Portugal é uma vila. Apesar da comunidade européia, dos novos edifícios de vidro e aço, Portugal é uma vila. A melhor comida está nos pequenos bares, fora da cidade reconstruída, longe da Feira Mundial. Mesmo assim insisto em um restaurante para turistas. Como mal, preciso de um antiácido. Gasto minutos preciosos no banheiro, gasto meu pouco dinheiro em um táxi senão me atraso… Foda-se, belos dias em Lisboa doem punhaladas. Dou gargalhadas de minha dor e cada disparo aumenta minha graça. Vamos eu e o motorista de janelas abertas evitando meus odores orgânicos
seu sangue é brasileiro, seus sobrenomes, Lobo e Antunes, são brasileiros. Clarice Lispector o considerava um homem bonito. Tinha o mesmo agente de Guimarães Rosa, de Jorge Amado,
foda-se quem diz ser ele o melhor pós-moderno europeu
sua linguagem polifônica afasta e atrai
do corredor escuto os lances do jogo entre Porto e Real Madrid, copa da Uefa. Demora a atender. Quinhentos mil dólares de adiantamento dos editores alemães, família abastada portuguesa
— a surdez é algo hereditário em minha família. Minha mãe, meus tios, meus avós
Mimi, de Exortação aos crocodilos também, Celina, Fátima e Simone ouvem menos que pensam. Espanta saber que o livro é o escombro da construção original três vezes maior
desliga educadamente a pequena televisão enquanto apoio meus glúteos secos junto à janela, ao lado de um casal de gatos que se perdem a observar o bairro de Benfica, a brisa e o sol mediterrâneo. Contraste entre a claridade ao longe e a sombra
por que me olha com tanta intimidade e me sugere conforto? Teve todas as chances, teve tudo e realizou
três poltronas sem braços, uma cama, uma escrivaninha, um armário repleto de colantes de jogadores do Benfica da década de sessenta, um livro aberto ao lado de papéis manuscritos,
— escrevo doze, treze horas por dia, para dormir tomo um valium senão continuo andando de um lado para outro imerso. Há uma cita que diz que é necessário que o escritor sofra para que o leitor tenha prazer
desde cedo, quatro aos oito anos, tuberculose e solidão. Leitura para comprimir o tempo — mamãe leu Proust várias vezes — crítica condenou os primeiros poemas. Quer Letras aos quinze anos, papai matricula em Medicina — hoje agradeço, senão escreveria como Camus ou Sartre ou seria um crítico literário
seguir a tradição, papai dizia
— nunca faça nada que vá se arrepender mais tarde
nos verões ler um capítulo de Madame Bovary e comentar; ou discutir uma sinfonia. Céline aos quatorze anos
não me censura o sonoro eco de bacalhau em mim. Apenas afasta-se um pouco mais recostando-se na estante de livros
— aos catorze anos entendi que há uma diferença entre escrever mal e escrever bem, aos vinte, vinte e cinco me desesperei ao descobrir que também existe arte
aceito um pouco de chá de camomila. Não queremos mais ouvir meu cu. Vejo-o como uma senhora educada, alguém perdido nas tristezas do passo lento, quatro anos de guerra, candidato — uma única vez — pelo partido comunista, desilusão — foram os que mais sofreram com a ditadura, caso desistissem de suas crenças estariam admitindo o fracasso de suas vidas — os poucos amigos tornam-se menos
— literatura não se ensina mas se aprende e há pequenos truques muito fáceis que te ajudam muito — como Hemingway, ídolo — nunca deixar para o dia seguinte uma frase terminada. Deve deixá-la pelo meio porque é mais fácil continuá-la
depois da aposentadoria como psiquiatra escreve e escreve. Separou-se de Maria José em 1976. Ela tinha dezessete, ele vinte e cinco quando se conheceram. Uma beleza espantosa — Memória de elefante foi escrita após — três meses depois de lançar em 1979 ficou famoso. Na volta da praia tinha vendido duzentas mil cópias, três meses depois lança sua segunda novela e mais seiscentas mil — tive poucas mulheres — tolice separar-se, minha única paixão, mas na época, no clima da revolução dos cravos, todos
— morreu em 1999
o velho Jorge Amado disse, menino, há duas coisas importantes na vida: amor e amizades/ os cavalos brancos passam apenas uma vez — espera duas três… — pode-se amar e escrever, amores são substituíveis, amigos não
houve uma bela jovem, inteligente, mas não
começou a escrever uma novela ao lado de Maria José que pesava vinte e sete quilos e cada vez mais câncer no rim comprometendo planos que ela, colecionadora de manuscritos — mesmo os bilhetes cotidianos Beijos, António — decepcionada com a perda do Nobel em 1995, chorou, desde os dezessete incentivou-o a escrever. Quem mais acreditou
— vais ganhar todos os prêmios
controlo desesperadamente a pressão interna. Meu ventre câmara de pneu grita. Quero ouvir mais, quero saber, fecho os olhos e tonteio, minhas mãos tremem a xícara vazia sobre o pires de louça branca e filigranas douradas. Os cacos espalham-se no assoalho de madeira gasta. Fatalidades, quatro joelhos,
Exortação aos crocodilos. Uma personagem morre de câncer no rim, outro morre em um acidente de automóveis — morreu meu grande amigo e editor acidentado de automóveis — seu romance mais bem escrito
— não, porque penso que se tivesse trabalhado mais ainda melhoraria. Poderia ter limpado mais a prosa. No próximo me corrijo. Continuo a escrever para corrigir o último trabalho
alcançar o impossível. A ordem natural das coisas, O esplendor de Portugal, O manual dos inquisidores, Exortação aos crocodilos são os poucos lançados no Brasil, onde não se preocupa pois problemas são traduções e
— a estrutura é musical, sempre. Normalmente, o que um romancista faz é utilizar uma narrativa. Quando você tenta dinamitar o romance o que para mim é o mais importante é tentar fazer sem a narrativa. Tento escrever um romance sem o fio da narrativa. Erguer personagens, erguer emoções, sentimentos, sem a ajuda desse fio narrativo. O romance cresce como uma pedra que cai num poço e vai formando círculos concêntricos. A história é o de menos, é um veículo de que te serve; o importante é transformar essa arte, e há mil maneiras de fazê-lo, mas você precisa encontrar a sua. As emoções são anteriores às palavras, procurar que as palavras signifiquem essas emoções, esse é o desafio impossível e é o que eu acredito que se deva buscar
Não entres tão depressa nessa noite escura é o último lançamento em Portugal. Mais mulheres, travestis, drogas
— gasta-se tantos anos buscando a própria voz, até que o estilo torna-se uma prisão
tenho licença para ir ao banheiro. Faço uma sinfonia que se amplia pelas paredes velhas. Saio repetindo suas palavras — escrever feito diarréia
— você está certo, preciso trabalhar
sem mudar a tristeza pacata de seu olhar, passa os dedos sobre as lombadas de muitos livros e sorri. Arrastando os pés sobre o assoalho, caminha na direção da porta de saída. Vou logo atrás e antes que eu me desculpe
— ver minha mulher morrer me trouxe grande tristeza, mas também uma estranha alegria. Fui um estúpido em me separar para viver só e deprimido, e nesse momento não era capaz de escrever
um dos bichanos enrosca-se em minha perna
— mais dois livros e paro
curvo e acaricio o gatinho
— antes dos trinta não se tem vivência, após os setenta não se produz grandes coisas. Pobre Saramago…
desço as escada lentamente. Finalmente meus intestinos acalmaram. Estava tão escuro quando subi? Umidade e o cheiro de mofo levantando a cada passo, agora o breu de meus sentidos tolos ou vergonha. Passo. Me tenho na calçada. Olho para o prédio de paredes pardacentas procurando a janela certa. Aparece, vai
coerente com o amor que diz ter crescido em seu peito após a morte de Maria José, deixa ver o branco de seus cabelos e faz uma leve mesura libertando-me para partir. Desço a ladeira a pé, pois estou com as notas e moedas contadas. Condução ou jantar. Como é duro não saber a diferença entre boa escrita e arte.