A primeira pergunta é o que pensa de George W. Bush:
(estou cansado, o que mais? na verdade, estou cansado de ouvir tantas respostas, justificativas estúpidas que não dão conta do que realmente é a causa de tudo: o mal, o mesmo mal que assassina, provoca fome, dissemina doenças, infecta a humanidade desde que o primeiro humano se pôs ereto nas savanas africanas)
— O que ele tem a ver comigo? — James Ellroy bebe sua água e ameaça se retirar. — Será que vocês só querem saber disso? — ninguém entende sua irritação anormal.
— Babaca.
Há um toque de mau gosto no paletó feito com tecido de padronagens escocesas e colorido de verde e rosa
(qualquer coisa que digam, repitam, insistam, está errado simplesmente porque o mal existe, e não é maniqueísmo zoroastrista, mas a constatação lógica após dois mil e quinhentos anos pendendo entre correntes filosóficas e deuses de mil faces e idéias que tentam manter intacta a forma, causa e efeito ao invés de assumir que o presente é duração)
A resenhista do Le Monde muda de assunto.
— Eu escrevi Dália negra em 1985 e 1986 e dediquei o livro à minha mãe. Eu chorei muito quando terminei o livro. Então, de sangue frio, decidi que iria sair e usar o assassinato de minha mãe para promover Dália negra. Eu entendi que isso era uma história fácil para os jornalistas compreenderem. Garoto perde a mãe/assassinato sem solução. Garoto, privado, se debruça sobre o caso de assassinato da Dália Negra para expressar a decepção que ele nunca pôde extravasar na ocasião da morte da mãe. Muitos anos depois, depois de uma juventude trágica e subseqüente ressurreição, garoto se transforma em um romancista campeão de vendas e escreve livros dedicados à mãe. Eu fiz isso. Eu saí e de um modo muito solto, usei a história para promover o livro.
Ellroy tira os óculos e os limpa em um lenço azul cobalto, de bordas brancas a após colocá-lo novamente sobre o nariz, antes de guardar o lenço, tira o celular e deixa ao lado do microfone. Por um instante observa o aparelho, até que suspira fundo e retoma o assunto.
— Isso é normal?
— Eu sou o ser humano mais bem ajustado que eu conheço. Eu comecei a investigar a morte de minha mãe sendo um homem muito feliz com uma grande carreira. Eu tenho tudo o que as pessoas sonham: eu sou rico, eu sou famoso, eu tenho um casamento fabuloso com uma absolutamente encantadora e brilhante mulher.
Jerome coloca a mão esquerda sobre a boca para disfarças as risadas.
— Após o assassinato da mãe, aos dez anos, ele envolveu-se com drogas, assaltos, foi sem teto, voyeur, cometeu pequenos crimes, prisão, sessões de masturbação durando 12 horas, ligações com grupos de supremacia branca. O típico exemplo do american way of life. Hoje não bebe, não fuma, dorme cedo. Ele é muito limpo, meticuloso, mantém a casa limpa, é disciplinado. Por isso não quer falar sobre o merda do presidente arbusto e casou com uma droga de escritora feminista e crítica, Helen Knode. Um completo babaca.
Olho para o gravador para ter certeza de que está ligado e também porque gosto dos dentes da fita girando. Devo ser o único que ainda usa fitas. Todos os demais portam aparelhos mais modernos, capazes de serem conectados à internet sem qualquer burocracia tecnológica.
— Minha mãe me deu um presente: sua morte. Esse presente me manteve em pé com muita firmeza. Eu não posso voltar e mudar o passado. Eu nunca pensei no que poderia acontecer caso ela tivesse sobrevivido. Eu me tornaria um escritor? Eu teria buscado grandes objetivos em minha vida, em minha carreira, pesquisando conscientemente em busca de ser melhor e melhor.
Paris treme três graus abaixo de zero. Sobre os buracos do metrô sobem nuvens brancas de vapor condensado. Dentro desta bookstore a temperatura não se altera, exatos 26 graus.
— A gente devia ter ido beber — Jerome reclama pela décima vez. — Gosto dos livros, mas não gosto desse WASP de merda. Você ouviu o que ele disse sobre usar a morte da mãe para se promover como escritor? Tudo bem que ela era uma vadia que saía todas as noites, que foi abandonada pelo marido e, três meses antes de morrer, largada pelo próprio filho, mas…
— Pesquisando com consciência. Eu serei um escritor melhor. Eu aceito os riscos de escrever livros que vão além, livros que destroem gêneros estritos, livros que podem não ser magnanimamente elogiosos como os livros daqueles anões que aderem aos gêneros estritos. Eu arrisco nas vendas. Eu me arrisco perdendo esse grande filão da mina para escrever livros melhores. Esse é o mundo em que eu vivo. A outra parte do mundo está indo promover qualquer coisa. Isso apagou completamente minha preocupação emocional com minha mãe e os efeitos de sua morte sobre mim.
(Henry Bergson cunhou a idéia de duração, não fui eu, se isso te acalma porque eu sei que vai te acalmar saber que foi o homem que ganhou o Nobel de literatura em 1928 que disse que o passado e o presente não têm relação causal)
— Olha como fica mexendo no celular. Deve estar doido para ligar para casa, dizer que está fazendo muito frio em Paris e que preferia estar passeando no country club que não o aceita como sócio, pois precisa de cinco cartas de recomendação para fazer parte verdadeiramente da sociedade branca americana. O pior tipo.
Não entendo porque Jerome reclama tanto e ainda assim veio com uma sacola cheia de livros para serem autografados. Sua desculpa é de que assim valerão mais em uma improvável venda, principalmente porque Jerome, de hábito, jamais se desfaz de seus livros.
— Quando eu publicar o meu romance, jogo minha biblioteca fora e fico só com minha obra — Jerome repete desde que o conheço. — O melhor romance de todos os tempos!
(a escolha está no Protágoras, de Platão, muito antes dos existencialistas berrarem aos quatro ventos ser inevitável que toda escolha seja a melhor escolha, e que as conseqüências decorrem de inépcia, ignorância… mesmo um assassinato é assim, mesmo um assassinato cometido em um momento de alta fervura emocional… a melhor escolha, veja os romancistas)
Ellroy mexe no chapéu e seu editor francês rapidamente se aproxima. Pela maneira como olham o relógio na parede e os relógios de pulso, discutem o acerto das horas. Jerome também se agita ao ver que passa das 18 horas.
(foi o catecismo católico que classificou os pecados, e colocou as atitudes planejadas como sendo pecados mortais, e mais, justificou como sendo devido ao livre-arbítrio a obrigação da escolha)
— Eu tomei uma decisão consciente depois que eu escrevi os quatro livros ambientados em Los Angeles — Dália negra, O grande deserto, Los Angeles, cidade proibida e Jazz branco. Eu nunca mais escreveria um livro que poderia ser categorizado como sendo de mistério ou suspense. Eu queria me tornar um romancista histórico. Aquilo que eu tinha feito no Tablóide americano e Seis mil em espécie. Este é o grande desígnio do resto de minha carreira, recriar a história do século 20 americano por meio da ficção.
(é um alívio para todos quando encontramos justificações externas aos nossos atos e podemos deitar sabendo que nossa escolha é limitada pelos mais variados determinismos e que no momento do julgamento final poderemos advogar que tudo não passou de um mal-entendido causado pelo contexto… que o mal existe e não podemos resistir a ele… o Mal, você entende?)
Enquanto James Ellroy vai ao banheiro, consigo uma cadeira no canto direito, junto à pilastra principal do prédio centenário, onde está colocado um quadro com fotos do escritório em que Ellroy trabalha. Jerome prefere não sentar.
— Olha as paredes de madeira. Deve ser pela acústica. O babaca só escreve ouvindo música clássica. Prende o cachorro na mesma sala e espera o momento em que as idéias confluam. Imagina que ele só lê livros policiais e casos relatando crimes reais. Se bem que aprendeu a ler com quatro anos, e isso ajudou a montar uma boa bagagem. Diz que fica pensando no assunto, no período histórico tratado e monta seu texto. Gosta tanto de cachorros que se apelidou de Dog. Se eu tivesse toda essa estrutura já tinha terminado o meu romance. Nem precisava de um cachorro estúpido.
(somos viciados na causa-efeito justamente porque ela nos dá segurança para vivermos em paz, que apesar das desgraças que ocorrem, tudo pode ser explicado, compreendido, mostrando que não somos primitivos panteístas que buscam divindades humanizadas, pelo contrário, podemos simplesmente buscar a informação científica, a dedução lógica, a indução a partir de teorias consistentes, esquecidos completamente dos problemas de Zenon, que a flecha de Páris jamais alcança Aquiles, pois sempre está a meio caminho, que sempre é preciso uma idéia anterior, e assim jamais podemos seguir adiante, que o futuro não chega e essa é a única verdade, sermos prisioneiros do momento e frente a ele, só podermos rezar pela morte)
Peço que Jerome cuide de meu lugar e vou até outra sala tomar alguma coisa
— Me traz um refrigerante. Pode ser uma Meca-Cola.
mas desisto no meio do caminho ao ver Ellroy sentado em uma poltrona, de costas para as pessoas, olhando o inverno parisiense e falando ao celular. Pelo reflexo no espelho vejo que suas emoções estão divididas, entre triste e jocoso. Não quero me aproximar, mas me aproximo. Não quero conversar, mas sento ao seu lado com o gravador ligado.
— Ele vive com minha ex-mulher, em Westport, Connecticut, mas eu o vejo ocasionalmente. Barko é duas coisas, imortal e um heterossexual mistura de espécies e através da história Barko tem sido amante de algumas das mais belas mulheres. Para comprovar, em alguns anos do século 20, eu posso te contar quais mulheres ele estava rondando. Em 1924, Glória Swanson; em 1958, Brigite Bardot… as pessoas têm se perguntado há anos porque ela se tornou uma ativista dos direitos dos animais; 1963: as pessoas têm estado espantadas há anos com o que era aquela pequena nódoa branca sobre o montículo de grama em Dalas, em 22 de novembro. Era a fumaça vindo de um tiro de rifle? Errado! Era Barko, o cão atirador. Barko assassinou John Kennedy. Ele estava tendo um caso com Jack K. e ele a queria toda para si mesmo. Mas, depois que Barko conseguiu, ele deu o fora nela para ficar com uma bela atriz inglesa chamada Julie Christie. Atualmente Barko está com Emma Thompson. Barko tem muitas características inglesas, afinal ele é um pit bull terrier.
O encontro com James Ellroy estava programado para terminar às 19 horas, mas, antes de recomeçar, o editor explica que, por motivos pessoais, encerraremos meia hora antes, ou seja, mais dez minutos apenas.
— Deve estar querendo fazer compras. Americano consumista!
Jerome não aceita minha opinião que algo realmente sério deve estar acontecendo. Ellroy não pára de girar as abas do chapéu entre os dedos, e, enquanto fala, não olha diretamente para os ouvintes, perseguindo algo entre as estantes de livros.
— O estilo do livro é sempre ligado, diretamente conectado, diretamente derivado da história. Jazz branco é um frenético sonho febril em primeira pessoa, com constantes estaccatos no estilo riffs be-bop sendo aplicados. Tablóide americano é um estilo mais explicativo, cheio de síncopes diferentes e repetições de frases.
(a morte não é um mal, é o desejo de thanatos que ilumina nossas vidas, livrando-nos do pesadelo da vida eterna, possibilitando que tudo seja feito apesar da opressão do momento, da duração, do desespero de saber que apesar de todas as ilusões e palavras, nada acontece)
— Eu sou o queridinho dos desconstrutivistas, professores universitários, mídia homossexual, gente de cinema, os cognoscenti. Esses cachorros da mídia são capazes de morder a ironia, mas escritores americanos têm um orgulho perverso em serem simplistas, em serem orgulhosos de seus gêneros raízes.
Termina o encontro e, antes que Ellroy saia, Jerome corre até ele e consegue, após muita insistência, que seus livros sejam autografados. Eu fico um passo atrás, constrangido com os modo de Jerome, de uma hipocrisia absurda.
— Eu também escrevo. Me dá uma dica.
Ellroy continua a assinar de maneira automática: Noturnos de Hollywood, Meus lugares escuros, Onda de crimes, Sangue na lua…
— Eu escrevo livros que eu posso honestamente dizer que ninguém mais está escrevendo. Você pode ler uma milhão de livros de detetives. Eu não tenho mais tempo para isso. Livros sobre serial killers, suspense, procedimentos policiais… eu larguei para escrever livros que ninguém mais poderia escrever, para correr o risco que ninguém mais correria e escrever os livros que ninguém mais, francamente, teria paciência de escrever e por isso pagam para que eu o faça.
Jerome sorri sobre o ombro de Ellroy.
— Os críticos acham seus últimos livros ilegíveis.
Toca o telefone. Ellroy apenas ouve enquanto se afasta para um canto ainda mais vazio. Jerome o segue e, até onde posso ouvir, ainda reclamando mais autógrafos. Súbito, Ellroy vira-se e encara Jerome.
— Meus livros são best sellers nos cinco países europeus que eu visitei. Os críticos são positivos na proporção de quatro para um. E o quinto crítico que odeia meus livros, o que diz que são ilegíveis, que são racistas, que dizem que faço horríveis indulgências lingüísticas, respondo como vou responder para você, na maneira mais educada possível: vem beijar a porra da minha bunda!
— Foi isso que o babaca me disse — Jerome reclama bebendo sua Meca-Cola. — Vê se pode, me insultar desse jeito. Eu te disse que um estúpido que viveu onze anos nas ruas não podia ser grande coisa. Imagina, um cara que foi caddy em campos de golfe, que se sujeitava a carregar tacos e catar bolas para sustentar um quarto em um hotel de 25 dólares a semana, o que mais eu podia esperar? Ele só estudou até os 17 anos, aí foi expulso. Um completo ignorante pretensioso que conseguiu o que conseguiu por… sei lá por quê. Alah deu oportunidades a esse babaca!
Pergunto se foi apenas pelos autógrafos que Ellroy se enfureceu.
— Pior que isso. Ligaram para ele para dizer que a porra do cachorro da ex-mulher estava mal no hospital. Aí eu brinquei que um livro sobre a morte de um cachorro não ia render tanto quanto o assassinato da mãe.
(a arte contemporânea é a celebração da duração, explorando conceitos como processo, excrescência, volatilidade, termos que se referem à transformação, contínua, eterna, como dizia Lavosier: “nada se cria, tudo se transforma”, se bem que ele não se referia à consciência, mas ao mundo físico, no qual a morte tem outro significado)
— Deixa eu terminar meu romance para ele ver.