Nas fotos, o que chama a atenção em Don DeLillo são seus olhos — tão agudos que podem fazer confundir sua intensidade com miopia — mas, ao cumprimentá-lo naquele pequeno restaurante de Manhattan, sinceramente, foram suas mãos que mais me impressionaram. Ao sentir a maciez excessiva, senti-me tão incomodado que busquei evitar um novo contato. Ele entendeu e não insistiu em novas aproximações, pelo contrário, como únicos clientes da casa de massas, sentou-se a maior distância possível.
Feitos os pedidos a um solícito garçom — salada da casa, rondelli verde e suco de laranja brasileiro — liguei o gravador. Mal o coloquei na mesa, DeLillo esticou o braço. Sem me encarar, escorregou o aparelho sobre a toalha xadrez vermelha e verde até ajeitá-lo exatamente no meio, entre nós. A seguir, ergueu o rosto e não mais o abaixou.
DeLillo nasceu no Bronx, em 20 de novembro de 1936. Estudou Artes da Comunicação — o que quer que isso seja — na Fordhan University. Um ano após formado empregou-se em uma agência de publicidade, como copywriter; cinco anos depois largou o trabalho e, em suas palavras, “embarquei em minha vida, minha vida real”.
Diferentemente da lenda que se fez ao seu redor — um recluso ao estilo Thomas Pinchon e J. D. Salinger — aproximar-me foi simples; bastou um telefonema. Como disse Gerald Howard, editor de Libra, DeLillo “é um cara absolutamente normal, daqueles muito familiares, acrescido do gênio literário”. Gênio literário autor de doze obras: Americana (1971), End zone (1972), Great Jones street (1973), Ratner’s star (1976), Players (1977), Running dog (1978), Os nomes (1982), Ruído branco (1985), Libra (1988), Mao II (1991), Submundo (1997), A artista do corpo (2001); além de artigos e peças de teatro.
Com a voz segura e frases diretas, sem correções, DeLillo conta que sua maior influência foi a cidade de Nova Iorque.
“As pinturas no Museu de Arte Moderna, a música no Jazz Gallery e no Village Vanguard, os filmes de Fellini, Godard e Howard Hawks. E havia a cômica anarquia dos escritos de Gertrude Stein, Ezra Pound e outros. Apesar de que isso não significa que eu necessariamente quisesse escrever como eles, é que para alguém com 20 anos aquele tipo de trabalho sugere liberdade e possibilidades. Aquilo pode fazer você ver não apenas a escrita mas o mundo mesmo de um jeito completamente diferente.”
Preparando Os nomes, uma visão da vida americana, DeLillo saiu em viagem: Grécia, Oriente Médio e Índia. “Eu penso que a coisa mais importante é o que eu senti ouvindo pessoas e vendo seus costumes.” Entre um gole e outro, esclarece um pouco mais.
“Eu tento confrontar as realidades. (…) Há um escola inteira de ficção americana que pode ser chamada de ao-redor-da-casa-e-proximidades. Eu penso que as pessoas gostam de ler esse tipo de trabalho porque isso acrescenta um certo brilho, um certo significado para suas próprias vidas.”
Muitos críticos já disseram que DeLillo trabalha justamente com pessoas comuns em situações incomuns. Seja o mundo da propaganda, do futebol, a vida de astros do rock, ciência e matemática, terrorismo, romance de espionagem, acidente ecológico, o assassinato de J. Kennedy; porém, seu último trabalho parece contrariar essa premissa.
A artista do corpo trata da vida sensorial de uma body artist, uma pessoa incomum vivendo uma situação comum: o ocaso da morte do marido. No contexto da aceitação, enquanto dois tempos se chocam — passado e presente, memória e sentidos — materializa-se um outro personagem, sem nome, que presentifica diálogos antigos entre marido e esposa, acrescentando assim carne à lembrança, potencializando a dor da perda, o caos sentimental e iniciando um conturbado processo de criação.
“Eu não sei o que acontece fora daqui”, DeLillo diz. “Eu não sei como a máquina funciona, ou que curiosa mudança química precisa se processar para que as coisas aconteçam. Eu não gostaria de especular. Eu tenho sempre tentado manter uma certa ligação. Eu coloco tudo no livro e muito pouco depois de tê-lo terminado.”
De um modo sublime, em que a linguagem participa da experiência temporal — seja arrastando a leitura com repetições de palavras, seja secando a forma até a consistência do depoimento jornalístico —, somos apresentados ao duplo processo criativo: o livro acabado e uma artista de vanguarda tateando para além das aparências chegando a construir, por mero acaso, uma obra total, carne e espírito integrados de modo pleno. A vida do criador não se diferencia de sua criação.
“Um escritor pode ser perfeitamente feliz com os personagens que ele criou e que acontecem de serem assassinos de multidões se o escritor sentir que sua criação foi bem sucedida.”
Como no teatro Butoh japonês, em que o performer desvincula seu ato de qualquer representação, avançando para um estágio sem interrogações ou afirmativas, mas de pura presentidade, ler este livro curto provoca a rara sensação da descoberta. Não aquela que temos assistindo a canais a cabo como Discovery, em que as mil maravilhas do universo nos são apresentadas ainda mais maravilhosas; mas de um tipo outro em que a visão sobre a vida alheia passa por um filtro agudo, perplexo, rico em cores e formas, redefinidor das verdades do cotidiano, mesmo as mais ridículas. Exacerbando o dito “falar do próprio quintal para falar do mundo”, chega-se ao falar de si para falar de todos.
“Há uma conexão entre os avanços feitos pela tecnologia e o senso de medo primitivo desenvolvido pelo povo, em resposta. Diante da tecnologia tudo fica pequeno… atávico.”
O enredo condensado em poucas páginas aumenta ainda mais a impressão. Mas não se tenha a falsa idéia de que tudo se reduz à narrativa dos fatos, o que tornaria o livro um simples roteiro. O que temos são pensamentos e ações costurados firmemente, compondo para o leitor um estilo claro e pungente.
“Toda sentença tem uma verdade esperando no fim e o escritor aprende como saber quando finalmente chega lá. No primeiro nível essa verdade é o molejo da sentença, o ritmo e o equilíbrio, mas aprofundando isto é a integridade do escritor, como ele combina com a linguagem. Eu sempre me vejo em minhas sentenças. Eu começo me reconhecendo, palavra por palavra, como eu trabalho as sentenças. A linguagem de meus livros tem impressa minha aparência como homem. Há uma força moral na sentença quando ela surge correta. Isto mostra a vontade de viver do escritor.”
Dividimos as despesas, afinal DeLillo não passa por dificuldades financeiras — Ruído Branco venceu o American Book Award. Após as despedidas, ele volta para sua casa no Bronx, a mesma em que vive com sua esposa há anos.
Em um sonho subseqüente, DeLillo lembrou-me de um ponto de nossa conversa em que perguntei se a literatura pode expandir os limites de outras artes por meio da apresentação de exemplos “vividos”. Com os lábios sujos de pasta, ele respondeu que apesar de estarmos em um tempo de conhecimentos superficiais, ainda é possível clarificar o lodo que nos cerca para que nosso lento afogamento seja consciente.
Não me deu a mão ao desaparecer, simplesmente acenou. Ele ainda lembrava de meu mal-estar por suas mãos excessivamente macias.