumi Hijikata, avança sobre o garoto obrigando-o a submeter-se ao estupro. Muitos dos presentes abandonam o salão. 16 minutos se passaram, poucos aplausos, Mishima vai até o camarim

(— Finalmente um sopro de vitalidade nas artes japonesas. A cada nova apresentação confeccionarei uma máscara e me cobrirei de incensos para me purificar apropriadamente.)

e passa a freqüentar o estúdio do Ankoku Butoh (dança das trevas), como colaborador, como dançarino. É o grande mediador de conhecimentos desse movimento em que também participam como fundadores Kazuo Ono e Akira Kasai.

— Pretendo morrer antes dos 50, deixando um belo corpo.

Eu me visto sob os olhos de Furo. Tento ser rápido. Me incomoda aquele tantô (faca guardada em bainha de madeira) em sua cintura.

Sensei dizia que os ocidentais constróem casas de dois andares com escadas. As escadas são o método e todos as usam. Assim foi edificada a civilização ocidental. Após a era Meiji, o Japão também usa o método, mas, antes, nós apenas construíamos os dois andares, cada um decidia como subir. Demorei a entender…

Duzentos e quarenta pessoas, mais as que estão em pé, lotam o salão. Furo está ajoelhado sobre uma almofada fina, com todos os botões da camisa abertos. O paletó descansa cuidadosamente dobrado sobre a mesa. Metade da lâmina está enrolada em uma toalha branca.

Uma garota começa a rir de uma gracinha feita pelo namorado. O silvo que corta o salão a obriga a sair.

— Mishima sensei chegou ao quinto dan de Kendô, e fez Iaido e Karatê, mas era nas lutas com a espada de bambu que se saia melhor.

Furo não se move enquanto massageia os músculos abdominais

(— Ele gostava de atuar em cenas de seppuku.)

mostrando como deve ser amaciado o local onde irá penetrar o aço.

(— Há mais de vinte mil ideogramas possíveis. Eu sempre uso um dicionário para garantir a correção de meu texto. Veja a grafia de rosa, como o ideograma se parece com uma rosa. O escritor sempre busca dar algum efeito a seus leitores. Em japonês, as palavras tem mais relação com a realidade.)

Nadour faz o papel de segundo,

(— A lâmina deve entrar abaixo das costelas flutuantes, do lado direito e correr diagonalmente até o lado oposto, quando irá subir dividindo o baço. No momento em que a agonia é maior, aquele que já está morto faz um sinal de que ainda guarda consciência.)

aquele que deve acabar com o sofrimento do suicida. Sua seriedade é assustadora.

— Eu fui convidado a entrar na Tate no Kai logo após um jantar na vila italiana de sensei. Sua esposa e seus dois filhos estavam em outro cômodo. Saímos de sua sala renascentista e fomos até o escritório. Ali, ele me mostrou sua espada mais preciosa, e me perguntou se eu entendia o que significava yamato damashi, o espírito japonês. Eu disse que sim, que entendia. Então ele pediu que me ajoelhasse. Eu bebi demais aquela noite e achava tudo engraçado, pelo menos até que a lâmina tocou minha pele…

Durante a Segunda Guerra, Mishima foi magro e pálido ao exame militar. Vitimado por febre alta e um forte resfriado, acabou sendo dispensado sob suspeita de tuberculose. Fora do campo, teve um acesso de risos enquanto corria aliviado. Pela manhã, antes de se dirigir à morte, Yukio Mishima (neve, a cidade que observa a neve sobre o monte Fuji) entregou a seu editor o último livro da tetralogia O mar da fertilidade, romances tematizando a reencarnação.

Em Paris, a chuva continuou durante toda a semana, e quando o sol voltou a brilhar, os cartazes de Mishima haviam sido retirados. Em seus lugares foram colocadas imagens de modelos. Estava para começar a nova temporada de desfiles de alta costura.

Cores proibidas

Yukio Mishima
Companhia das Letras
576 pág
Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho