Encontrando Haruki Murakami

O encontro com o escritor que não aprecia o elitismo e não está perdido quando segue só
Haruki Murakami, autor de “Norwegian wood”
01/05/2003

Eu sou um escritor. Eu não aceito a guerra. Este é meu princípio. Eu não quero expressar minha opinião sobre a política atual porque se eu fizer isso, terei que ser responsável sobre minha decisão. Minha prioridade são meus livros, chego até esse ponto. O que eu tenho que fazer é escrever a narrativa desta época. Eu posso fazer isso melhor do que a maioria das pessoas, então essa é minha profissão e meu caminho. Se eu escrevo sobre Superfrog e o Verme maligno, algumas pessoas dizem: “O que é esse verme? É a Al-Qaeda ou Sadan Hussein?” E eu respondo: É apenas o Mal.

Foi antes dos bombardeios a Bagdá, antes dos relatórios de soldados mortos, em meios aos discursos patéticos de Blair, Bush, Chirac, que começaram a comentar o assunto. Devagar, entre as infindáveis discussões sobre quem seria pior, Sadan ou os americanos, as pessoas usavam o tema para variar. Ainda era algo dissimulado,

em minha juventude, eu tentava escrever uma prosa sofisticada e estórias fantásticas

como um sussurro perdido no meio da festa. Algo como um quebra-gelo partindo a crosta que impede o barco-mundo de escapar do inverno mais e mais rigoroso.

eu acredito que Underground foi o ponto de virada na minha escrita. Outra coisa que eu penso sobre o agora é a intolerância. Nós estamos realmente vendo um conflito entre sistemas fechados e sistemas abertos na sociedade. Atualmente, os sistemas circuitos fechados são muito fortes: fundamentalistas, seitas ou militares. Eles são muito fortes e isso é muito perigoso. Mas você não pode ser intolerante. Você não pode destruir sistemas fechados com armas. O sistema irá sobreviver. Você pode matar todos os soldados da Al-Qaeda, mas os sistema irá sobreviver. Ele irá apenas mudar-se para outro lugar qualquer.

Na fila do supermercado, a senhora gorda, de chapéu florido e sandália prata, puxava da bolsa a revista Paris Match e, na capa, manchete de sétimo escalão, lá estava: aumenta o número de casos fatais; no metrô, entre uma estação e outra, dois adolescentes liam um mangá recém-chegado do Japão, cujos personagens estavam temerosos de serem contaminados pelo amigo chinês; na loja de pães, antes de enfiar a baguete sob a axila peluda, o musculoso instrutor de alpinismo indoor espirrava, brincando que para pegar alguém tão saudável como ele, só se fosse asiática.

atualmente o mundo está caótico. Você tem muitas coisas em que pode pensar. Você tem 54 canais na TV digital. Você pode saber sobre qualquer coisa por meio da internet. Isso é tão complicado que você fica perdido. Mas se você entrar em um pequeno circuito fechado, você não precisa pensar sobre coisa alguma. O guru ou ditador dirá a você o que fazer e pensar. Isso é simples. Então as pessoas gostam de entrar nesses pequenos sistemas fechados — justamente por isso pessoas muito inteligentes entraram na Aum Shinrikyo. Mas, uma vez que você entrar nesses sistemas, você não pode escapar. A porta é fechada

e ninguém ligava, riam, achavam curioso. Os mais velhos chegavam a chacotear apontando semelhanças entre a gripe espanhola de 1920 e o que acontecia no extremo oriente.

— Morreram todos os vizinhos do vovô, só ficou a filha da empregada, que ninguém quis e foi mandada para o orfanato. Mais tarde ela mudou de nome e virou cantora: Piaff.

Ouvindo suas palavras, respirando o mesmo ar,

— quem sabe assim param de vir para cá. Eu não agüento o modo como espocam aqueles flashes nos lugares mais inconvenientes. Ontem uma manada deles invadiu o Louvre e começou a tirar fotos da Monalisa. A coitada ficou parecendo a torre Eiffel iluminada para o ano-novo.

tocando-se e pedindo desculpas como se essa não fosse a grande tara européia.

— É só comparar o número de filmes de guerra ao de problemas epidemiológicos. Essa gripe não vai pegar por falta de investimento.

Agora, um mês após a queda de Bagdá,

eu tinha tentado escrever sobre a guerra, mas isso não era fácil para mim. Todo escritor tem sua técnica de escrita — o que ele pode e não pode fazer para descrever algo como guerra ou história. Eu não sou bom escrevendo sobre essas coisas, mas eu tento porque

o grande medo, o terror oculto que flagela as multidões deixou de ser a guerra. Os refugiados iraquianos

eu sinto que isso é necessário para escrever a respeito dessas coisas. Eu tenho pinturas em minha mente, muitas pinturas

tornaram-se manchete secundária e

eu tenho muito material nessas pinturas. Eu tiro as memórias e imagens que eu preciso. A guerra é uma grande pintura para mim, a maior

a gripe ocupa o topo das primeiras páginas.

eu sentia que algum dia eu poderia usar isso, puxar alguma coisa dessa pintura e escrever sobre isso. Eu não sei por quê. Porque essa é a história de meu pai, eu acho. De meu pai e de toda a geração que lutou na guerra na década de 1940. Quando eu era um garoto meu pai me contou estórias — não muitas, mas significam muito para mim. Eu queria saber o que aconteceu a eles, à geração de meu pai. Isso é um tipo de herança, a memória daquilo

“Ela está chegando!”

e eu estou partindo em um avião que vem de Moscou e segue para o Rio de Janeiro.

Duas da manhã,

eu não tenho idéia. Eu me divirto escrevendo porque eu não sei o que está acontecendo quando eu me dirijo para aquele ponto. Você não sabe o que irá encontrar ali. Isso pode ser experenciado quando

desço no aeroporto do Galeão e pego minhas malas na esteira rolante. Antes de poder seguir para o saguão principal,

você lê um livro, especialmente quando você é um garoto e está lendo estórias. É muito excitante quando você não sabe o que irá acontecer a seguir. A mesma coisa acontece comigo quando eu estou escrevendo. Isso é divertido

recebo um formulário na qual estão perguntas: nos últimos dois meses esteve no Oriente?; teve contato com pessoas infectadas com SRA (síndrome respiratória asiática)?, e mais uma série questionando sintomas relacionados com resfriados comuns e pneumonias: dores de cabeça, tosse, tremores, dores no corpo etc. Após repetir vários nãos, entrego o papel para uma mulher de meia idade, meio corcunda, meio desanimada, carioca aprisionada que agradece e me deixa passar, rumo ao grande vazio.

Às sete da manhã, pego o avião lotado até Curitiba. Sou o único de blusa.

— O senhor está bem? — a aeromoça me pergunta solícita.

Foi durante a madrugada solitária que minhas pernas pareceram desaparecer e

quando eu estava escrevendo meu livros no Japão, eu apenas queria escapar. Uma vez que eu saí do meu país,

meu olhos avermelharam. Logo, a sensação de desânimo ultrapassou meu corpo e alcançou minha alma. Para chegar ao banheiro,

eu fiquei confuso: o que eu sou? O que eu sou como escritor? Eu estou escrevendo livros em japonês, então isso significa que eu sou um escritor japonês, então qual a minha identidade?

precisei levar todas as bolsas e malas, tão pesadas, tão difíceis de serem acomodadas às minhas mãos doloridas e aos meus ombros duros.

— Acabei de chegar de Paris e ainda estou desacostumado com o fuso.

— Posso ajudá-lo em algo?

(por que sorri tanto, tanto que parece ironia?)

— Um copo de água, por favor. E se tiver, um analgésico.

Tomo o comprimido ajudado pela água, preparando-me para fechar os olhos e dormir. Algo que não consegui durante toda a madrugada, enquanto delirei os confortos de meu quarto — qualquer um deles —, a maciez de meu colchão — qualquer um deles —, o aconchego de estar só com todo o tempo do mundo para dormir.

— Descemos do mesmo avião. Voltei do hotel para pegar minha conexão para Curitiba.

Olho para o lado,

esse é meu privilégio. Eu posso ir a qualquer lugar. No Japão os escritores montam comunidades literárias, um círculo, uma sociedade. Eu penso que 90% dos escritores japoneses vivem em Tóquio. Naturalmente, eles montam comunidades. Há grupos e costumes,

obrigado a prestar atenção ao senhor sentado à minha direita. Careca, barba por fazer, bronzeado de férias, olhos castanhos que contrastam com a pinta negra na testa. O livro que deixa de ler

e então eles estabelecem um caminho. Isso é ridículo, eu acho que se você é um escritor, um autor, você é livre para fazer qualquer coisa, ir para qualquer lugar, e isto é

para me dar o prazer

o mais importante para mim. Então, naturalmente, a maioria deles não gosta de mim. Eu não aprecio elitismo. Eu não estou perdido quando eu sigo só

de sua voz tem na capa o ideograma Bu.

— O senhor lê japonês? — apesar de tudo, não resisto e pergunto.

— Fui de Okinawa para Moscou, e lá peguei aquele outro avião. Fiquei sete anos na ilha, trabalhando em uma gráfica.

— O livro é artesanal?

— A capa, sim. Na verdade é só uma proteção para o conteúdo. Conhece o Japão?

— Quem é o autor?

— Todos deviam conhecer o Japão. Não o folclore que passa nos filmes de samurai, mas o Japão moderno, que há cento e cinqüenta anos tenta escapar do feudalismo e não consegue. O Japão descrito por Haruki Murakami

(nasceu em Kioto, em 1949, e cresceu nas imediações de Kobe. Mudou-se para Tóquio para freqüentar a Universidade de Waseda até os 18 anos, então ele foi viver na Europa e Estados Unidos, de onde retornou para o Japão em 1995. Desde 1979, e seu primeiro romance Hear the wind sing, ele escreveu mais de 30 trabalhos de ficção na sua língua nativa e traduziu mais de 30 títulos do inglês para o japonês. Seus livros foram traduzidos para 16 línguas.)

durante a bolha econômica, o povo japonês ficou muito arrogante. Eu não gostei daquilo. Agora, o povo está novamente ficando modesto. Eu penso que seja uma boa coisa. Nós ficamos mais pobres, mas a arrogância desceu alguns degraus. Ficcionistas como nós são os contadores de histórias de nossa era. Nós escrevemos sobre a era em que estamos imersos. Alguns dizem que estes são bons tempos ou maus tempos, mas eu não penso a respeito e não me preocupo. Ninguém realmente sabe se estes são bons ou maus tempos. O que nós escritores temos que fazer é apenas observar e reconhecer o que está acontecendo

— Você sabia que há homossexuais no Japão que sonham ser Marilyn Monroe. Uma tarde, fui fazer um passeio na praia, ao sul de Naha. Havia um belo sol, que crescia quanto mais eu me afastava do mato e me aproximava do mar. Há parentesco entre a praia e o deserto, apesar da presença da água, é uma água que não pode ser bebida; só que a praia não é o deserto, assim como um homossexual japonês jamais será Monroe, apesar de em seu sonho Monroe poder sonhar ser um japonês homossexual. Nesse ponto ainda existem samurais no Japão, no espírito guerreiro que não se entrega mesmo à verdade mais dolorosa.

Muito gentil, enquanto fala, Dã — serpente sagrada dos daomeanos, povo da atual Benim, África — me deixa folhear o livro. Apesar de meu estado sensível, ou principalmente por isso, tocar a capa composta em papel feito com fibra de seda, impresso com tinta natural e tipos de pedra, me propicia uma agradável vertigem, que apesar de não me permitir ler os ideogramas na contracapa,

ritmo é mais importante para mim do que noções de improvisação. Quando eu estou escrevendo, eu sempre penso no ritmo. “Isso não significa nada se não tiver aquele suingue”

me permite apreciar a estética das formas, o modo como cada traço compõe um significado, que mesmo misterioso, supre as necessidades de meus sentidos.

— Pena que não fazem mais produtos como este — digo virando a capa do avesso, sentindo a textura.

— Em Tóquio, dizem que antes da guerra havia nas ruas um misto de euforia e apreensão. Euforia pelas vitórias que o exército tinha nos campos de batalha continentais, apreensão pelo modo como o estilo de vida ocidental varria as ruas da capital.

Cada vez que a aeromoça passa por mim, peço um novo copo de água ou suco, querendo aliviar o incômodo que sinto na garganta. Com isso, acabo devolvendo o livro para evitar acidentes. Nunca se sabe quando vai acontecer uma turbulência ou minha tremedeira superará o nível do tolerável.

(eu estava passeando ao redor de um parque, não sei se vi um anúncio piscando, coca-cola, Absinto, Fender, não sei, pop arte na rua enquanto turistas tiravam fotos. Ela parecia cansada, olhos caídos, pediu minha ajuda achando que eu fosse conterrânea, mas eu não era e mesmo sem falar a língua ajudei suas mãos frias, seu rosto pálido, sua voz receosa a chegar até o hospital em um táxi que passava com um motorista marroquino, um homem moreno, simpático em excesso, falando a respeito de um mundo perdido entre tamareiras e que se sentia incomodado com a tosse, mas o mundo não iria acabar, não o seu mundo entre dunas de areia e mulheres submissas que jamais iriam a um hospital como aquele em que ela ficou, sobre a maca de rodas trêmula e)

— Você está transpirando muito, e parece pálido. Tem certeza de que está bem?

— Acho que foi a comida da lanchonete do aeroporto. De madrugada nada é fresco.

— Você dormiu no aeroporto? — Dã arregala os olhos. — Muito perigoso. Você podia ter sido assaltado.

Respiro fundo, segurando o bolo revolto em meu estômago.

— Preciso ir ao banheiro.

quando eu tentei usar a terceira pessoa, eu me senti como se eu fosse deus. Mas eu não quero ser deus. Eu não sei todas as coisas. Eu não posso escrever todas as coisas. eu sou apenas eu mesmo. Eu poderia escrever algo apenas sobre mim mesmo. Isso não significa que eu realmente seja o protagonista, mas que eu posso ter uma visão interior do que meu protagonista vê e experencia. Escrever me leva para o interior de minha subconsciência, que é o processo que eu uso para escrever minhas histórias. Isso é a coisa mais excitante que eu posso fazer. Para mim, contar uma boa história é o que acontece quando eu caminho pela rua. Eu amo as ruas e então quando eu estou caminhando eu estou olhando todas as coisas, ouvindo e sentindo o cheiro de todas as coisas. quando você faz isso, o mundo muda — você está experenciando todas as coisa de um novo modo. A luz e os sons e suas emoções. Este é o caminho da escrita para mim. Eu tenho 54 anos e sou casado, mas quando eu estou escrevendo eu posso ter 25 e ser solteiro. Eu posso caminhar ao redor de alguém com seus sapatos, e sentir seus sapatos. Escrever torna-se sua segunda vida. isso é muito bom

Após vomitar, volto a me sentar, ainda me sentindo mal. A aeromoça volta a perguntar se eu já estava doente, ao que minto

— sempre enjôo em aviões.

Desço no aeroporto Afonso Pena e atravesso com pressa o saguão. Dã continua a meu lado, falando e falando sobre um mundo doze horas distante, doze horas de fuso, que eu não conheço, que devo um dia conhecer, mas que está perdido dentro de um hospital, isolado entre paredes plásticas e cartazes, olhando para um silêncio que não é silêncio, mas é silêncio pois os sons não significam e os cheiros incomodam seu nariz, penetram as mucosas nasais, invadem os alvéolos pulmonares, irritam cada célula de seu corpo, cada uma das sessenta e quatro trilhões de células de seu corpo pequeno, mais e mais mirrado, que eu não devia ter deixado só ao perceber o que realmente estava acontecendo.

— Preciso de ajuda, por favor…

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho