(Trabalhar com a memória é uma bosta!)
Ontem, no consulado brasileiro, Maria Theresa me garantiu que a documentação de meu visto, apesar de atrasada, não ia me causar complicações, que estava
— tudo bem. Qualquer coisa a gente pede para o Charles dar um jeitinho.
(a gente dá saltos e saltos sem conquistar área alguma,)
Agora, aqui estou eu, em Trafalgar Square, esperando o famoso ônibus vermelho que me levará até a foz do Tâmisa, em busca da casa de um lorde inglês apaixonado pelo Brasil (tanto que tem a floresta amazônica pintada na parede de seu quarto).
(fazendo acertos para que o verbo faça a história ter lógica,)
Como eu não conheço bem a velha Albion, Samuel me serve de guia.
— Eu ainda acho que você devia deixar esse leite azedo para lá. Vem ficar um tempo em Haaglanden. O Wil vai adorar. Ele gosta muito de você. A gente podia ir juntos para o Brasil…
— Fica tranqüilo, Samuca.
Na Holanda, Samuel é policial, Wil é diretor de escola primária. Deviam ter vindo juntos passar uma temporada na capital inglesa, mas uma dificuldade com o calendário impediu Wil de vir.
— Essa TPM ainda me mata, Samuel reclama, mas tem seus motivos. Levanta-se. Ai meu deus, como demora…
Se Mishima era homossexual no sentido dórico, másculo, Samuel é bicha.
(e tudo o que realmente temos é o presente aprofundando o desgosto das horas.)
Com os protestos antiglobalização e a visita de George Bush ao palácios de Buckinghan, o trânsito aqui no centro está bem lento.
— Vou ajeitar meu suporte e já volto, Samuel entra em um pequeno Pub à procura do banheiro, enquanto eu pego um folheto distribuído pelos manifestantes.
Abro o pequeno jornal.
“Não deixe o mundo acabar. Venha lutar conosco!”
Distraído com a leitura, mal atento para o que Samuel foi realmente fazer no banheiro.
Na página três, fico sabendo que Jim Crace saiu de sua Birminghan e veio para Londres participar dos protestos. Vejam só, um rebelde. O mais surpreendente da notícia é ler seu histórico recente: em maio passado ele e a escritora feminista Germaine Greer boicotaram uma das mais importantes feiras literárias do país, a feira de Hay-on-Wye, que acontece anualmente no País de Gales, simplesmente porque souberam que um dos patrocinadores era a Nestlé, fabricante e anunciadora de um preparado em pó vendido em países do terceiro mundo e que, segundo a OMC, se consumido fora dos padrões recomendados, pode causar efeitos desastrosos em recém-nascidos.
— E por isso eu devo me ajoelhar para esse testudo?, Samuel reclama lendo sobre meu ombro. Vem, vamos passear um pouco. Daqui a pouco a gente pega um táxi. Eu pago, esclarece esquecido dos tempos de Pindamonhangaba, quando mal tinha dinheiro para duas refeições ao dia. Ano passado, meu pai devia ter vindo junto com a mãe…
(o mais irritante disso tudo é que faltam poucos minutos para eu sair e preciso terminar o texto e minhas anotações estão desconexas, muito em inglês, muito em javanês.)
— Trafalgar Square não se parece com a praça de São Marcos, em Veneza, mas também sofre com os pombos, Samuel torna-se bíblico, reflexo do modo de falar de seu pai, evangélico contumaz. Todos os dias a encarnação do espírito santo escurece os céus com suas revoadas (como se o céu de Londres pudesse ser mais obscurecido, penso).
— Ratos com asas, Samuel dá um chute em uma bem branquinha, e volta ao tema Londres.
— Aqui, qualquer manifestação precisa ser notificada às autoridades com antecedência para que os educados policiais cuidem do trânsito e de outros detalhes que permitirão que a vida continue a contento. Na Inglaterra, protesto é material de mídia, não instrumento de complicação urbana. Claro, o atraso no red bus mostra que nem sempre as coisas funcionam…
(— Trabalhei em jornais por dezesseis anos, e ainda me considero um jornalista. Comecei a escrever ficção em 1974. Minha primeira novela publicada foi Continent (1986), seguiu-se The Gift of Stones (1988), Arcadia (1992), Signals of Distress (1995), Quarentena (1998) and Being Dead (2000). Meu trabalho ganhou diversos prêmios, entre eles o Britain’s Whitbread Prize, duas vezes, e The EM Forster Award, e já foi listado para receber o The Booker Prize. Being dead ganhou o National Book Critics Circle Award em 2001.)
Sentados sobre o mesmo leão protetor do museu Birtânico, aguardamos a passagem de Júnior (apelido carinhoso de George Bush). À nossa direita, temos as três centenas de manifestantes, à esquerda Lorde Nelson e aos nossos pés uma pomba azul que não se importa com meu tênis velho desde que eu continue a derrubar migalhas de meu sanduíche de pernil.
— Dá um tapa nessa merda!, Samuel me pede esganiçando a voz, abandonando a contida educação de segundos antes.
Automático, ergo a mãos mas,
— não faça isso, alguém pede. Quando vocês terminarem de comer, ela vai embora.
— Ih, olha o careca testudo do jornal!
Samuel estica sua perna de bailarino e acerta a ponta de seu Nike pink no peito do passarinho, lançando-o em um vôo involuntário que redunda em cambalhotas no meio da pequena multidão.
— Isso só serve para transmitir doenças!
(— Há deuses na ficção. Há fantasmas na ficção. E há vida após a morte. Mas não há demônios, nem aparições na vida real. A ficção, como receptáculo de uma construção da consciência, não é algo anticientífico. Como poderia ser? A habilidade humana para a narrativa não foi dada a nós por acaso. A evolução nos deu isso como uma vantagem, apesar de que não somos os únicos animais ficcionais. Um exemplo: caminhando na Moors, no último verão inglês, eu fiquei sabendo que haviam cotovias, e eu, sendo um naturalista fanático, comecei a procurar um ninho. De repente, um macho começou a saltitar onde o ninho estava, e começou a afastar-se do local, até cinqüenta jardas de distância, chamando e chamando como se lá estivesse o ninho. Pois é, ficção usada como proteção. Esse exemplo cru mostra as necessidades que podem dirigir a ficção. Nunca nós, a humanindade, esteve mais afiada, este é nosso momento definitivo. Nas poses e nos rifes, na repetição de frases, nós adquirimos, nós criamos quem somos, e na memória nós ressuscitamos da morte. Realmente, a totalidade das coisas é drama — fumaça e espelhos. Isso não é engraçado?)
Jim corre socorrer a pequena ave. Enquanto ele a acaricia, desço do leão. Samuel estapeia o quarto traseiro de pedra pedindo pressa ao animal, que se levante de seu túmulo de forma e volte a ser pedra para rolar sobre os babacas que o cercam.
Vejo que a pomba está morta, mesmo assim, constrangido como uma criança pega com a mão no jarro de doces, digo.
— Gosto muito de seus livros. Claro, eu, Updike, Nick Hornby e metade do Reino Unido… sorrio e me arrependo de sorrir.
Sem palavras, Jim se afasta, ainda com o cadáver nas mãos.
— O cara é mais mocinha que eu, Samuel me chama para partirmos.
Penso seriamente em mandar Samuel tomar no… não, ele ia gostar e seria muita falta de consideração com seu momentos.
Ao darmos as costas, não vemos Jim guardar a pombinha em sua bolsa.
(— Eu não tenho a reputação de ser alguém que escreve novelas que seguem uma costura linear, uma progressão lógica. Eu sempre mudo a tacha, quiçá irritando as pessoas, pois posso dizer que todas as vezes eu escrevo um novo livro. Por isso as pessoas ficam surpresas quando eu construo uma novela de mil e novecentos.)
— É aqui, Samuel me aponta o belo sobrado vitoriano. Depois que o Charles voltou de Hong Kong e assumiu a presidência do sindicato dos bancos americanos na Europa, está mais rico do que nunca. (Como se isso fosse possível, penso.)
O menino loiro que atende a campainha é Henry, o filho mais novo de Charles.
— Papai está nas Bahamas, passeando com mamãe, ele me diz ao mesmo tempo que a babá nos convida para o chá.
— Não, eu…
— Queremos sim, Samuel se adianta. E, por favor, aproveite e ligue no celular do Charles. Diz que o Samuca está muito chateado por ele não estar em casa em um momento de necessidade.
A coitada (mil e duzentas libras por mês!) apenas acede e já vai para a outra sala pegar o telefone.
— Adoro a criadagem inglesa! Apesar da entonação te chamar de merda, o sentido das palavras é sempre nobre e sereno. Coisa dos tempos do império.
Sentados à mesa posta com a melhor louça e a melhor prataria comprável na Harold’s, Henry nos mostra seu álbum de fotos dedicado aos esportes, no caso, futebol. Ele mesmo nos conta que é um dissidente na família, pois torce para o Manchester. A camisa que veste é a mesma do goleiro da seleção Inglesa, apenas vinte números menor.
— Oito, senhor.
Eu também gosto da educação inglesa, penso.
(o relógio marca sete e dez da manhã. Sei que devia ter colocado ponto final ainda ontem, duas da madrugada, mas meus olhos estavam tão pesados, a hemorragia no globo ocular incomodava e meus pensamentos confundiam-se com tantos pensamentos que a tal da ordem era pura esbórnia.)
Minutos após o bule de chá ter sido trocado pela quarta vez, a babá volta trazendo um recado de Charles, enviado por e-mail.
— Sir Charles pediu que o senhor fique até amanhã, quando sir estará de volta e poderá, com calma, providenciar ajuda. Quanto a “senhora”, ele insiste que também fique, mas com a promessa de que dará aulas de samba para lady Clair.
Samuel não se importa com o ataque, pelo contrário, na maior educação pede que seja trazido mais bolo. É sua estratégia não entrar em brigas que não tenha provocado diretamente.
— É claro, “senhora”.
Na borda da janela, um casal de pombas observa nossa movimentação. Ao me perceberem, viram-se para a rua e passam a atentar a outros contornos da humanidade. Não me importo, o que não me sai da cabeça é o desencontro com Crace. Ter perdido a oportunidade de falar com o fundador e diretor formal do Birminghan Festival de Escritores e Leitores é terrível. Mas Samuel não tem culpa, foi azar agravado por idiossincrasias pessoais.
Repasso alguns fatos.
Como muitos literatos, Jim Crace, prefere livros de história natural. David Quammen, John McPhee, Barry Lopez…
— Aqueles escritores da vida selvagem são os únicos que eu realmente valorizo. Claro, há ficção que eu valorizo, mas minha obsessão não é por ler ficção, mas história natural. Os escritores que se ocupam da vida selvagem são os que eu realmente admiro.
— Tem arenque?, Samuel continua provocando Janice.
— Não, “senhora”, mas posso providenciar caso seja essencial a seu bem-estar.
Me adianto.
— Não precisa se incomodar.
— Não é problema, o senhor Crace também aprecia o prato.
(os ponteiros do relógio deram um salto de trinta minutos. E ainda falta tanto… e o pior é que cheguei na parte em que o texto está completamente cru. A partir daqui terei que me arriscar a produzir linhas sem revisão, e isso me assusta.)
(— Quando eu morrer, minhas crianças não terão como saber do avô. Quando eu morrer aqueles anos serão um período de graça perdido.)
Min Tanaka, dançarino de butoh, alguém que se intitula o verdadeiro filho de Tatsumi Hijikata, gosta de falar que a solidão é um instrumento de investigação. Mesmo em grupo, a solidão é algo a ser preservado. Ao observarmos a nós mesmos, abandonamos o fio que nos obriga a justificar a história do outro e deixamos de dar continuidade a tantas vidas que se cruzam com a nossa e temos a oportunidade de descobrir singularidades em nossos pensamentos, movimentos, modos que, maravilhosamente nos conduzem ao entendimento de nossa singularidade, ao encontro com o material de uma verdadeira criação que, neste caso, é a constatação da identidade única de nosso ser.
— Deu tudo certo na manifestação?, tento quebrar o gelo.
— Sim, obrigado (odeio a educação inglesa!).
Na sala contígua, Samuel e Henry estão no meio de uma acirrada partida. Pela cara de Samuel, ele está perdendo.
(— The Devil’s pantry não é tão ruim quanto o título. É um trabalho de ficção pós-moderna, uma novela com cem partes que faz pela comida algo parecido com o que o livro de Calvino, As cidades invisíveis, faz pelas cidades. São cem textos de diferentes comprimentos, muito divertidos, muito mágico/realistas, tratando de itens que você poderia encontrar na despensa do demônio ou em sua copa.)
(Uma vez mais olho nas propriedades do texto e vejo que ainda não alcancei o objetivo. Estou na dúvida se deveria simplesmente finalizá-lo e deixar por isso mesmo. Sim, seria simples justificar que isto é apenas um experimento, uma tentativa de passar de forma direta as agruras do momento da escrita, mas eu estaria mentindo… o que, na verdade, nenhum leitor ficaria sabendo caso eu capasse estas inserções em itálico. O que me apresenta um novo problema, com isso diminuiria muito mais a quantidade de toques. Olho novamente em propriedade e vejo que avancei bastante neste entre-parenteses.)
— Você foi jornalista por dezesseis anos, não foi?
Odeio respostas do tipo hum, hum.
— É bom ser ateu?, pergunto sabendo que é um assunto que incomoda Crace.
Henry dá pulos de alegria com mais uma vitória. Samuel também sorri. Tenho esperanças que seu ânimo esteja melhorando.
— Meu pai morreu em 1979, um bom tempo atrás, e nós o enterramos de um modo besta. Eu venho de três gerações de ateus. Quando ele estava morrendo de câncer, apenas aos 67 anos, um homem jovem, ele disse, “eu não quero ninguém em meu funeral. Eu não quero flores. Eu não quero hinos. Certamente sem igrejas ou anúncios públicos. Nada de jornais. Nada de elegias. Eu não quero que vocês espalhem minhas cinzas.” Ele era um homem, não desprovido de sentimos mas um homem sem sentimentalismos. E foi assim, ele foi levado à cova sem que fizéssemos nada. Como tolos, nós fomos lá e o cremamos. E depois o carro fúnebre veio para casa e eu e minha mãe e meu irmão viemos juntos. Sem convidados, ninguém para dizer adeus para sua vida única. Ele foi um avarento, difícil, desastrado, mas ele foi um grande homem, meu pai. Nós devíamos ter dado alguma atenção à sua grandeza, mas nós o ignoramos. Se você é ateu, você sabe que o defunto não vai se mexer no túmulo. Ele não vai se incomodar com as bobagem que forem feitas. Você pode fazer o que você quiser. Mas, é claro, nós fizemos errado. Nós não levamos suas cinzas para serem atiradas no jardim. Seria uma atitude sentimental, mas seria a atitude correta. Gostaria de tê-lo feito. Desde então, não há um dia que eu não pense no assunto.
(olho novamente em propriedade e vejo que cheguei ao fim, mas apenas para concluir, o pai de Samuel era um senhor muito simples, que mal sabia ler e tinha como maior orgulho de sua vida saber que seu menino conseguiu ir para Londres estudar dança no Royal Academy of Dance. O pai de Samuel tinha morrido fazia poucos dias e a estada em Londres devia ser para aliviar a pressão do fato.)