El Paso. Por aqui se ouve tanto castelhano quanto inglês e o chapéu de abas largas não é enfeite. As ruas são de asfalto duro para suportar o sol desertificador. As rádios tocam rock, pop, rap, mas é o country que predomina. Loiras opulentas, chicanas acabrunhadas dividem as calçadas. Fronteira com o México é assim mesmo.
Estou há uma semana tentando contatar Cormac McCarthy, o escritor dos escritores. Após a explosão de vendas de sua Trilogia da Fronteira: Todos os belos cavalos, A travessia, Cidades da planície, ele deixou de ser um personagem cult para tornar-se uma celebridade popular, o que não diminuiu a qualidade de seu trabalho, muito. Don DeLillo afirmou anos atrás que McCarthy foi o maioral durante a década de 1980. Gente como Norman Mailler admira seu estilo despido de psicologismos e rodeios intelectuais. Seu Meridiano sangrento é aclamado, em tom de piada, como o livro mais sanguinolento desde a Ilíada — no que está certo. E mesmo os críticos dizem que McCarthy é grande. Desde seu primeiro livro, The Orchard Keeper, 1965, consideram-no o sucessor de Willian Faulkner, tanto que ganhou o prêmio que leva este nome, assim como o da Academia Americana de Artes e Letras e a bolsa da Fundação Rockfeller. Graças à esse dinheiro, e de outros prêmios que vieram de trabalhos posteriores (Outer dark, 1968, Child of God, 1973, The Gardener’s son [roteiro], 1977) McCarthy sobreviveu para chegar ao sucesso.
— Moro atrás do shopping, onde havia uma lavanderia. É pequeno para dois, mas para mim serve. Tenho dinheiro para deixar El Paso, mas para onde? Já fui sem-teto, morei em hotéis, dormi em banheiros de postos de gasolina, o que me resta?
Apesar de sua agente Amanda Urban, da International Creative Management, me garantir que seria perda de tempo,
(— Até hoje ele só deu uma entrevista.)
tomei o avião e vim. Não serei o primeiro a dar com os burros na areia, mesmo o jornal local, The El Paso Herald-Post, quando tentou homenageá-lo com um jantar e uma placa de bronze, amargou a espera frustrante. Se falhar, não me sentirei incapaz, no máximo, desidratado.
Em 1933, nasceu em Rhode Island. Aos quatro anos, mudou-se para Knoxville. Na vida e nas experiências ali acontecidas, McCarthy baseou-se para escrever Suttree.
— Ninguém conhecia seu lado negro, disse um amigo retratado nessas páginas.
Desde 1976, vive em El Paso.
— Sempre gostei do sudoeste, da vida selvagem. Você sabe, não tem lugar no mundo que não se ouça falar de cowboys, índios e do mito do oeste.
Meu avião parte no fim da tarde, mas continuo tentando. Neste momento, estou no Pueblo Viejo, um desses saloons abundantes na parte velha da cidade. O gerente do hotel me disse que Macarthy costuma vir fazer compras por aqui. Peço uma garrafa de água mineral. O barman coça a orelha e
(— Homem toma uísque e cerveja.)
continua a limpar o balcão. Pego a garrafa, vou sentar em uma das muitas mesas vagas. Na penumbra, acabo tropeçando em uma lata vazia. Se o velho cowboy não me segurasse, eu dava de cara no chão.
— Cuida-te.
Ele é magro, rosto afilado e usa um chapéu branco daqueles que se vê em propagandas de cigarros. Move-se com os quadris soltos, como se estivesse esperando o início da música. Por reflexo, agradeço
(— Obrigado.)
em português. Ele aperta os olhos e pergunta de onde sou. Ao saber que venho do Brasil, abre o sorriso e me convida a sentar. Não comento, mas acho estranho aqueles bonecos de animês japoneses — Pokemon, Dragon Ball, Samurai X, e outros que não conheço — enfileirados no canto da mesa.
— É passatempo. Já tive todos os que você pode imaginar, mas estou sempre procurando novos. Pessoas como eu não vivem entediadas, não lembro de ter passado por isso. Tudo é interessante.
Chama-se Charles. Sua voz é tranqüila e fala misturando palavras antigas com gírias modernas. Tem ritmo e sintaxes elegantes.
— Se vai passear fora da cidade, cuidado. No deserto do Mojave, as cascavéis têm como veneno uma neurotoxina muito parecida com a das cobras. E alarga um sorriso que não revela os dentes. É muito interessante ver na natureza um animal que pode deixar você morto no cemitério.
Anne de Lislle, a segunda esposa de McCarthy, lembra com saudades o tempo em que viveram juntos. Apesar de dormirem em traillers, tomarem banho no lago e mal terem dinheiro para o feijão do dia seguinte, seu marido se recusava a dar palestras, aulas, ou o que estivesse ligado à literatura.
— Está tudo no livro.
Mesmo ofertas de dois mil dólares foram recusadas.
— Literatura é o caminho, o caminho para não falar comigo.
Nunca pagou pensão a nenhuma das duas ex-esposas por nunca ter com que pagar. A poucos anos retomou relações com o filho do primeiro casamento. Gastos? Sete mil livros espalhados em vários depósitos.
Charles toma uma coca-cola dietética e faz diversas perguntas sobre o Brasil. Diz ter curiosidade pelo país do futebol,
(— As meninas daqui gostam.)
mas que dificilmente irá visitá-lo. Mal tem tempo para passear pelo deserto e reconhecer o que ali existe.
McCarthy é conhecido pelas suas ambientações, personagens tão fortes quanto qualquer protagonista. Ele só escreve sobre lugares que conhece, informação que acrescenta mas não explica seu talento.
— Uma pena terem acabado com os coiotes. Há um projeto para reintroduzi-los, só depende dos esforços dos fazendeiros. São como ursos, vivem de comer pequenos animais, porém, sem mais nem menos, podem se virar contra você. Nunca fui atacado, mas acredito no que ouvi.
Após abandonar o curso de Artes na Faculdade do Tenesse, em 1953, McCarthy entrou para a força aérea e foi servir, por três anos, no Alaska. Sem o que fazer, desencavou livros e tornou-se um leitor contumaz.
— Eu sempre soube que sabia escrever,
mesmo assim, antes da Trilogia da Fronteira, seus títulos vendiam na média cinco mil volumes, o que é pouco para o mercado americano.
— O que é horrível nos livros foi feito fora dos livros. A novela depende, para viver, de outras novelas já escritas. Bons escritores são Melville — Moby Dick é meu livro preferido —, Dostoievsky, Faulkner. O que escrevem trata de situações de vida e morte. Proust e Henry James eu não entendo. Pra mim não é literatura. Há muitos escritores que são considerados bons e eu os acho estranhos.
Seu primeiro editor, Ralph Ellison Erskine, da Randon House, também editou A sombra do vulcão, de Malcolm Lowry, e grande parte da obra de Faulkner. Nunca ganhou dinheiro com McCarthy. Uma relação de pai para filho.
— Só essa vez mandei originais, e para a Randon House porque era a única editora que eu conhecia.
Acaba de chegar um ônibus de turistas. São japoneses, alemães, franceses, vestindo bermudas, bonés brancos e armados com máquinas fotográficas. Charles se afunda na cadeira até que a linha de seus olhos pareie com a borda da mesa. Logo que os invasores partem, Charles junta os boneco em uma sacola de pano, levanta e se despede.
— Preciso ir. Estou trocando o piso lá de casa.
Junto à porta, pergunta se vou ficar mais tempo na cidade. Respondo que não. Diz que é uma pena, que há muita coisa a ser vista. O deserto, após as chuvas, tem uma beleza incomparável.
— Vida e morte. Não acontece muita coisa sem derramamento de sangue. Eu acho que a noção de que as espécies podem melhorar, que todos podem viver em harmonia, é uma idéia realmente perigosa. Aqueles que estão preocupados com essa noção são os primeiros a venderem suas almas, suas liberdades. O desejo de que isso seja o caminho escraviza e deixa a vida vazia.
Para McCarthy, o grande bem que as altas vendas de seus livros derivaram foi a compra de uma caminhonete, no mais, a vida continua a mesma. Ainda é fiel à sua Olivetti manual.
— Cormac foi um rei irlandês, não foi?
Charles sorri.