Eduardo Galeano

A conversa com o autor cuja norma é recorrer apenas às palavras que melhorem o silêncio
Eduardo Galeano: “Não há uma fronteira entre o jornalismo e a literatura”
01/09/2004

Na cozinha, abro a geladeira. Esquento o resto de macarrão no micro e como na mesa, protegido pela cortina xadrez. Os telhados de Paris não me fazem falta.

Todos os meus livros são de difícil classificação.

Lavo o prato e os talheres.

É difícil dizer isto é ficção ou não é.

Corto o dedo na faca e acho graça.

Para mim, o que mais gosto é narrar.

O sangue dilui-se na água que escorre da torneira centenária.

Me sinto um narrador. Eu recebo e dou. É uma ida e volta. Escuto vozes e as devolvo multiplicadas pelo ato da criação, em forma de relato, de ensaio, de livros inclassificáveis onde se juntam todos os estilos e todos os gêneros.

(quem podia escapava para a Europa. Rodrigo Garcia Lopes foi para os Estados Unidos atrás do sonho beatnik. Ariel fazia do sotaque portenho o seu charme. Gabriel Lessa também esteve na grande América. Jones de Souza ficou por aqui. Gilberto “Mike Conha” perdia-se em seus delírios psicodélicos. Assim como todos nós que precisávamos acreditar que havia algo atrás das drogas que não fosse apenas o traficante)

Trato de fazer uma síntese de gêneros que vá mais além das divisões tradicionais entre a narrativa, o ensaio, a novela, a poesia, o relato, a crônica. Intento propor uma mensagem integrada porque acredito nessa síntese possível da linguagem humana.

Desligo o rádio.

Não há uma fronteira entre o jornalismo e a literatura. A literatura é o conjunto de mensagens escritas que uma sociedade emite, tenha a forma que tenha. Alguém pode dizer o que quer dizer escrevendo em jornais ou em livros.

O esparadrapo ficou mal enrolado. As pontas ficaram sobrepostas. Vai ser ruim para desfazer. Mas quem se importa? Do outro lado da rua passa um grupo de mulheres carregando cartazes. Duas estão grávidas.

(cocaína não era difícil. Ácido era menos comum. O que não significava impossível. Com a combinação certa, tudo ficava simples e fácil. Tendo os contatos e o dinheiro as coisas aconteciam)

Sempre fui um jornalista e não quero deixar de ser, porque uma vez que alguém entra nesse mundo mágico da redação, quem é capaz de tirá-lo?

(havia uma trilha sonora muito específica a ser ouvida. Titãs e seu Cabeça de dinossauro; The Cure e as letras tolas de escuridão e alegria contida pela imensa mágoa com a felicidade alheia; The Smith e toda a viadagem que ficou justificada; Picassos Falsos e o Ira; sem falar na Gang 90 e as Absurdetes)

Tem virtudes: te ensina a ser breve, te obriga à síntese, o que é muito interessante para quem quer escrever muitas coisas.

Respiro fundo e penso mais uma vez se devo sair.

Te obriga a sair de teu microespaço para meter-se na realidade, bailar o baile alheio.

Soco a parede e

Te obriga a andar por aí, a escutar.

cai um pedaço do reboco.

E tem defeitos. O primeiro é a urgência.

Abro mais uma ferida e rio ainda mais.

Às vezes me tranco com uma palavra e passo três horas buscando outra. Esse é um luxo que o jornalismo não me poderia dar.

(pela manhã ia para a faculdade. Havia um prazer compensatório em ridicularizar aqueles que não sabia a verdade. A maravilhosa e única verdade)

Sento na cama e lembro que tenho um compromisso hoje, que irá pagar uma ou duas despesas minhas.

Não creio que a poesia consista somente em escrever versos; coisas que jamais cometi.

Seis da manhã,

Nunca “cometi” versos em minha vida,

diz o redondo sobre o prédio distante sete quadras. Dois ponteiros fora de moda girando lentos como a querer atrasar o momento derradeiro.

mas sem dúvida que, de algum modo, há um alento poético na prosa que escrevo e na linguagem que digo. Que pode ser má ou boa poesia, mas que em todo caso reflete uma paixão verdadeira:

O relógio de pulso está quebrado e perdido em algum canto, entre as roupas sujas. Duas moscas repousam mortas dentro da xícara de café. Há pó de semanas acumulado no espelho jogado ao lado da porta do banheiro. O espelho do armário do banheiro me encara quando sento na borda da cama e sopro entre as mãos e cheiro e percebo que preciso escovar os dentes.

(retornar é nada quando se retorna para nada)

para mim, o que mais me agrada é ler poesia, a boa poesia. Mais que a prosa, infinitamente mais que a prosa.

Olho para a direita e vejo que está escuro apesar de já ser dia. Lembro que preciso pagar a conta de luz. Olho para a direita. Poucas pessoas caminham pelas ruas. Duas delas são policiais a caminho do trabalho.

(feriado é isso)

Madrugadas longas e cidades vazias e

(não apenas nas cidades. Acho que para todos aqueles que leram Marshall Bermann e acompanharam as coleções da editora Brasiliense, estes dias são assim)

um silêncio torturante.

O que gosto de verdade é a poesia,

Pequenos tordos pousam nos fios diante de meu quarto.

a grande poesia, a alta poesia, que pode ser a poesia popular, a poesia primitiva, chamada primitiva, que não tem prestígio cultural e

É verão, mas está frio.

(onde está minha roupa?)

Tão frio que posso soprar e formar uma névoa espessa contra o vidro.

(onde?)

E assim crio animais de Miró.

que mesmo assim pode dizer a verdade ou

Com a ponta dos dedos e a lembrança e minha respiração, crio olhos desproporcionais e corpos despidos à sombra do dia.

aproximar-se dela com freqüência.

(preciso limpar o quarto e fazer algo para comer e deixar de ser vadio e tornar-me algo decente)

Com grande esforço me dobro na cintura e pego a calça jeans suja de restos de comida e gim. Reviro os bolsos e acendo um cigarro e me encaro no espelho do banheiro. Não me reconheço. A barba está grossa e emagreci pelo menos cinco quilos.

(meus olhos estão vermelhos)

Levanto e sinto a pontada e desisto de ir ao banheiro. A dor começa na base de meu pescoço e segue até o indicador. Ao redor dos dedos e nas costas da mão estou completamente adormecido.

Eu me divirto muito lendo poesia.

Mal consigo deitar. Minha pele está adormecida. Pelo menos a pele do meu braço direito está.

(é um sinal, eu sei. Sinal de que eu me abandonei e que tudo o que pensei na adolescência e na passagem dos 20 anos tornou-se nada. Agora o que eu faço é pensar em como ganhar dinheiro e quando muito)

Fui formado pelos grandes poetas.

Jogo a cabeça para a frente na tentativa de alongar os músculos da nuca. Ouço um leve estralo.

Fui formado pelos poetas espanhóis, pelos proibidos na Espanha de Franco. Miguel Hernández me marcou muitíssimo. Lorca, Salinas, Machado, Cernuda, todos os que morreram no exílio ou fuzilados ou que foram condenados, na Espanha, ao silêncio perpétuo,

Penso que vou ficar melhor, mas não fico.

Porque acontece que as pessoas de minha idade, na Espanha, não podiam conhecê-los desde não faz muito tempo e, diferente deles, nós, aos latino-americanos, esses poetas nos marcaram para sempre.

Tento deitar de lado. A cabeça e o pescoço movem-se como um feixe único de paus torcidos. Abro a boca e ouço um estalo ainda mais suave. A articulação de minha mandíbula geme sem que eu gema realmente. Apoio-me no braço esquerdo e, devagar, consigo me sentar uma vez mais.

Eu fui muito marcado por eles, mais do que pelos prosadores, porque de algum modo, a minha parte é essa, ainda que eu não escreva poesia em um sentido literal.

O espelho continua no mesmo lugar. O do chão e o do banheiro e meus olhos vermelhos.

(onde foi parar meu cigarro?)

Poderia gritar, mas não grito. Passo a mão esquerda pelo vidro da janela e os tordos levantam vôo e desaparece Miró. Penso que talvez eu esteja com pedras no rim. Já ouvi alguém dizer que as dores são terríveis. Uma forma do homem sentir as agruras do parto.

De algum modo eu sinto que queria fazer isso

Um parto via pênis.

e revelar todo o imenso caudal de poesia que a realidade contém, ajudar a que ela transmita toda a sua eletricidade poética, essa energia lírica que a realidade contém.

(é um sinal, eu repito)

Porque ela é a melhor poeta de si mesma.

(Se pelo menos eu pudesse me dar conta de qual momento eu rompi a linha e decidi que poderia seguir o traçado que me fosse apresentado)

Os poetas não fazem mais que interpretá-la e,

(deixei de ser Harry Potter para encarar a morte de Finnegan e me dei mal)

às vezes, sabem merecê-la. São dignos de sua grande beleza e assim lhe rendem homenagem. Mas

Contra o céu, as asas mal podem ser vistas.

ela é a melhor poeta de si mesma porque

De tão ligeiras, fazem tanto vento que desfazem nuvens. Cúmulos distraídos de mim,

ela fala uma linguagem sem metáforas. Tudo o que diz tem significado. Os feitos que ocorrem, acredito que são todos símbolos, dizem algo. Simplesmente ocorre que padecemos uma cultura dominante que nos treina para ser cegos de suas imagens e surdos de seus sons.

que mandam a chuva para além do norte. E pousam e fazem vista para crianças que passam. É o começo da época de aulas. Diferente para um gafanhoto adormecido no vão da cortina. Não se mexe. Parece

(ultimamente tem sido assim)

morto.

Esfrego os dedos e descama uma pele fedorenta que se acumula.

Comecei trabalhando em uma fábrica de inseticidas, aos 14 anos.

Ligo o rádio.

Antes, minha infância foi a liberdade: todo o dia nas ruas, nos descampados, nos canaviais, de bicicleta, na praia, jogando…

Serge Ginsburg.

(rádios parisienses adoram dor de corno)

Mudo de estação.

Sinto muita pena dos meninos nas cidades: são os mais presos de entre os presos.

The Clash.

São cheios de medo. Medo da violência, do clima, prisioneiros do pânico da vida moderna.

Abro um livro.

(minha geração assistia Perdidos na noite e lia a Ilustrada e pensava que o mundo era naif. Era um tempo bom. Quando a gente imaginava que sacava tudo)

É minha maior mania: que não haja uma palavra que sobre no texto, que restem apenas as palavras estritamente necessárias.

Além de mim passa um velho automóvel de cor gasta e pneus carecas. Um veículo de uso familiar que os anos transformou em ferro-velho. Agora é apenas uma carcaça coberta e recheada de álcool e fezes.

Minha norma é recorrer apenas às palavras que melhorem o silêncio.

Fecho o livro antes de terminar dois parágrafos e coloco-o na pilha, sobre a biografia de Pitt-Rivers.

(em Londrina, caminhávamos pelas ruas cantando e recitando poemas de autores malditos)

Penso que podia ser noite. Seria menos um dia e não haveria pássaros caolhos postados na frente de minha janela, a observar em dimensão única aquele que nada sabe de suas vidas e mesmo assim continua a especular sobre a sua própria.

Cuido de evitar que me atormentem a alma as preocupações sobre coisas que irão ocorrer dentro de um mês ou dois ou três.

(ainda creditávamos que existiam autores malditos. Augusto dos Anjos era grande: “E se ainda causa pena a tua chaga, acostuma-te à mão vil que te afaga e escarra nessa boca que te beija”)

Eu creio que temos que tratar de viver cada dia como se fosse deveras o primeiro e o último.

(podíamos beber a madrugada toda e ler trechos inteiros de Almoço nu, Uma estação no inferno, Dom Casmurro. Música de verdade era a inglesa e o movimento punk parecia um sonho. Nós éramos os sobreviventes da Folha de S. Paulo)

Já que não consegui ser jogador de futebol,

Passo um pouco mais de pomada no pescoço e no ombro. Um produto chinês comprado no mercado municipal.

eu teria gostado de ser pintor ou desenhista,

White Flower.

mas acontece que tão pouco aí deu certo como devia,

Parece nome de banda inglesa.

porque sempre se abriu uma distância muito grande entre o que eu queria dizer desenhando e o que conseguia minha mão expressar sobre o papel.

(o que mais importa?)

Assim não tive outro remédio a não ser fazer-me escritor e com o passar do tempo vou sentindo que é cada vez menor a distância entre o que quero dizer e o que consigo dizer quando a mão escreve.

Apenas um dos tordos permanece sobre o fio de alta-tensão. Suas pequenas garras presas à linha mais que alongada e que em dias quentes torna-se uma parábola. Barriga estendida para baixo, na direção da calçada, aproximando as pequenas garras das cabeças que passam sob elas.

(gosto do nome alta-tensão)

Lavo o rosto e afasto os pensamentos.

(olhos vermelhos)

Uso as duas últimas gotas de colírio.

Não há nenhuma fórmula que te permita mudar a realidade se não começas por vê-la como é. Para poder transformá-la precisa começar por assumi-la.

Acho uma camisa não tão amassada e vou ao encontro de Galeano. No metrô percebo que devia ter procurado com mais cuidado por meias limpas. Mesmo os parisienses estão incomodados. E isso é péssimo sinal.

(fracassei, assim como todos que conheci. Todos fracassamos. Nenhum alcançou o que jurou alcançar. Desviamos de rumo. Adeus Ilustrada. Brasiliense nunca mais. Amigos antigos e amigos novos. A impotência é uma merda, por isso mudamos de rumo. Viramos arautos do sucesso advindo daquilo que nos ficou possível. Aquelas estúpidas barbaridades que nos caíram no colo de graça e transformaram-se, miraculosamente, em objetos há muito desejados)

Mas não podemos vê-la.

Paro uma estação antes e na Place de la Concorde tiro os sapatos e jogo as meias fora e acendo um cigarro e faço de conta que tudo está bem, como sempre esteve.

Estamos cegos de nós mesmos porque estamos treinados para ver-nos com olhos alheios. Por eles o espelho nos devolve uma mancha confusa e nada mais que uma mancha.

(sinto saudades do que não vivi)

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho