(amigos, a imaginação tem limites e a minha está concentrada em decidir entre um livro que preciso terminar e uma vida que precisa seguir)
Pequenas moscas. Tão pequenas quanto a poeira erguida pelo cloquear dos cascos. Moscas de cavalos, que rodeiam a cauda seguindo o balanço constante. A Europa está povoada de moscas. Da velha Albion à fronteira turca. Tudo está polvilhado de moscas. E mesmo elas se assustam com o estrondo.
— Foram quatro tiros!
Assustam-se e rapidamente se recuperam. Feito mísseis teleguiados, atravessam a praça e pousam sobre o corpo vestido de branco e vermelho. Sobre o carro, Karol Wojtyla acenava e sorria e a multidão se alegrava com a mostra de simpatia. Os guardas da Polícia Montada não faziam muito para conter a multidão. Serviam mais de manequins para antigos trajes. Tão acostumados à função que se desesperaram quando veio o som seco e o Papa caiu. Apenas as moscas reagiram de acordo. Apoiadas em suas qualidades — capazes de sentir o odor de sangue ou putrefação e outros alimentos a quilômetros de distância —, feito um véu negro sobrevoaram a multidão que acenava agradecida pela compaixão demonstrada.
— Eu vi quando ele puxou a arma. Vivi muito tempo na Alemanha, mas não foi por isso. Desde o começo não gostei da cara de árabe que ele tinha. Só que a pistola dele não disparou. Se tivesse eu teria sabido. Eu estava do lado. De ombro colado. Os tiros vieram de outro lugar. Pode olhar o filme. Olha o jeito que Karol caiu. Não está certo.
(se apenas isso não estivesse certo)
Mirtilo pede café sem açúcar e
— É Karol quem devia ter pedido perdão. O coitado do Mohamed Ali Agca não tem culpa. E mesmo assim ele deixou o infeliz apodrecer na prisão. Quatro horas de cirurgia no Policlínico de Roma e cinqüenta e cinco centímetros de intestino a menos não justificam condenar um inocente.
olha com compaixão para o Coliseu. Compartilha com as ruínas o segredo de suas origens.
— Foram quatro tiros. Três acertaram. Uma no abdômen, uma no braço e a última no dedo mínimo. Muita gente, como eu, viu que não foi Ali Agca.
(eu não durmo)
Um homem de chapéu Panamá corta a calçada carregando uma sacola cheia de reproduções e pára ao lado da mureta do café e monta um pedestal e põe as imagens renascentistas em exibição. Não demora, um turista pergunta o preço de uma cópia malfeita da Santa Ceia.
— Agca não entendeu nada. Em um momento está confuso com a correria, no seguinte alguém o aponta como culpado e a multidão o agarra tentando linchá-lo e para o bem ou para o mal policiais saltam em suas costas e o fazem largar a foto da mãe. Uma velha turca de rosto amargo e erodido que perdera o movimento das pernas em um acidente e que fizera uma promessa a todos os deuses caso o filho conseguisse chegar à maioridade com saúde. Mas ela morreu antes. Então o filho, apesar de muçulmano, decidiu honrar a palavra da mãe. Juntou as economias e foi a Roma. Deixou para trás a mulher e os quatro filhos e uma vida de miséria a fim de pagar a promessa.
Mirtilo mostra os pêlos negros do braço e esfrega-os como se realmente estivesse arrepiado.
(ouvi Diogo Mainardi dizendo que não pensa em outro romance. Invejo sua satisfação com os empregos que tem)
Sua figura contra o sol do entardecer é uma sombra curiosa. O nariz protuberante, feito quilha de navio, em contraste com os pequenos olhos acinzentados e o corpo raquítico, chamam a atenção dos passantes.
— Após a visita do advogado, Agca mudou seu discurso e passou a assumir o atentado.
(mas eu teria coragem de assumir sua vida? Apesar de dizer-se satisfeito e feliz, conheço a dor de um erro médico vitimando um ente querido)
O turista leva a reprodução da Santa Ceia enrolada dentro de um tubo de papelão. Mirtilo acompanha o passo satisfeito do homem pálido e gordo. Acendo um cigarro.
— Pelo menos a família ficou bem.
Brown desce do táxi vestindo paletó bege e camisa azul escura e calça marrom. A tiracolo, traz uma pequena mochila vermelha. Desculpa-se pelo atraso.
— O jogo de tênis esquentou e não pude parar. Eu sabia que vocês estavam me esperando, mas era questão de honra. Eu não podia abandonar o jogo perdendo. Mas eu sabia que vocês estavam me esperando. Gosto muito do Brasil. Eu cito o país em O código Da Vinci. Vamos demorar muito? Meus amigos estão esperando para o último set. Eu disse que voltava logo e
— O senhor conhece os três segredos de Fátima?
(sinto vontade de rir de frases beatnik: partir é viver, ficar é apodrecer)
Mirtilo pergunta em italiano, apontando o dedo para que eu traduza. Brown espanta-se com a pergunta e logo se recompõe, rindo, afirmando que é agradável que uma entrevista não comece com a pergunta se existe ou não um código Da Vinci.
Há muitos códigos no trabalho de Da Vinci. Meu primeiro contato foi enquanto eu era estudante de história da arte na Universidade de Sevilha, na Espanha. Mais tarde, eu casei com uma historiadora que também era uma fanática por Da Vinci. E não tive escapatória. Eu acabei estudando o assunto durante muitos anos.
— O que ele disse?
Mirtilo não gosta da resposta e acusa Brown de estar sendo evasivo. Batendo a mão sobre a mesa, vira a xícara vazia de café. Eu trago e engulo a fumaça e olho na direção do sol ofuscado pela poluição romana.
— Bem que eu suspeitei que alguém que se refere a Leonardo Da Vinci como Da Vinci, não podia ser boa coisa. É a mesma coisa que chamar São Francisco de Pádua simplesmente de De Pádua.
(literatices me irritam. Escritores escrevem tanto sobre heróis que se acreditam os mesmos. Todos panacas)
Digo que Mirtilo está excitado com a presença de um autor que admira.
Porque minhas novelas requerem muita pesquisa, quase tudo que eu leio é não-ficção, biografias, traduções de textos antigos. Entre aqueles poucos escritores de ficção que me têm inspirado posso citar Ludlun, por causa de seus enredos intrincados, Steinbeck pelas suas escrições, e Shakespeare por seus diálogos.
E enquanto chamo o garçom para que nos sirva, acrescento que muita gente duvida que as muitas informações presentes nos livros de Brown tenham respaldo na realidade.
(o que estou dizendo? É ficção. Fi-qui-ção!)
Brown sorri e bate no ombro de Mirtilo.
Noventa e nove por cento é verdade. Tudo sobre arquitetura, a arte, os rituais secretos, a história, tudo aquilo é verdade, as crenças gnósticas. Tudo aqui é… tudo aquilo é ficção, é claro, como a existência de um especialista em simbologia de Harvard chamado Robert Langdon, e toda a sua ação é ficção, mas o pano de fundo é verdadeiro.
Antes que eu fale, Mirtilo afasta sua cadeira e coloca-se na distância ideal para me encarar e a Brown. Vejo em sua retina uma faísca do sol que desaparece.
— Os três segredos de Fátima dizem respeito às almas perdidas durante a Primeira Guerra Mundial; o outro fala que caso os homens não se emendassem viria a Segunda Grande Guerra; e o terceiro segredo, como todos deviam saber — concentra a atenção sobre mim e a seguir sobre Brown — fala de uma procissão de Cardeais, Bispos, Padres religiosos e povo que é seguida por um Papa com passo vacilante e hesitante, numa cidade arruinada. A procissão se encaminha para uma montanha sobre a qual há uma cruz, símbolo claro do Calvário, portanto, da Missa. Lá, o Papa é fuzilado e flechado, e, em seguida os Cardeais, Bispos e povo são mortos também.
Olho no relógio e
(em Roma o entardecer é bonito, como é bonito em todas as Romãs e mais)
pergunto o que isso tem a ver com a minha entrevista.
— Você não entende? Até o cardeal Ratzinger admitiu que o atentado a João Paulo II tem pouco a ver com a profecia. E isso é óbvio. Não adianta o Cardeal Sodano ter afirmado que sim, ou Karol ter ido a Portugal agradecer pela Virgem ter desviado a bala. A verdade é que a profecia ainda não se realizou! E não são livros frágeis como o desse senhor que vão resolver o problema.
Brown pede ao garçom uma coca-cola dietética e me pergunta porque meu amigo está tão exaltado e sorri ao saber o motivo.
A maioria da informação de meu livro não vem de fontes “internas”. O segredo descrito no romance tem sido descrito em crônicas durante séculos, então há centenas de fontes. E o mais interessante é a quantidade de historiadores que vêm dividir seus conhecimentos comigo. Um acadêmico me contou com entusiasmo que O código Da Vinci está baseado, em parte, em uma grande esperança sua, de que “esse antigo mistério fosse revelado para um público mais amplo”.
Traduzo. Mirtilo levanta-se com um salto e dá a volta na murada e vai até o vendedor de gravuras e compra três reproduções. Volta e joga-as sobre a mesa.
— É isto que está atraindo a atenção do mundo? A Mona Lisa? A Santa Ceia? A virgem nas rochas? O que é mais importante: uma teoria boba falando de um suposto complô da igreja católica para ocultar a importância de Maria Madalena ou as palavras da própria Virgem?
Tiro as reproduções de sobre a mesa e as acomodo em uma cadeira. Com a mão nas costas de Mirtilo, forço-o a sentar. Porém, ele não se cala.
— Dom Bosco também fez uma previsão parecida com a de Fátima. E mais que isso, Dom Bosco viu o navio da igreja se afastando de duas colunas: a da sagrada hóstia, quer dizer, da missa, e a da Virgem. Isso tudo acontece depois de um concílio.
Brown bebe sua coca, ainda com a mochila sobre o colo. Duas vezes sorri talvez achando que me incomodo com a atitude de Mirtilo ou mesmo seus trejeitos sobre a cadeira.
— Pode traduzir o que seu amigo fala, sem colocar panos quentes.
Brown coloca a mochila sobre as reproduções, como se isso fosse acalmar minha ansiedade.
(o que estou fazendo neste continente desgraçado? Eu poderia estar na praia, conversando com amigos, fazendo amigos, e não me escondendo atrás de um romance que não tem fim)
— Seu amigo está certo. Dom Bosco profetizou que isso deve acontecer após a morte de dois Papas. E quando o terceiro é eleito, ocorre uma grande luta entre os inimigos da igreja que culmina com o retorno do navio e a destruição dos inimigos.
(posso não mergulhar na água salgada, mas ainda assim)
— O afastamento começou com o concílio Vaticano II, após a promulgação da Nova Missa de Paulo VI. Isso deu margem a muitos abusos que João Paulo II afirmou que iria coibir. Mas há cardeais que estão se opondo e fazendo pressão para que Karol renuncie.
Mirtilo é complementado por Brown.
— A política dentro do Vaticano é muito complexa. E não menos imunda do que aquela que é praticada em cidades ao redor de todo o mundo. E tudo se torna mais obscuro devido ao véu de mistério que envolve a mistura de burocratas e verdadeiros homens de Deus.
— Quando João Paulo II sofreu o atentado, ele não claudicava.
Mirtilo fala e pede licença para ir ao banheiro. Com seu forte sotaque, solta curtas e enroladas palavras em inglês, o que tira um riso divertido de Brown.
— Como é mesmo o nome de seu amigo?
(esse fanático psicótico não é meu amigo)
Brown me conta de sua família, e como nasceu em um meio rico em informações ligadas à ciência, filosofias paradoxais e religião. Seu pai era professor de inglês no Exeter College, cadeira que mais tarde assumiu. Sua mãe era musicista sacra.
(Não há lua no céu)
Brown fala do ano de 1996, quando deixou de lecionar para escrever o romance que o levaria ao primeiro lugar nas listas dos e-books mais vendidos.
Até eu me graduar no college, eu não tinha lido quase nenhuma ficção comercial moderna. Meu foco até então estava nos clássicos da escola. Em 1994, durante férias no Tahiti, eu encontrei uma velha cópia de O juízo final, de Sidney Sheldon. Eu li a primeira página… e a seguinte… e então a outra. Várias horas mais tarde, eu terminei o livro e pensei: ei, eu posso fazer isso. Quando eu voltei, eu comecei a trabalhar em meu primeiro romance — Digital fortress
Fala e puxa para o colo a mochila e se mexe na cadeira como a sofrer um ataque de oxiúros. Sorri e ajeita o cabelo desajeitado pela brisa do anoitecer.
(como se mede o valor de uma existência se a morte apaga todas as impressões?)
Antes que comece um silêncio constrangedor e Brown parta levando uma péssima impressão, emendo uma afirmação sobre Ali Agca, da injustiça que sofre. No mesmo momento, Mirtilo aproxima-se e fala alto, gesticulando com os braços como se quisesse apanhar uma das pombas que faz vôos rasantes sobre nossas cabeças.
— Há uma conspiração escarlate que precisa ser denunciada antes que seja tarde demais! Os cardeais sabem que resta pouco tempo para que a profecia se cumpra e que o fim de um reino de tramas veladas chegue ao fim.
Brown me segura o braço para que eu traduza.
— Ali Agca é a chave.
Brown joga o tronco para frente, sem importar-se com a mochila que vai ao chão. Mirtilo empalidece enquanto ouve suas palavras.
— Agca foi deportado para a Turquia em 2000, após receber anistia do governo italiano. Agora cumpre pena por ser o suporto a assassino do jornalista Abdi Ipecki, que ocorreu em 1978. Uma situação muito conveniente que afastou para longe a única pessoa que poderia levantar o véu que cobre a igreja e impede o retorno de seu navio.
— Karol não tem culpa. Ele simplesmente não sabe!
Mirtilo não se importa com minha falta de interesse e os vários cigarros acesos e apagados seguidamente. Bebendo café, frio, digo atonal que o Papa seria um estúpido caso não soubesse o que acontece na sua corte. Brown me contradiz:
— Ignorância, não estupidez. O sumo pontífice realmente acredita que foi alvo da terceira profecia. Em parte por orgulho, em parte pela conversa de aduladores. E suponho que não queira abandonar o pontificado por saber que outros dois Papas precisarão morrer antes que a paz retorne.
— E quanto tempo isso irá demorar, ninguém sabe. — Mirtilo, ainda de pé, acrescenta. — Achando que a profecia já aconteceu, Karol está descuidado. Precisamos reunir Agca e Karol!
Tiro o cigarro da boca e pergunto o motivo. Brown é quem me responde.
— O Papa não iria acreditar em um romancista e um interessado nos rumos da igreja. Já no homem que quase tirou sua vida, a atenção seria outra.
Brown abaixa o olhar, parecendo decepcionado.
— Em 2001 eu tive uma audiência com o Papa. Se pelo menos eu pudesse marcar outra para já…
Sozinho, olho para as reproduções dos quadros de Leonardo da Vinci e tento me convencer de que a figura do apóstolo João é Maria Madalena. Noite sem lua, sob luzes artificiais, fica mais fácil confundir a ilusão da fantasia.
(preciso sair desta vida antes que não me reste nada)