Kamel tem treze anos. Está com a perna ferida. Um estilhaço rasgou sua carne após o disparo de um tanque. Ele me olha com fastio enquanto o soldado israelense abre minha bolsa. Acho que é a décima revista, não sei, perdi a conta. Na primeira delas, ainda no aeroporto de Tel-Aviv, confiscaram minha máquina fotográfica, filmes e uma bolsa térmica. Em troca, me entregaram um recibo escrito em hebreu, alemão e inglês. Devo tê-lo nas mãos para retirar meus pertences na data de minha partida.
— A situação entre judeus e palestinos lembra mais uma tragédia grega do que um filme de faroeste. E, por tragédia, eu entendo o confronto da justiça contra a justiça.
Devido à suspeita de atentados, somos obrigados a fazer um desvio. Contenho minha insatisfação apreciando as cores do deserto, um lago amarelo apaziguado pelo entardecer. Kamel, meu pequeno companheiro, é quem me indica, pela janela do ônibus, o kibutz Hulda. Duas novelas de Oz se passam nesses resquícios de antigos socialistas. Elsewhere, perhaps (1967) e The perfect peace (1982).
— A vida em um kibutz é tranqüila, mas o material da prosa está aqui. Você pode ouvir duas velhas mulheres conversando sobre um antigo país do leste europeu e você pode aprender sobre a vida elegante de Viena. Há dezenove países diferentes, incluindo os Estados Unidos, e dezenove línguas diferentes representadas em nosso kibutz. Em alguns casos, quanto mais provinciano você é, mais universal você pode ser. Esta é uma das grande ironias da literatura.
Não sendo o trajeto normal, e estando atrasados, o ônibus segue adiante. Na verdade, em toda a viagem, paramos apenas para revistas. Foi nesses momentos que aproveitei para fazer minhas necessidades. No começo fiquei constrangido com as mulheres fardadas me olhando, depois, como todos pareciam à vontade, fiz o mesmo. Cheguei a puxar conversa com uma bela nariguda de olhos cinzas. Brinquei se não era ela uma das duas filhas de Amos Oz. Ela não respondeu. Preferiu me apontar como um dos que deveriam ir para os fundos da caminhonete despir toda a roupa. E me acompanhou. Durante o processo, não sei bem o motivo, contou que Amos foi seu professor de criação literária.
— Nasceu em Jerusalém, em 1939, durante a ocupação inglesa. Saiu da casa do pai, um velho sionista, aos quinze anos. Foi fazer parte de um kibutz. Não faz muitos anos que se mudou para Arad. O ar do deserto de Negev dava condições para que seu filho asmático respirasse.
O primeiro trabalho publicado foi um livro contendo oito contos, Where the jackals howl and other stories, de 1965. Contava Oz com 26 anos.
— Escrever um poema é como um flerte; escrever um conto é como um caso de amor; escrever uma novela é como um casamento.
Ao entrarmos em Arad, puxo uma garrafa de coca-cola e bebo um gole. Está quente. Aprendi com Ulf, apesar do nome um amigo italiano, que em qualquer parte do mundo a coca-cola é sempre coca-cola, e ele está certo. Evitei muita disenteria com esse hábito. Kamel me acha maluco.
— Turismo, em Israel? Zombou em sua amadurecida infância.
Encontrei-o na saída de um restaurante em Tel-Aviv. Roupa cansada e olhos projetados do alto de uma coluna orgulhosa. Durante todo o almoço, ficou na janela me encarando. Nem senti o sabor das tilápias grelhadas. O resto da tarde, sem palavra alguma, me seguiu. Foi comigo até uma banca, onde comprei um mapa, e repetiu meus gestos quando tentei fazer com que um taxista árabe me levasse até Arad.
— Eu sei como chegar, me falou em seu inglês estropiado.
O taxista reclamou, mas logo baixou o tom
— Ele quer ir para casa e não aceita pedir ajuda a um judeu.
Oz lutou com uma unidade de tanques na Guerra dos Seis Dias, em 1967, assim como na Guerra do Yom Kippur, sobre as colinas de Golan, em 1973. Enquanto reservista, durante alguns anos, liderou uma pequena tropa da qual fazia parte, vejam só, um crítico literário. Como um dos fundadores do movimento Peace Now, defendeu a criação de um estado palestino.
— A lição das guerras, para Israel, foram claras. Nós aprendemos que ocupar territórios não é tão importante para a autodefesa nesta época de mísseis balísticos. Os palestinos, eu espero, aprenderam que não há espaço para falsas esperanças em se tratando de salvação vinda do leste.
O bairro é Levittown. O taxista já conhecia a residência de Amos Oz. Um grande homem, um grande homem, repetiu subindo a ladeira que findava no deserto. Ele caminha todas as manhãs, 40 minutos. Mal toco a campainha, Nily, a esposa, chega na porta do belo sobrado. O soldado a seu lado está de saída. Suponho ser o filho, mas não me atrevo a perguntar. Ele olha Kamel com desconfiança.
(— Não há palavras em hebreu para ficção. Eu boicoto essa palavra. Ficção significa o oposto de verdade. Prosa sim, mas não ficção. Eu escrevo prosa. Eu me preocupo com a verdade, não com os fatos, e eu sou velho o bastante para saber a diferença entre fatos e verdade.)
— Meu marido está dando aulas na Universidade Bem-Gurion. Chegará tarde da noite para passar o fim de semana com a família.
Durmo em um hotel barato. Kamel, eu deixo com seus tios. São daqueles poucos que mantiveram o direito de trabalhar em cidades judias. Não entendo o que dizem. Mas me abraçam e me beijam aliviados e agradecidos por eu lhes entregar o menino são e salvo. Exigem que eu entre na pequena casa e divida a refeição. Estou faminto, mas me contenho após o primeiro impulso. O casal mal toca em seus pratos, esperando que eu me satisfaça. Mato a fome a caminho do hotel.
Pela manhã, encontro Oz na entrada do deserto. Ele me cumprimenta e pergunta se sou aquele que o procurou na noite anterior. Explico que não quero atrapalhar, por isso gostaria de conversar durante o passeio. Ele acede.
— Eu sempre acreditei que a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) tem sido uma das mais extremistas, fanáticas e descompromissados movimentos de nosso tempo. Não em termos do que eles têm feito para nós, os israelenses, mas em termos do que eles têm feito e ainda estão fazendo para seu próprio povo. Os palestinos, de fato, devem e precisam conquistar sua independência, simplesmente porque a alternativa a isso, para todos nós, é a morte.
Meu Michel, sua segunda novela, tornou-o o principal escritor de sua geração e porta-voz de anseios e vergonhas. O vida de Hanah Gonen, o casamento com Michel e o lento processo de degeneração de sua capacidade de suportar a realidade permitem as leituras mais diversas.
— Autores judeus-americanos fazem trabalhos sociológicos, talvez exceto Saul Below, não fazem literatura universal.
Shimon Perez chegou a indicá-lo como excelente opção de primeiro ministro.
— Eu não sou Vaclav Ravel. Eu sou um escritor, e isso é o bastante.
O sol ultrapassa a recortada linha do horizonte e avança para seu zênite. O calor aumenta sobre minha cabeça mas o vento continua a soprar um certo gelo. Amos é o nome do primeiro profeta judeu. Oz significa coragem. O sobrenome original era Klausner, mudado ao romper com seu pai.
— O hebreu moderno é muito semelhante ao inglês elizabetano. É uma língua em formação. Permite muita interferência. Excelente para a poesia, ótima para a prosa, impossível para o teatro. Sendo uma língua em constante mudança, da escritura à encenação, a linguagem do texto já seria ultrapassado.
Em determinado ponto, começamos o retorno. Eu deveria contar as maravilhas dessa região, dos pastores de cabras cruzando nosso caminho, dos estranhos brilhos avermelhados que me lembraram a caatinga nordestina, porém, o que destaco é uma sombra. No meio do nada, emergia do chão feito fonte enlouquecida, uma imensa mancha negra. Ele viu, eu vi, mas não houve comentários. Mais próximos, identificamos ser uma roupa de homem, abandonada. O vento não a movia, e nem nós tentamos. Fomos adiante.
— Eu escrevo meus rascunhos à mão. Eu preciso do contato sensório com o papel, a caneta, a tinta e meus dedos. Depois eu luto com isso sobre a máquina de escrever.
Conto de Kamel ainda tocado pela miséria palestina.
— Os novelistas latino-americanos têm a coragem de contar uma estória com se ninguém tivesse nunca contado uma estória e nunca tivesse existido uma estória anterior.
Deixo-o a cem metros de sua casa. Ele me pergunta se estou satisfeito. Digo que sim.
— Depois de minha caminhada no deserto, eu leio alguns jornais, vários deles — um hábito religioso para muitos israelitas — então, eu tento escrever por algumas horas. Algumas vezes isso é uma situação frustrante — se nada acontece. Quando eu vivia no kibutz, isso me fazia sentir uma culpa terrível. Eu chegava, para o almoço, na sala de refeições comunitárias, olhava todas aquelas pessoas que tinham estado cultivando a terra, ordenhando vacas e dirigindo tratores durante toda a manhã, e sentia que realmente não merecia meu almoço. Através dos anos, eu desenvolvi uma auto-imagem de um balconista. Atualmente, meu negócio é abrir a loja em certo horário, sentar e esperar. Se eu tenho um cliente, é um dia abençoado; se não, eu ainda estou fazendo o meu trabalho.
Passo em um pequeno mercado antes de ir me despedir de Kamel.